sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Entre o Haiti e a Austrália

Detesto essa tal de nomenclatura BRIC. Me dá enjoo até pra pronunciar essa palavra besta. Parece que estou cuspindo. Mas o que eu mais odeio é a razão pela qual algum economista míope e, provavelmente, sem ter mais o que fazer, criou esse status mentiroso de ascensão econômica. Melhor seria continuarmos “emergentes”, igual constava nos obsoletos alfarrábios ginasiais de Geografia. Eterno gerúndio que assume moderadamente a nossa inquestionável condição de pobreza. Mas não. É economicamente correto e poliano fazer com que as nações gigantes pela própria natureza, no que diz respeito aos números e cifras, encostem nos Estados Unidos, na Alemanha, no Japão. É que nem campeonato de futebol, ou liga de boxe, ou algum atributo desportivo similar. Para mascarar um desclassificado no ranking, os mecenas do esporte criam outros parâmetros e fazem com que este subalterno do pódio se considere um campeão. E o que me traz mais aborrecimento não é essa maquiagem produzida para se elevar a auto-estima do subdesenvolvido. Essa sigla dadaísta cria a falsa sensação de que os quatro países fazem parte de um mesmo grupo, homogêneo e planificado, sem levar em conta suas causas e diferenças históricas. A Rússia passou por uma ditadura do proletariado e agora está tirando o atraso de uma demanda reprimida. A China utiliza mão-de-obra escrava para sua linha de produção ser competitiva com a América do Norte e o Japão.

Mas vamos falar de Brasil. Chega de viajar. Brasileiro é bipolar, isso é notório. Durante a ditadura, o período inflacionário, o povo brasileiro se acostumou a conviver com o pessimismo. Com a crise da Argentina, muitos chegaram a acreditar que o efeito da vodka Orloff “eu sou você amanhã” iria aterrissar por aqui. Afinal, o país que vai pra frente puxou o freio de mão e ficou à deriva do FMI e dos mandamentos internacionais. Teve até quem pensasse que vender a Amazônia seria a solução para quitarmos nossas dívidas com o mundo. E aí, de repente, não mais que de repente, surge Luís Inácio da Silva, o cara. Ele, que trouxe sua Bolsa-Esmola para acabar com a pobreza da nação. O homem que sabia de menos. O homem que ganhou os holofotes da imprensa internacional porque, no início de seus discursos, se preocupava mais com o resultado do jogo do Corinthians do que com o repúdio que o mundo exerce sobre Mahmoud Ahmadinejad e Hugo Chávez. O presidente mais popular da história entupiu o povo de Prozac. Fomos dormir pobres e acordamos ricos. Como num passe de mágica. Como nos tempos do overnight. A crise mundial que soterrou a Islândia e quebrou a General Motors soou aqui como uma grande mentira. Crise, que crise? Somos auto-suficientes, temos o Pré-Sal, sediaremos as Olimpíadas e a Copa do Mundo numa tacada só. O Brasil ficou bonito na foto. E o brasileiro continua sedado, ainda sob o efeito do torpor alucinógeno da droga “boa noite Cinderela”, que nos assalta enquanto sonhamos. Com a volta do conforto da classe média, a autoconfiança evoluiu pra arrogância. O caipira da era FHC agora é country. Saímos às compras como quem vai à guerra. Afinal, somos os endinheirados do continente, a bola da vez. Temos orgulho de poder comemorar um Natal por mês. Podemos agora ter ar-condicionado em casa e ir ao exterior. Podemos mostrar no país das Torres Gêmeas como o palhaço Mazzaroppi de Garanhuns prosperou. Estamos confundindo estabilidade temporária com euforia megalomaníaca. Olhamos para o nosso próprio umbigo, mas não fazemos a mínima questão de cuidar da micose dele. Temos os maiores shopping centers e as maiores favelas. Compramos mais carros novos do que os alemães, mas também somos campeões invictos de acidentes de trânsito. Temos mais de um celular por habitante e um médico para cada 600 habitantes, metade do mínimo recomendado pela ONU e pela OMS. Somos um dos países que mais acessa a Internet e que menos lê livros. Falando nisso, temos a pior banda larga (e a mais cara) e o pior serviço de telefonia móvel do mundo. Estamos no G8 da economia, do futebol, da propaganda e da corrupção política. Somos pentacampeões no esporte mais popular do século passado, mas ocupamos o 85º lugar na Educação. Somos imbatíveis na quantidade de processos encalhados. Temos os médicos mais bem qualificados e o pior serviço de saúde pública. Na lista dos melhores países para se viver, ocupamos o modesto 50º lugar. Mas OK. Lula is the man.

