segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O câncer não é do Lula

Em primeiro lugar, quero começar o texto verbalizando todo o meu apoio ao ex-Presidente, Lula, e minha torcida para que sua recuperação seja rápida e que seu tratamento corra da melhor maneira possível. Agora, vamos aos meus comentários sobre o assunto.

Corre pelas redes sociais um montão de posts e mensagens criticando e repudiando a ironia que se faz em relação ao câncer da laringe do Lula. Pessoas que não admitem uma comparação entre os fatos, talvez mostrando a opinião de que um erro não justifica o outro. O artigo publicado no blog do Gilberto Dimenstein, inclusive, enaltece algumas características de governo do ex-Presidente. Antes de continuar, um parênteses: a maioria das reações sobre o estado de saúde do Lula clamava para que a figura pública mais importante do país nos últimos anos fosse internada em uma unidade do Sistema Único de Saúde, o SUS.

É claro que um assunto doloroso como esse deve ser tratado com toda a lisura e respeito. Dessa vez, acredito que o momento específico não é dos mais convenientes para se fazer piadinhas, correndo-se o risco de eu ser mal interpretado, perder amigos e a minha credibilidade alcançada. Também não torço para que o Presidente seja tratado com demoras e com sofrimento. Mas o que no fundo rege esses posts malditos, revoltados, é um sentimento coletivo de indignação que não pode ser ignorado e, tampouco, censurado. Talvez um ou outro tenha se concretizado de maneira abusiva, agressiva e pouco democrática, o que acho condenável. Mas, de fato, é mesmo triste conceber a ideia de que a elite, principalmente aquela que representa o povo, vá se tratar nos melhores hospitais da América Latina, frente à realidade paralela de um país que investe quase zero na Saúde, na Educação e na Segurança, pra não falar de outros serviços igualmente precários. É ingênuo pensar que o governo PT promoveu a igualdade dessa nação. E, quando uma figura pública aparece na mídia em seus carros blindados, com sua tropa de elite particular, ou que visita o SUS apenas em época de campanha eleitoral, isso só revela a ampliação do distanciamento entre quem precisa desses serviços e quem os torna viáveis e acessíveis. Se a exaltação dos comentários do Twitter, do Facebook e de algumas celebridades incomodou os correligionários e simpatizantes do partido de situação, ao menos ela trouxe à tona uma questão que revela a incoerência de governança desse Brasil das capitanias hereditárias. Se os serviços públicos são apresentados como os mais modernos e eficientes, se eles pretendem ser, numa atitude arrogante de quem assina os contratos, uma referência continental, por que então não podem ser usados por parlamentares? Esse que é, e continua sendo, o grande abismo brasileiro. Quando os internautas se manifestam com revoltas virtuais do tipo “veja o que é bom pra tosse”, “experimente do seu próprio veneno”, isso é visto por alguns como uma atitude descabida para o delicado momento. Eu acho que a verdadeira luta não é contra o câncer que assola os presidentes latinoamericanos, mas sim contra os lobbies dos planos de saúde, contra a negligência dos hospitais da periferia da Baixada Fluminense, dos erros médicos corriqueiros em hospitais de base. Sim, esse discurso é desgastado e o sistema que rege esse estado das coisas está falido. Mas é bom lembrar que foi essa “esquerda” que lutou pela igualdade de bens e direitos, pelo acesso de todos aos serviços de qualidade, e que os ganhos em modernidade devem ser compartilhados por toda a sociedade. Senhor Luiz Inácio da Silva, eu não quero que o senhor seja tratado pelo SUS, até porque EU jamais gostaria de ser tratado ali. E, já que essa comparação é lida como um desrespeito ao seu estado clínico, gostaria ao menos de saber então se eu e todos os indignados da internet podemos comparecer ao Hospital Sírio-Libanês. Apenas para fazer uma visita ao senhor.

