quinta-feira, 20 de maio de 2010

Permanecer correndo

Quem me conhece sabe que eu tô sempre correndo. É normal. Meu passo é naturalmente acelerado e, não sei por que cargas d’água, tô sempre atrasado pra alguma coisa. Não foi diferente da última vez em que pisei no shopping Center 3, na esquina da Paulista com a Augusta. Como não poderia deixar de ser, a grade de programação dos filmes das salas do Bristol foi planejada com horários ingratos e, como é de praxe, eu quis correr atrás do prejuízo imaginando as costumeiras filas que se formam diante da lerdeza das bilheterias. Acelerando um pouco mais o passo, eu conseguiria, talvez, nessa angústia metropolitana no pique de Fórmula 1, ultrapassar uns dois ou três possíveis interessados em ver algum filme. E, como rege a Lei de Murphy, certamente se trataria de pessoas que perguntariam os filmes, o gênero, a duração, não teriam dinheiro trocado ou tentariam passar seus cartões de crédito/débito no sistema congestionado ou inoperante. Sei que a culpa é 100% minha. Eu é que não consegui me livrar dos afazeres em tempo hábil e fui obrigado a fazer essa compensação de minutos na boca do caixa. Quis dar uma de esperto, na tentativa de perder o menor número possível de frações de tempo de um filme previamente começado. Foi durante essa maratona relativamente taquicárdica que ouvi de um daqueles seguranças vestidos de urubu me dirigir a palavra. Aquele tipo de profissional que não faz nada a não ser te proibir de fazer qualquer coisa, sabe? Em tom parcialmente austero, ele me chamou a atenção, dizendo que era proibido correr. Nem dei bola. Fui até o fim da fila, que dobrava a bilheteria e quase encostava o quiosque de alguma marca qualquer de celular. Percebendo a abordagem mal-feita, ele se retratou e voltou a mim dizendo, de uma maneira mais polida e condizente com sua função, mais ou menos isto: “O senhor me desculpe pelo modo como falei com o senhor, mas é proibido permanecer correndo aqui nas dependências do local. Muito obrigado”. Ponto para o segurança. De fato, eu não dei motivo algum para ser tratado como um meliante. E o arrependimento, a retratação, são atitudes louváveis e bem-vindas na nossa cultura cristã. OK, tudo bem, a mudança de comportamento, a abordagem mais branda, o modo educado de falar, tudo isso conta pontos a favor do distinto. Nem vou entrar no mérito linguístico em relação ao erro semântico da frase. Mas me incomoda muito essa confusão de valores que se faz em todas as esferas sociais. Por um lado, temos o faroeste da terra-de-ninguém das metrópoles, a selvageria bandida que nos amedronta. Isso questão de uns 20 passos do ponto onde ele me repreendeu. Mas o descaso policial do lado de fora em nada justifica essas proibições gratuitas em ambientes mais fechados, ou que, pelo menos, procuram causar impacto com uma suposta e falsa imagem de organização. Isso pra mim não é o exercício da cidadania, muito pelo contrário. Seria precipitado de minha parte afirmar que se trata de um ranço da ditadura, mas a atitude do indivíduo de fazer questão de mostrar quem manda em nada condiz com os riscos do ato acelerado em si. É bem provável que o tal funcionário não tem a mínima noção do que faz, e foi treinado por empresas e equipes que não deram a ele o mínimo preparo nesse sentido. Eu não ofereci riscos à segurança de ninguém. Não me foi apresentado nenhum estatuto interno do shopping de rua determinando o que se pode e o que não se pode fazer. Provavelmente essa “lei interna” nem existe. Certamente o guarda me chamou a atenção pelo simples fato de eu fugir dos padrões da maioria circulante. Pessoas como ele, que precisam muito do dinheiro pouco, aceitam empregos, cargos e determinações sem ao menos questionar esses tais valores sociais. Vestidos de farda, sentem-se tão autoridades quanto os milicos do nosso país. E, na cabecinha deles, inventar normas e procedimentos e abusar do poder nada mais é do que valorizar o seu trabalho. Se o Brasil está, do ponto de vista ético, de cabeça pra baixo, não é esse ato arbitrário do nosso soldado raso em questão que vai desentortar as coisas. Muito pelo contrário. São atitudes pequenas como essa que me fazem ter a plena convicção de que vivemos numa nação ridícula.