domingo, 25 de outubro de 2009

A Todo Volume

Do blues ao white

Um toco de madeira, arame esticado e fixo por pregos nas pontas, uma garrafa vazia de Coca-Cola e um amplificador. Pronto, pra que guitarra? Mais do que um prólogo, essa apresentação sintética e questionadora é a própria desconstrução do filme. A partir deste texto que leva ao risível estranhamento, toda a verdade absoluta cai por terra. Sim, uma terra vazia, árida e caipira. O cidadão provinciano que acompanha a montagem deste simplório instrumento é tão extraterrestre quanto o espectador diante da mágica de se poder extrair som do nada.

Esse preâmbulo ao mesmo tempo insólito e cativante demarca ou outro documento mais recheado, o filme propriamente dito. Trata-se de um registro do encontro entre três guitarristas, símbolos de suas gerações, realizado no começo do ano passado, com a finalidade de discutir este instrumento elétrico e, claro, tocar. Jimmy Page, ex-Led Zeppelin, é o ácido lisérgico dos anos 70. The Edge, principal coadjuvante do U2, é o grito de sobrevivência dos efêmeros anos 80. E Jack White, chef de cozinha do White Stripes, Racounteurs, Dead Weather e tantos quantos forem os seus futuros projetos, é a síntese dessa colcha de retalhos, desse copy-paste myspace musical que é o rock atual. Page é a página virada da história do rock. É a lenda-viva, e sua imagem até certo ponto icônica e distanciada é preservada como tal. É nos toscos registros de sua participação nos Yardbirds que podemos perceber que o mestre não só foi um dos principais conectivos entre o blues de raiz e o rock de arena, mas também é dele que vêm os primeiros verbetes do que podemos entender por música que faz a cabeça adolescente. Page é a referência intocada, a enciclopédia, é o papa de quem resiste e ainda prefere aprender música por meio de partituras de conservatório. Trazê-lo ao sarau elétrico e distorcido é nada mais do que fazer uma homenagem ao mestre de cerimônias que trocou as drogas pela alimentação vegetariana, o niilismo hippie pelo zen-budismo e Londres por Marrakesh e Porto Seguro. Já The Edge é a representação da escalada mais saborosa do punk ao pop. Ao ver o U2 tocar num estádio lotado, num show com aquela parafernália megalomaníaca, centenas de milhares de pessoas cantando suas músicas de cor e salteado, chega-se à conclusão de que o rock é tão incoerente quanto dissimulado de suas origens e de suas revolucionárias propostas. O hino de protesto das gerações sucumbiu aos downloads. Rock dá dinheiro, muito dinheiro, e The Edge não esconde seu comodismo em relação e esse confortável status quo. O guitarrista assume descaradamente sua afeição pelos programas de computador que reproduzem os acordes e as escalas. Se Jack White, lá no intróito, enterrou a guitarra, aqui The Edge enterra a figura do próprio guitarrista. Para a massa da multidão vibrar, basta o competente trabalho de um engenheiro de som e seu mais moderno software de fazer barulho. Já White, the last but not the least, muito pelo contrário, é talvez a figura mais emblemática porém a mais sincera do documentário. É quase a antítese minimalista de The Edge. A marcação do compasso de suas músicas é feita com o pé, dispensando qualquer aparato tecnológico. Em sua primeira banda, na verdade um dueto, o White Stripes, Jack descreve sua irmã Meg White como dotada de poucas habilidades artísticas, algo assim. Mas pra ele, não precisa mais do que isso. White demonstra ser o mais purista e sectário a navegar pelos primórdios do blues-rock. Isso sem falar no bônus track que ele nos apresenta. Introspectivo, de poucas palavras, recriando o gênero de si próprio, White é mais personagem do que compositor. Em seu chapéu-coco preto, em contraste com seu pálido rosto pó-de-arroz e sua camisa branca, lembra muito aquilo que Johnny Depp nos mostra no realismo fantástico de seu cinema. É o humor mal-humorado desse Buster Keaton das guitarras que nos reserva os momentos mais impagáveis. Se para reproduzir a história do Led Zeppelin são necessárias incontáveis páginas de arquivos do rock, se para entender melhor o U2 deve-se recorrer a pesquisas no Google, já o White Stripes pode ser resumido em uma tirinha de HQ. A concepção gráfica desta banda restringe-se repetidamente a três cores básicas (preto, branco e vermelho). O bumbo da bateria, visto de longe, parece pirulito de criança. Os Listras Brancas provam que o rock talvez não seja sincero, mas é no mínimo cômico e caricato. E esse desfecho pouco ortodoxo sintetiza as contradições inerentes ao trio convidado. Mas para não correr o risco de cair em hermetismos acadêmicos ou tornar o documentário enfadonho aos ouvidos iniciantes, o diretor Davis Guggenheim faz a aposta segura de contar histórias. Ir direto ao assunto, ou seja, ensaiar durante horas num galpão e discutir rumos musicais é o cerne do documentário, algo tão essencial e inutilia truncat quanto a música crua e lacônica de White. Mas o diretor opta por preencher espaços narrando e trajetória das bandas que trouxeram fama aos músicos, e isso não é uma questão ao filme. Não está em jogo o malabarismo do baterista John Bonham ou o início de carreira do U2, banda despretensiosa que nasceu nos subúrbios da Irlanda em meio à crise econômica e política do país. A Todo Volume é, em sua essência, a entrega de White e seus riffs das artérias, que faz sangrar suas mãos ao dedilhar a guitarra, colorindo de vermelho o branco-e-preto de sua comportada indumentária, em detrimento ao automático apertar de botões de The Edge. Pensar o filme como uma coletânea de hits é um equívoco. Ele é muito menos do que isso e, portanto, muito mais.