Atitude digital

Manifesto público da Associação Brasileira de Cinematografia:

Atitude Digital

Recomendações Técnicas para a Imagem e o Som nas Mídias Audiovisuais Digitais

A ABC (Associação Brasileira de Cinematografia), que tem como associados os técnicos responsáveis pela criação da imagem e som do audiovisual brasileiro, vem a público manifestar sua crescente preocupação com a forma com que os seus trabalhos vem sendo apresentados ao público, e propor uma ampla discussão ao longo de toda a cadeia produtiva (técnicos, produtores, realizadores, finalizadores, distribuidores, laboratórios, imprensa especializada(1), autoridades e instituições do cinema).

Esta iniciativa ganhou urgência face aos problemas técnicos constatados pela ABC durante a exibição de muitos filmes nas últimas edições dos principais festivais e mostras realizadas no Brasil, e também na divulgação pelas emissoras de televisão, e tem por objetivo buscar, em conformidade com todos os envolvidos, a melhor forma de preservar a qualidade do audiovisual brasileiro, adotando padrões técnicos universais e aperfeiçoando os procedimentos ao longo do processo produtivo. Esse é um momento de acelerada transformação tecnológica - com todas as dificuldades e percalços que isso implica, e à ABC cumpre agir no sentido de assegurar ao público a melhor qualidade possível na apresentação da obra audiovisual.

A cadeia produtiva no foto-químico

Até alguns anos atrás o percurso das nossas imagens e sons entre o momento da sua captação e apresentação poderia ser descrito como:

Filmagem > Laboratório > Montagem > Finalização > Copiagem > Projeção

Tradicionalmente, era responsabilidade do Diretor de Fotografia dominar a técnica da filmagem, do laboratório processar a película dentro de padrões rígidos que garantissem a qualidade do registro fotográfico, e do Exibidor projetar os filmes também dentro de padrões que permitissem a reprodução fiel da imagem e som concebidos na origem por Produtores/Diretores, Diretores de Fotografia, Diretores de Arte e Equipe de Som.

Ao Diretor de Fotografia cabia indicar equipamentos e procedimentos técnicos necessários para a impressão no negativo da imagem concebida para o projeto. Era de sua responsabilidade garantir a obtenção de uma imagem de qualidade compatível com o grau de investimento financeiro e artístico de todos os envolvidos no processo de produção e criação.

Para garantir a preservação da qualidade da imagem e som foi necessário desenvolver uma metodologia e criar padrões técnicos de referência para todos os processos. Diretores de Fotografia, Técnicos de Laboratório e de Projeção se pautaram por eles visando garantir a excelência do espetáculo cinematográfico.

A revolução digital trouxe a falsa esperança de que a qualidade do original seria integralmente preservada ao longo da cadeia de produção. Além disso, o digital inaugurou a facilidade de acesso (preço e acessibilidade), aos equipamentos (hardwares e softwares) por parte dos produtores e técnicos .

Com o desenvolvimento da tecnologia digital, que multiplicou formatos, mídias e codecs (codificadores/decodificadores), surgiu uma enorme diversidade de caminhos para as nossas imagens, da captação até a exibição. Expandiram-se as possibilidades criativas e com isso tornou-se imperativo o estabelecimento de uma metodologia e de padrões rígidos como a que havíamos alcançado no foto-químico. A facilidade das interfaces amigáveis, de certa forma mascara a complexidade crescente dos equipamentos e processos. Um erro numa fase intermediária muitas vezes só aparece quando da exibição da peça finalizada.

A partir de 1999 a tecnologia DLP Cinema (Digital Light Processing), foi aprovada pela indústria cinematográfica norte-americana, sem que entretanto fossem criadas normas técnicas ou padrões definidos para regulamentar o que passou a ser chamado de Cinema Digital. Na ocasião ficou estabelecido que sob essa denominação estariam aquelas exibições realizadas com uma resolução espacial superior a 2K (2 mil pontos por linha). Seis anos se passaram até que a DCI (Digital Cinema Initiatives), um grupo formado a partir das majors de Hollywood, publicou em um documento abrangente estabelecendo as especificações técnicas para o cinema digital com o intuito de estabelecer limites de qualidade tão altos quanto o filme 35 mm(2). Esta iniciativa foi encampada pelo meio cinematográfico e pela SMPTE (Society of Motion Picture and Television Engineers) que mais tarde criou um padrão específico para atender tais requisições.