Faz um ano que houve os terremotos no Haiti, orifício retal do mundo, um dos piores lugares do planeta pra se viver. Vendo as imagens pela TV, parece que agora a situação tá ainda pior do que nos momentos da catástrofe. É triste ver as ruínas de uma cidade que reconstruiu apenas 5% do necessário, as pessoas na rua passando fome, a malária dominando o visual feio e enrustido de uma população que não sabe mais a quem recorrer. Isso sem falar no exército de prontidão nas ruas, figura de força psicológica bruta e soberana para tentar coibir saques e manifestações. O Haiti é escombro do passado, miséria esquecida da humanidade.

Acabei de ler uma manchete que diz que, devido a uma gestão mais planejada, o número de mortes na Austrália, decorrentes das enchentes, é menor do que no Rio de Janeiro. Não li a matéria, não fiz questão de ler. O próprio título já anunciava uma obviedade. Claro que morte, uma única que seja, é sempre algo a ser lamentado, independentemente das causas e do lugar. É igualmente comovente a situação da Austrália, e também a história do menino que morreu afogado ao tentar salvar seu irmão mais novo. Mas o Rio de Janeiro chora mais de 500 vítimas soterradas. É meio milhar que vem a faltar nessa órbita por causa de São Pedro, da força netuniana das águas e, principalmente, por causa da incompetência administrativa e do descaso político. O Brasil sempre se vangloriou de ser a terra da fartura e da abundância de recursos, do clima favorável, da quase inexistência de acidentes geográficos. Se São Pedro realmente quisesse testar seu rebanho aqui embaixo, não seria tão previsível assim.

Quem percebe que essas sucessivas tragédias no país não são uma anormalidade meteorológica nem uma vontade divina, provavelmente deve concordar que ainda temos um longo caminho a percorrer até sermos reconhecidos como potência. Frente a essas duas realidades apresentadas, ocupamos o largo vácuo da coluna do meio. Não atingimos o nível zero do Haiti, mas estamos bem longe de poder provocar os vizinhos hermanos como se fôssemos reis da cocada preta. O Brasil tem, sim, capacidade de atrair investimentos estrangeiros e de melhorar a qualidade de vida de sua população. Mas os deslizamentos recentes atestam que, por enquanto, devemos nos contentar apenas com o ranking meramente mediano. Somos mornos, somos mais ou menos. Somos emergentes, tal qual a classificação que nos foi dada pelos livros de Geografia de 40 anos atrás.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A arte foi bela

Sonhar é preciso. Sonhar faz bem. Imagine conviver com uma sociedade organizada, numa metrópole-modelo, referência para os padrões internacionais. Encerrar a sua jornada diária num cinema que nada mais é do que a extensão de sua casa ou de seu trabalho e, portanto, localizado na própria rua em que você está acostumado a habitar. Suponha que sejam as ideias que movem e transformam o mundo. Ideias valem mais que dinheiro. E é no cinema que você vai se alimentar delas, pra depois descarregar seu esforço cíclico ao se reunir com seus amigos num bar de esquina em frente ao cinema. Uma taverna famosa por congregar os mais entusiasmados artistas, intelectuais, cientistas e manifestantes políticos. É o cinema que provoca, desconstrói e reformula suas ideias. É o cinema que te traz insumos para travar as discussões homéricas com estes amigos nas rodadas de cerveja. E é neste bar que você irá, por causa do filme que acabou de ver, tentar entender melhor o ser humano ou traçar os rumos pra consertar a desordem deste país.

