quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Violência genuína

Triste do país que tiver como modelo icônico da liberdade de expressão um programa televisivo como o CQC. Mas não tem jeito. Diante de uma programação pífia e medíocre que nos é oferecida como prato principal desse “micro-ondas de informações”, é talvez a melhor opção de um cardápio ralo e repleto de gororobas do entretenimento. Os canais abertos não saíram da década de 70, no pior sentido da comparação. Falar que os discípulos evangélicos e globais do SBT são pura baixaria é algo tão lugar-comum quanto eufêmico. Em compensação, os enlatados da TV a cabo nos dão a sensação de que estamos diante daquelas televisões de cachorro de padaria, todas idênticas no domingo à tarde, em que o frango assado gira ininterruptamente, numa mesma cena, num mesmo eixo. Se programa de TV virou commodities, ao menos o CQC estabelece um mínimo diálogo com a linguagem cibernética, lacônica e infame do público massivo de hoje. Seja pelo imediatismo da matéria, pela suposta irreverência ou pela aproximação com algumas tendências da comunicação, como as redes sociais, por exemplo. Diferentemente dos siberianos, enfadonhos e retrógrados Altas Horas ou Amor e Sexo, por exemplo, que expõem a moçada como figurantes, usam gírias mas não passam de cartoons colorizados da época de Gil Vicente. O Custe o que Custar é palco publicitário para os aspirantes a ator de stand-up comedy. Toca nas feridas políticas de modo tão sintético e limítrofe quanto a capacidade de armazenamento do Twitter. Ainda assim, rende os assuntos mais saborosos das conversas de escritório das manhãs de terça-feira, já que o período matutino de segunda e quinta é monopolizado pelos bocejantes comentários futebolísticos. E, depois de tantas voltas, é sobre ele que eu me proponho a falar. Voltando ao tema: a democracia no Brasil consolidou-se de forma tardia, capenga e burra. Quase todo dia, encontramos provas mais do que evidentes, em todos os níveis possíveis e nas mais diversas esferas sociais, do autoritarismo do poder de expressão, da coibição sobre a pluralidade de pensamento, da restrição ao diálogo aberto. O povo brasileiro, de um modo geral, ainda não está acostumado ao confronto sadio de ideias. Não sei dizer, e seria arrogante da minha parte, atribuir a culpa sobre esse regime social stalinista, obtuso e intestino à política e aos políticos brasileiros. Talvez o problema seja muito maior e a raiz, muito mais profunda do que isso. Mas séculos e séculos de um sistema patriarcal, de sucessivos governos em que o líder de uma nação é considerado o “pai do povo”, aquele que dá pirulito à criança que se comporta direitinho e palmadinha no bumbum dos mais rebeldes, fomentaram esse comportamento patológico pouco flexível ao pluralismo ideológico. Fazemos parte de uma massa sem vontade própria, regida pelos mandos e desmandos de um tutor-coronel da república do café e das capitanias hereditárias da macaxeira. E isso se reflete até mesmo na escala zero da pirâmide hierárquica. Basta entregar a um desdentado uma arma, um coldre e um colete à prova de balas com o bordado “segurança” nas costas que o indivíduo já se sente “toridade”, com poderes atribuídos por ele próprio de tapar com a mão as lentes da câmera e falar pro repórter “vai trabaiá, vagabundo”. Não, não é descrição preconceituosa da minha parte não. É um fato registrado pelo VT da Rede Bandeirantes que, em última instância, é o resíduo podre e caduco dos tempos da ditadura. Se esta atitude milica, muito mais uma vontade de provar a ascensão social do que ter a plena consciência do seu exercício do autoritarismo, ocorre já nas camadas de base, imagina então como se dá esse comportamento numa laia mais graúda. José Sarney, bastião das alianças espúrias que o governo do PT andou fazendo, também foi protagonista de um episódio vexatório que envolveu um entrevistador do referido programa. Ao tentar abordar o ex-Presidente e pedir explicações sobre os escândalos do Senado, o repórter Danilo Gentili foi fisicamente agredido pelo seu segurança pessoal. O bigodudo marimbondo de fogo dos maranhões esquivou-se da saia justa, mas as imagens constrangedoras renderam ao programa uma série de notícias, manifestações de repúdio ao sistema e votos de solidariedade ao apresentador. E, ao jagunço esclarecido do agreste, o delito rendeu, de acordo com o âncora Marcelo Tas, um processo judicial que, espero, não termine em pizza.

Se a história ao menos nos ensinasse que os fatos mais hediondos pudessem servir de escadaria para a maturidade, seria menos mal. Pagaríamos um preço – alto – pela apostila do crescimento e do desenvolvimento. Não é bem o que ocorre. A história se repete justamente pela recorrência de seus erros. No programa CQC do dia 30 de novembro, o repórter Rafael Cortez, novo integrante do quadro Controle de Qualidade, passou por uma situação semelhante e igualmente imperdoável quando foi dirigir uma pergunta a outro José, dessa vez, o Genoíno. Sinceramente, sou novato em matéria de CQC. Não sei se, nos primórdios, houve alguma rusga entre o deputado e a equipe do programa, ou algum tipo de situação mal-esclarecida. O fato é que o nobre constituinte, que já havia caído no meu conceito devido às suas recentes posições políticas, parece que enterrou de vez minha credibilidade depositada sobre ele e sua carreira de guardião da democracia. Um dos mais contumazes lutadores da resistência contra o regime militar, ex-preso político, torturado, participação ativa na questão Araguaia, talvez tenha saboreado o gostinho de estar do outro lado do poder. Em inúmeros programas anteriores, o ilustre parlamentar, no seu legítimo direito, jamais abriu a boca para conceder entrevistas ao CQC. Sempre sisudo, o político escapava das pegadinhas assim como os mensaleiros fogem da CPI. Tudo bem, confundir seriedade profissional com antipatia é perfeitamente perdoável. Sempre imaginei que esse semblante carrancudo fosse a caracterização de um Genoíno personagem de si mesmo. Mas dessa vez seu mau-humor foi longe demais. Em suas próprias palavras, o petista acusou o programa de pregar a violência (!?!), sem especificar com maiores detalhes a chegada a essa leviana conclusão. Até aí, talvez o atarefado e veterano deputado tenha confundido o imberbe repórter com o pessoal do Pânico, um programa semelhante no seu formato, mas muito mais apelativo, invasivo e campeão de piadas de mau-gosto. O quadro Controle de Qualidade é apenas uma espécie de Enem do Congresso, em que são testados rapidamente os conhecimentos mais elementares possíveis do dia-a-dia da política brasileira. Ainda que o gagá congressista tenha se exaltado e se sentido moralmente violentado no calor da situação, o que não passa de uma hipótese bastante precipitada pelo que as imagens indicam, nada justifica sua reação: uma discreta cotovelada em Rafael, daquelas feitas para a câmera não captar. Num país dito democrático, e com um partido que usou essa bandeira panfletária como alicerce para chegar ao poder, uma suposta “violência” não se rebate com violência. Pagar com a mesma moeda, nesse caso, só faz inflacionar o efeito negativo da situação. Ainda que proporcionalmente deselegante, o tal do “te pego na saída” seria mais sincero do que a cotoveladinha lateral, praticada em partidas de futebol por jogadores de mau caráter, que usam do golpe baixo pra levar vantagem e não ser vistos pelo juiz. Nos exames escolares realizados no país, recusar-se a responder a pergunta do professor é digno de nota zero. Fazer uma jogada violenta contra o adversário é algo pra cartão vermelho. Lembre-se disso na próxima vez em que praticar o exercício democrático do voto.