No Brasil, com a alegação de que a produção independente, que hoje migrou maciçamente para o digital, não teria condições de gerar rendas para cobrir os custos da instalação de salas com o padrão DCI, foi adotado informalmente um "padrão brasileiro" que reuniu elementos de hardware e software já existentes no mercado para atender a um modelo de negócio considerado factível pelos empresários da distribuição e exibição digital. Este padrão está sensivelmente abaixo daquele adotado mundialmente para o cinema digital. Como profissionais da imagem e do som sabemos que o aumento de variáveis no processo digital traz junto o crescimento da probabilidade de erros. Daí a necessidade de se aumentar o controle e não diminuí-lo como muitos erroneamente acreditam, e de adotar normas universais que venham disciplinar a cadeia produtiva do audiovisual.

O registro da imagem cinematográfica e do som implica investimento significativo de capital, criação artística e conhecimento técnico. Existe um processo de construção destes registros a partir de conceitos concebidos pelo núcleo criativo que devem ser preservados até sua apresentação seja ela em salas de exibição, televisores, computadores pessoais ou dispositivos portáteis. Ao escolhermos nosso equipamento de captação estamos definindo uma série de especificidades para nossas imagens que devem ser preservadas ao longo do caminho através de um workflow adequado, testado e aprovado pelo produtor.

Outro aspecto que preocupa a ABC nesse momento de transição tecnológica, é a ausência de cursos de atualização, reciclagem e formação de projecionistas e técnicos em projeção digital. Por outro lado, o sucateamento das sala de exibição em suporte foto-químico, consequência da ausência de investimento numa tecnologia cada vez mais considerada como em vias de desaparecimento, levou a qualidade da exibição nas salas de cinema ao patamar mais baixo que se tem notícia até hoje entre nós.

Nesta conjuntura, a ABC manifesta sua preocupação com o acúmulo de erros e a falta de controle de qualidade em todas as etapas do processo, especialmente na masterização e na exibição, o que compromete o trabalho de todos os envolvidos na criação da imagem e do som (Diretores de Fotografia, Diretores de Arte,Montadores, Figurinistas, Tecnicos de Som, Mixadores, Editores, etc).

Como ação inicial, estamos estabelecendo um Grupo de Trabalho dentro desta Associação, com o objetivo de preparar e divulgar as Recomendações Técnicas para a Imagem e o Som nas Mídias Audiovisuais Digitais; documento que descreverá em detalhe os procedimentos mínimos que assegurem a preservação da qualidade - com a reprodução fiel da imagem e som, da captação até a recepção final da obra.

A experiência do espectador diante das obras audiovisuais é nosso bem maior. Deve ser preservado e aprimorado. Para tanto, convidamos a todos os interessados a se unirem à ABC neste esforço.

São Paulo , 28 de Outubro de 2011

Presidente Vice-Presidente Secretario Tesoureira

Carlos Pacheco Adrian Teijido Rodrigo Monte Maritza Caneca

Membros do Conselho

Affonso Beato, Alziro Barbosa, Carlos Ebert, Henrique Leiner,

Jacob Solitrenick, Jose Francisco Neto, Jose Roberto Eliezer,

Lauro Escorel, Lito Mendes da Rocha. Lucio Kodato,

Marcelo Trotta, Nonato Estrela, Pedro Farkas, Roberto Faissal, Tide Borges.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

35ª Mostra - Nota de esclarecimento: projeções digitais

A 35ª Mostra gostaria de esclarecer os recentes problemas em projeções digitais em algumas sessões do evento.

