terça-feira, 29 de março de 2011

Gelo e limão

Outro dia um amigo meu colocou no Facebook que sente saudades de encontrar nos supermercados a batata sabor batata. Concordo plenamente com ele. Hoje a capacidade inventiva é tão grande que a famosa batata chips considerada “original” limita-se a ocupar uma pequena porção do fundo de uma gôndola, sem tarja de preço, com poucos saquinhos disponíveis de marcas genéricas e prazos de validade beirando o vencimento. O monopólio territorial cabe aos transformistas, tubérculos processados que querem se sentir sabor queijo, ervas finas, presunto, churrasco. Alguns exemplares são ainda mais pretensiosos e nutrem uma admiração ainda maior pelo luxo da esquizofrenia: presunto parma, peito de peru, picanha. Outros tentam se aproximar ao gosto popular, como se fossem convidados da festa da cerveja com pagode, e perdem a noção do ridículo: frango à passarinho, calabresa, cheddarburger. Coitadas das batatinhas quando nascem. Reféns de uma indústria que precisa a toda hora se reinventar, se reciclar, criar metabolismos transgênicos para dar vida ao nada. A Ruffles até lançou um concurso para premiar os autores das ideias mais mirabolantes de se tentar disfarçar a mesmice. Já tô imaginando os rompantes de criatividade: batatas ao pesto, à carbonara, sabor queijo brie, salmão, ovo de codorna, chester. Não sou exatamente um ortodoxo, mas fica difícil engolir essas mutações gustativas que tentam encobrir a crise de identidade das fábricas: oferecer uma infinidade de sabores para os produtos sem sabor.

Há um tempo atrás, em algum lugar do planeta, algum infeliz teve a brilhante ideia de alterar o sabor da irretocável Coca-Cola, deus-sol de todos os refrigerantes. Para dar um sabor extra, ou talvez para reduzir os possíveis efeitos colaterais do néctar escuro gaseificado, o herege sugeriu adicionar uma rodela de limão. O que era pra ser um agradinho ao chato, ou um diferencial de um determinado estabelecimento, passou a ser modinha. De uma década pra cá, é praticamente impossível se tomar a Coca como ela veio ao mundo, em seu sabor “original”, Coca-Cola sabor Coca-Cola. Mesmo que você peça, pausadamente e com ênfase nas suas preferências, dificilmente irão atender o seu pedido. Na linha de produção dos bares e restaurantes, a famosa “Coca com gelo e limão” é default de fábrica. E se você fizer um pedido ainda mais personalizado, suscetível a confusões ainda maiores, como por exemplo sem gelo e com limão, pura com gelo, com limão espremido, torça para que a pessoa do lado de lá do balcão seja um Ph.D. em Física Quântica. A exceção virou regra. Todo estabelecimento, independentemente da região ou da classe social que pretende abrigar, coloca em seus refrigerantes algum pedaço de fruta, como se isso fosse o exótico chamariz de vendas. É o limão na Coca, a laranja no guaraná... próximo passo seria o quê? Fanta Uva com gelo e acerola?

É possível compreender a vontade do tal consumidor se sentir exclusivo. Além do sabor acentuado da fruta, a acidez do limão é capaz de quebrar algumas propriedades da Coca, um produto predominantemente alcalino, tornando a bebida mais suave ao paladar. Mas isso é uma hipótese, a meu ver, sem muito sentido. Não vejo muita lógica nesta fórmula de equilíbrio gástrico. Pedir Coca-Cola com gelo e limão é o mesmo que ver um filme pornô com a Pamela Anderson e o Tiririca. Existe aí uma relação de contrapesos que não se sustenta. Sei que é pedir muito a volta da pureza e da inocência dos ingredientes das mercadorias de antanho, mas o que vemos hoje é um bacanal de quitutes e leviandades. De complicado, já chega o marketing. Quero voltar a me embriagar com a simplicidade borbulhante da equação primitiva da Coca-Cola e seus 418 compostos químicos. Não preciso mais do que isso.