Diante deste quadro que beira o absurdo, seja pela utopia de sua proposição ou pelo desbotamento descritivo de suas linhas, fica fácil concluir que o cine Belas Artes morreu por causas naturais. Infelizmente, o templo heptagenário da cinefilia paulistana estava praticamente falido depois que perdeu o patrocínio do banco HSBC. O bar de esquina (Riviera) fechou faz tempo, não existe mais. A intelectualidade então, nem se fala. Tirando os eventos de relativo sucesso (Noitão e Sessão Cineclube, dependendo do filme) e os dias da semana com valores dos ingressos mais convidativos (segunda e quarta-feira, R$ 10), foram poucas as vezes que vi o Belas Artes movimentado. Já faz um tempo que o cinema se afastou de seu(s) público(s). A população considerada “média” prefere os blockbusters que não passam ali. Para essas pessoas, o cinema está mais para a diversão do que para a reflexão. Nada mais rentável então do que fazer apostas seguras, considerando-se que filme é como uma bolsa de investimentos e de cotações e não objeto de análise da matéria. Este nicho prefere a segurança dos shoppings, redoma e cárcere do consumismo, e a Sétima Arte ali se mistura ao odor homogêneo das batatas fritas, dos perfumes de marca, ao som irritante dos bipes das senhas e do poperô das lojas, ornada com o visual sinestésico e multicolorido Flicts, amálgama acinzentado do nada. Cinema de shopping não tem cara, não tem gosto, não tem vida. Mas se é ali que se depositam os trocados que fazem a diferença nos relatórios semanais de bilheteria do Filme B, resta pouco a se criticar. Mas o Belas Artes não perdeu a guerra somente em relação a essa cultura rasteira. Os próprios cinéfilos de rua andaram preferindo outros redutos vizinhos. Para eles, o Belas Artes ficou devendo a reforma que nunca houve. Com o patrocínio bancário, realizou apenas uma maquiagem nas suas instalações, mudou o visual, trocou assentos, tirou o mau cheiro e tal. Mas faltou uma reformulação em sua estrutura. Em tempos de dolby surround e 3D, a qualidade de som permaneceu discutível até os últimos dias. E a projeção também deixou a desejar, se comparada à concorrência. Isso sem falar na projeção em formato digital, que nem vou mais entrar nessa seara. Na verdade, as salas que valiam a pena frequentar eram as superiores, numa tentativa de se colocar a arte mais próxima ao culto e à adoração divina.

Verter lágrimas para o Belas Artes é mais um ato simbólico do que uma manifestação sincera de tristeza. No ano passado, o Gemini também fechou suas portas e não conseguiu trazer nenhuma comoção maior do que o caráter saudosista que embalava os farrapos descosturados das salas decadentes. Esse tipo de manifestação em caráter de luto traduz apenas um sintoma de que o cinema de rua, como um todo e não especificamente este ou aquele caso citado, está morrendo aos poucos. Houve uma mudança cultural, uma migração progressiva e inerente de hábitos. O download internético e individualista é um processo irreversível, assim como as fitas VHS também um dia foram uma ameaça ao cinema em película. De um modo geral, 2010 foi festejado com um aumento de bilheteria, mas isso causou pouco impacto à sobrevivência do Belas Artes. A esquina da Paulista com a Consolação (nome de rua bastante apropriado ao momento) vai ficar na memória por causa de sua carga cinematográfica histórica, como a exibição exclusiva de Godard e a confusão que seu Je Vous Salue Marie gerou, a polêmica em torno de O Último Tango em Paris, as intermináveis sessões de O Carteiro e o Poeta, Cinema Paradiso, As Bicicletas de Beleville e, recentemente, Medos Privados em Lugares Públicos, os festivais de cinema russo, a nouvelle vague, o período Gaumont, a Mostra de Cinema, etc. É bom lembrar que o charme dessa esquina nada mais é do que um imóvel para fins comerciais. Seu destino ainda é uma incógnita, mas tudo aponta para um templo do comércio, do pagamento a prazo, do atendimento frio e impessoal que nada lembra o aconchego da sala escura. Não adianta chamar o seu Maluf de mesquinho ou insensível à causa. O prédio do Belas Artes foi colocado em leilão. Ganha quem oferecer mais pelo espaço. No contexto capitalista que permite a proliferação de cultura em shopping, essa atitude é até natural. Se o verdadeiro cinéfilo ama o Belas Artes só que à distância dele, em nada adianta o proprietário amargar prejuízos mensais em nome do luxo de oferecer à cidade um patrimônio da belle époque. A única maneira de manter o Belas Artes vivo, ainda que respirando por aparelhos, seria uma intervenção da Prefeitura ou alguma medida judicial proibindo a mudança de sua trajetória. Amor platônico não é forte o suficiente para manter a arte viva. Numa sociedade em que o cinema é pensado como produto, amor que sustenta a arte é o amor pago. É o amor prostituto.