A organização do festival tem a maior preocupação com suas projeções e seu público. Ao convidar um filme para fazer parte da sua programação, ou ao selecioná-lo, a Mostra contata os seus produtores e fica a cargo deles a decisão sobre o formato do filme a ser enviado. Cada vez menos os produtores se dispõem a produzir cópias 35mm, mais caras que as cópias digitais. Mesmo alguns filmes clássicos exibidos na Mostra em suas apresentações especiais foram restaurados digitalmente e nos são enviados no formato DCP com alta resolução (2K). Como foram apresentados em Cannes, Berlim e outros grandes festivais.

Devemos esclarecer que a Mostra não dá preferência aos formatos digitais, e sim às cópias 35 mm, uma vez que elas têm mais possibilidades de exibição nas salas que fazem parte do circuito da Mostra.
Mas neste momento vivemos o impasse da digitalização do cinema e das salas de exibição. E, como apontam reportagens recém-publicadas nos grandes jornais, os mercados europeu e americano encontram-se num estágio muito mais avançado do que o brasileiro no que se refere ao equipamento digital das salas de cinema.

Neste ano, cerca de 50% dos filmes que confirmaram sua participação na Mostra vêm em formato digital – por opção dos produtores, e não do festival. Para esta edição, houve a preocupação de fazer uma parceria com o Polo Cinematográfico de Paulínia para se ter mais projetores 2K que exibem DCP. Com o aluguel de três projetores DCP, o número de salas que exibem o formato durante o evento aumentou de três para seis. Ainda assim essas seis salas se deparam com uma grande demanda de filmes desse formato.

A direção da Mostra também teve a preocupação de não mais exibir DVcams para melhorar a qualidade da projeção. Os filmes internacionais recebidos em formato digital são encodados (convertidos) no padrão de exibição Mobz – os nacionais são encodados diretamente pelas produtoras – e são exibidos por ela e pela Auwe, as duas únicas empresas de projeção digital que operam nos cinemas da cidade.

A organização da 35ª Mostra está ciente dos problemas ocorridos nas projeções digitais e está colocando todo o seu empenho em resolvê-los junto aos fornecedores, exigindo um padrão de excelência que faça jus a nosso público.

Made in China

Muito se fala sobre a fragilidade econômica mundial pós-crise, mas o que eu fui constatar hoje é outro tipo de fragilidade. Já fiz isso algumas vezes, todos já fizeram. Entrar numa dessas lojas genéricas que estampam um cartaz feio, onde se lê “tudo a partir de R$ 1,99”, algo assim. Só que o máximo que a gente faz, na maioria das vezes, é bisbilhotar, olhar de longe com aquele olhar periférico sobre tal estabelecimento. Num caso ou outro, comprar algo mais à mão, de preferência numa gôndola próxima a saída e àquele fiscal de plantão, do lado de fora, atento a todos os movimentos. Hoje foi diferente. Fiz uma espécie de pesquisa de campo, de escavação. Entrei numa dessas lojas populares de esquina, pejorativamente apelidadas de “ching-ling”, pra tentar entender um pouco melhor por que o tal BRIC é a pedrinha no sapato da outrora soberana e atualmente desmoronada economia norte-americana. Como se fosse um detetive, fiz uma investigação, uma perícia minuciosa em cada um dos estreitos corredores do estabelecimento comercial. Lá se tem de tudo... de inútil. A não ser que você seja um consumidor inveterado de baralho, copo de plástico ou luminárias decoradas. Difícil imaginar que cada um dos artefatos será utilizado mais do que três vezes. E é curioso como essas lojas não têm cara, não têm identidade alguma. Num mesmo concorrido espaço, você pode encontrar desde um grampeador até uma concha de sopa. Esqueça a durabilidade, a exigência dos padrões técnicos, a obediência às normas métricas e científicas observadas no processo industrial de fabricação. Só de olhar, é bem capaz de você conseguir entortar alguns objetos. É assim que a China vem ganhando o mundo: oferecendo produtos com preços lá embaixo e qualidade mais embaixo ainda. Essas bugigangas são tão efêmeras quanto o estado eufórico de prosperidade dos países ditos emergentes. O próprio desconforto do lugar te obriga a fazer uma visita apressada, no máximo uma investida ao soslaio em algum artigo mais exótico. Tudo é muito amontoado, sem qualquer criério de ordem, organização, gênero ou espécie. Senti-me dentro de um confuso e abarrotado caldeirão de paella, a ser confundido com a paisagem caótica da espelunca. Mas acho saudável esse tipo de peregrinação. De vez em quando me considero um hipócrita ao conversar ou divulgar marcas e produtos de outra realidade social. Entrar numa dessas lojas é como estabelecer aquele contato próximo com o povo, tipo o aperto de mãos e o beijinho na testa das crianças que os políticos fazem em época de campanha eleitoral. A loja em questão em nada lembra aquela arrogância perfumada de shopping center. Tudo é feito e pensado para você entrar, comprar e sair rápido. E nem pense em tropeçar próximo a alguma prateleira. Lá você pode avistar um informe em papel sulfite A4, escrito em caneta hidrocor, bem claro e objetivo, sem a delicadeza das meias-palavras: “quebrou, pagou”.