2,5 lentilhas

domingo, 4 de outubro de 2009

Tirania semântica

A língua de um povo não é apenas uma forma de manifestar suas ideias e sua cultura, mas é também uma maneira de expor a distinção de classes sociais. Igual a roupa de shopping; calça de griffe é mais bem-vista do que artigo do Largo da Concórdia. O uso incorreto da língua, tal qual o uso incorreto de uma roupa, sofre a mesma discriminação. A norma culta, como o próprio nome diz, é um mecanismo seletivo para determinar quem, do ponto de vista linguístico, irá para o Céu ou para o Inferno. “Nós foi”, expressão dada como modelo do “falar errado” da classe mais baixa, é algo ridicularizado pela elite dita culta. Muito embora o emissor da mensagem consiga se fazer entender. Afinal, lá no enunciado “errado” consta exatamente quem fez a ação, o que fez e quando fez. Verbo concordar com sujeito, de acordo com a regra gramatical castiça, é apenas um capricho da Flor do Lácio. Uma redundância capaz de reprovar alunos, apesar da plena compreensão do seu significado.

Todavia, essa mesma língua que nos faz capaz de se comunicar na sociedade também pode nos ser traiçoeira. Estamos, afinal, diante de um tribunal de Justiça? Parece, porque pelo que vejo existe nos alfarrábios léxicossociais o “pouco errado” e o “muito errado”. A sociedade, cruel ao condenar o verbo singular de um sujeito plural, é a mesma que pode perdoar o uso incorreto de infinitivos, por exemplo. Mais por ignorância do que bom-mocismo, talvez. “A nível de”, um erro considerado “classe média”, não sofre as mesmas represálias. O tão-falado gerundismo, modinha de sarcasmo, virou algo condenável só porque se lançou uma corrente em algum lugar do país condenando o uso deste tempo verbal. Duvido que tenha havido algum tipo de consulta antes de sua reprovação. “Ele vai estar fazendo”, frase generalizadamente atribuída aos operadores de telemarketing, sabe-se que está incorreta do ponto de vista erudito. Mas “ele deve estar chegando” está correta. Alguém me explica?

Frente a essa tolerância classista não posso deixar de citar os comerciais da campanha sobre a fusão Banco Real / Banco Santander, com uma série de testemunhais aprovando a junção dos benefícios. Em um dos depoimentos, uma moça aparentemente de classe média, moderna, descolada, gestual descontraído, me solta: “uma matematicazinha”. Diante do contexto, a frase até que soou apropriada e toda a sua performance, bem-vinda. Mas os puristas linguísticos, aqueles mesmos que colocariam o suposto caipira do exemplo acima na guilhotina, não poderiam aceitar essa agressão vernacular. Matemática é uma ciência, um estudo, um assunto tratado no singular por sua grandeza e por sua incompatibilidade semântica em se enumerar. É o mesmo que dizer “vou à feira trazer umas biologiazinhas”. Se a astronete tivesse dito “umas continhas” ou algum sinônimo, vá lá. Mas a Língua Portuguesa, cada vez mais, está virando passarela verborrágica: lança uma novidade, chama a atenção, exibe-se diante dos curiosos holofotes e depois sai de cena. Nossa língua pátria é móvel, é dinâmica, é corrente, sujeita a alterações sem prévio aviso, tal qual o pensamento do nosso povo. Mas é inaceitável acatar com esse comportamento de segurança de bar: deixar entrar alguns erros VIP, barrar outros.

Tirania estética

Cá estou eu novamente a falar de um comercial de cerveja da marca Schin. Melhor pra eles; falem mal, mas falem de mim. Antes uma empresa que impõe conceitos sem medo de errar a uma empresa acomodada, que só veicula apostas seguras. Trata-se de um comercial de um jovem comum, desses que trabalham em um escritório comum, e que se submete cegamente aos mandamentos de uma voz em off pra ficar com uma melhor aparência e, portanto, conquistar as mulheres. Por trás de uma suposta filosofia de vida democrática “seja você mesmo” existe uma falsa premissa. Ao trabalhar com a ironia para mostrar que toma partido do lado oposto, o filme-fariseu apenas reforça a ideia de que os homens têm total liberdade para se lixarem para o seu físico. Nesse sentido, redunda estereótipos ao invés de combatê-los. Sim, o franzino protagonista ficaria ridículo se fizesse bronzeamento artificial, mudasse o corte de cabelo, entrasse em uma academia. Afinal, o típico bebedor de cerveja, tal qual o concebemos, gordo e careca, não pode se submeter a essas déspotas regras sociais. Mas esse liberalismo estético, no filme, só é concedido aos homens. A mulher, que aparece somente no final, e num ângulo notadamente machista, não recebe essa alforria. Ou seja, a cerveja Schin, escancaradamente dirigida ao “sexo forte e macho”, oferece ao desleixado portador de testosterona a oportunidade ilusória de, sem precisar fazer qualquer tipo de esforço físico que não seja o de esvaziar um copo goela abaixo, conquistar o par de pernas torneadas do escritório. Bem como qualquer outro tipo de comercial do gênero.