Do mito à Mostra

Recentemente, escrevi um artigo apostando em uma reciclagem retrô da Mostra, que, por todos os motivos pessoais e pela perda inestimável de seu criador, encontrou campo fértil para se humanizar. Em seu recente texto publicado no blog, o crítico Zanin Oricchio pede essa humanização e o exercício compreensivo da cidadania a todos os cinéfilos que fingem não ver os problemas pelos quais a organização do festival vem passando. Concordo em parte com meu colega e amigo. De fato, a Mostra é muito maior do que o consumo de um produto, representado por um ingresso picotado. Mas, assim como em qualquer segmento de atividade, os profissionais envolvidos (humanizados ou não) precisam se adequar às novas épocas e aos novos processos. E o desfalque do líder do time, por mais comoção que possa gerar, não se justifica por si só para esse congelamento no tempo. De nada adianta, por exemplo, continuar solicitando ao almoxarifado uma fita corretiva, em tempos de tablets e netbooks.

Digo isso porque, salvo exceções, venho encontrando um distanciamento cada vez maior entre as expectativas de começo de maratona e os resultados que ela vem proporcionando. Os fatores são inúmeros, expostos ou não. Chegamos a uma cifra quase infinita de cancelamentos de sessões, alterações sem prévio aviso, atrasos, confusões. Se fizermos um paralelo entre a Mostra e outros festivais congêneres, igualmente nababescos e desengonçados, veremos que ela não é muito diferente do Rock in Rio, da Virada Cultural, das maratonas teatrais ou de qualquer outra olimpíada artística de grande porte. Não estamos ainda preparados para abraçar toda essa grandiosidade, tanto na sua proposta quanto nos seus efeitos.

No caso da Mostra propriamente dita, andei percebendo muitos problemas em relação aos formatos dos filmes. Como alguns já sabem, a esmagadora maioria dos filmes é apresentada em digital. Mas hoje, não basta apenas fazer a divisão dicotômica película/digital. Assim como o filme de rolo comporta diversas bitolas (16mm, 35mm, 70mm), o digital também apresenta diversas espécies, cada uma com sua idiossincrasia e suas limitações específicas. E nem todas as salas estão equipadas com projetores compatíveis com cada formato. Isso também ocorreu no Festival do Rio. E é bom lembrar que recentemente o circuito Arteplex trocou de empresa fornecedora, encerrando seu contrato com a Auwe Digital. Ou seja, todos ainda estão se adaptando às necessidades do momento. Agora há pouco, acabei de receber um e-mail da assessoria de imprensa justificando que o filme do Herzog não será exibido em alguns horários porque a empresa de envio do material não é autorizada pelo festival, o que impede o rastreamento do objeto. Enfim, estamos nos deparando aos poucos com uma gama complexa de restrições e imprevistos, decorrentes da modernidade, da tecnologia, de um modelo econômico que impôs estas regras sem consultar a sociedade.

Tudo isso afeta, é lógico, a correria do dia a dia dos cinéfilos. Numa espécie de efeito-dominó, um probleminha técnico da primeira sessão de uma determinada sala acaba afetando toda a programação corrente da data. Em poucos filmes a que assisti, já presenciei testes de áudio, filme sem legenda, trechos sem som, interrupções, sequências erradas (algo equivalente ao jurássico “rolo trocado”), isso sem falar naquelas tremedeiras de cena típicas de DVD pirata. Vale ressaltar que o filme da Naomi Kawaze está com uma qualidade muito boa, mas ele é um oásis no deserto. Para compensar, outros tantos estão beirando uma experiência sofrível de apreciação.

Não posso ser categórico e falar por todos, mas muitos de meus amigos cinéfilos são suficientemente “humanizados” e sensíveis à causa. E estão condolentes com esta situação e não abrem mão do prazer cinéfilo. Mas certas questões exigem muita paciência. Afinal, vale ou não vale a pena enfrentar o desconforto das filas, o estresse dos horários apertadinhos, a sonolência, a fome, o trânsito, a chuva, e, ao se sentar à poltrona (ou no chão, em alguns casos mais concorridos), deparar-se com tudo isso? Confesso que é da nossa natureza querermos ser os primeiros, os pioneiros das descobertas, e nos dirigimos à Mostra como quem precisasse fincar a bandeira na Lua. Mas muitos filmes aguardados já estão comprados pelas distribuidoras do país, alguns deles com datas previstas de estreia em circuito. Tenho minhas dúvidas da relação custo/benefício que a Mostra nos traz. Embora com outra roupagem, os problemas são antigos. Entretanto, continuamos apostando nela. E sofrendo com nossa ansiedade e com nossas angústias. Esse é o nosso combustível, por mais incoerente que possa parecer.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Leon e a Mostra

A matéria da Daniela Thomas publicada na Ilustrada do dia 17 de outubro é uma merecida homenagem ao fundador da Mostra de Cinema de São Paulo, Leon Cakoff. Um tributo necessário a quem foi um herói da resistência: lutou contra a censura, a ditadura e, principalmente, ao pensar pequeno da maioria dos distribuidores nacionais, acomodados em suas zonas de conforto para lançar somente filmes mais acessíveis e pouco questionadores, como as aventuras e ações em 3D, as insossas comédias românticas, e por aí vai. Daniela deve ter seus motivos pessoais, talvez tenha nutrido uma relação muito próxima e afetiva com Cakoff. Mas não creio que o óbito do mentor da Mostra seja argumento suficiente para um artigo tão hiperbólico, quase fanático, construído e enaltecido com a descrição de um empurra-empurra mas com a louvação monumental de um obelisco. Prefiro deixar registrado um epitáfio mais justo, passionalmente mais comedido como é de minha natureza, mais calcado na importância da Mostra para a história da Sétima Arte em São Paulo e na qualidade de seus pré-lançamentos e suas retrospectivas.

Como alguns poucos sabem, minha mãe fez uma espécie de voto de protesto e deixou de frequentar a Mostra, questão de uns 3 anos pra cá. Por mais compreensível e justificável que fosse o motivo alegado pelos organizadores, a atitude prepotente de coibir sua presença num determinado tipo de sessão, praticada por um imberbe e incompetente assecla, criou um mal-estar sem precedentes para quem tanto apoiou a causa e ajudou a divulgar o evento. Num misto de adesão ao movimento, aliada à minha falta de tempo, também diminuí consideravelmente minha presença nas sessões da Mostra. Mas não é o momento mais adequado para nos lembrarmos de coisas ruins. A Mostra foi um marco fundamental na quebra de paradigmas em relação às escolhas de filmes a ser lançados. Melhor reter na memória o autógrafo que minha mãe guarda do então garoto Quentin Tarantino, o tagarela hiperativo que carregava debaixo do braço o seu longa de estreia, Cães de Aluguel. Ou o encontro com Alexander Sokurov. Ou o momento em que ela subiu ao palco e entregou o troféu a Marco Tulio Giordana por seu filme Os Cem Passos. Coisas assim. Minha mãe cansou de dar entrevistas e aparecer em alguns veículos de comunicação, mas infelizmente a abordagem do fato, na maioria dos casos, se deu pelo aspecto sensacionalista da cisa. Um equívoco, a meu ver. O motivo da minha mãe ver os filmes da Mostra não é aquela brejeirice de escapar dos afazeres domésticos e se esconder em uma sala de cinema, como se estivesse cabulando aula. Pelo contrário. O que leva minha mãe aos filmes é o encontro. É poder ver, num único dia e em um único lugar, as culturas, as línguas, os costumes e os traços complexos e multifacetários do ser humano. E bons exemplos nunca faltaram. É justo lembrar, a Mostra nos trouxe o prazer de desvirginar Haneke, Kiarostami, Dardenne, Assayas, Gitai, entre tantos outros. Contudo, coincidência ou não, pelos fatores acima enumerados, mais a grandiosidade que o evento adquiriu, a Mostra aos poucos foi deixando de ter a minha cara. Perdi completamente aquela ansiedade, aquele frisson incontido pelos tão aguardados 20 dias de um estado simultâneo de deleite e fadiga. Quanto maior ficou, mais visível ficaram seus sinais de desgaste. No decorrer dos anos a Mostra, é notório dizer, infelizmente sofreu muito com sua desorganização, com suas falhas técnicas, atrasos, retenções na alfândega, cancelamentos, etc. Isso sem falar na péssima qualidade de exibição de alguns filmes, principalmente aqueles que rodam os festivais do mundo inteiro e nos chegam em uma tosca versão “demo”. E, quando um dia foi dito, em coletiva de imprensa, que o público pagante representava uma porcentagem mínima para arcar com os custos totais do festival, ficou claro esse distanciamento cada vez mais acirrado dos cinéfilos e uma preocupação ainda maior em agradar a interesses de patrocinadores e mecenas. A Mostra foi perdendo seu cromossomo genético da vanguarda, do garimpo, da descoberta do inédito. Deu-se a entender, com a calvície e o passar dos anos, que o contestador Leon entrou no sistema. Um sistema mais centro-esquerda, cinematograficamente falando, mas ainda assim um sistema, regido por regras e interesses próprios. O então rebelde da tirania promovida pelo AI-5 passou a ser meramente um viabilizador cultural, um encurtador de distâncias, um mediador de um debate que deixou de existir.

Quer queira quer não, a Mostra estabeleceu um pacto com a cidade, com o circuito dito alternativo, com o cinéfilo paulistano. E, como todo pacto, existe a solidariedade na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Não deu para ficar incólume ao texto do Cakoff publicado na Folha no começo do ano, um artigo com cara de despedida, uma espécie de testamento jornalístico-cultural. Ali, o organizador tornou pública sua doença, sabiamente não dissociada da Mostra. Difícil dizer se este câncer foi uma disfunção citológica, uma vontade divina ou a somatização do fardo de se carregar nas costas o maior evento cinematográfico de São Paulo.

Dada a importância deste evento, seus realizadores foram se tornando não menos importantes. Natural, até. Negociar com investidores, posar ao lado de autoridades civis, dar entrevistas, tudo isso ajudou a inflar egos na proporção de suas responsabilidades. Em situações públicas, por exemplo as coletivas de imprensa, a aparição midiática do casal era o reflaxo do brilho e do glamour que o cinema proporciona. Leon e Renata surgiam minutos antes da cerimônia se iniciar, algo que tomava as mesmas dimensões do tapete vermelho do Oscar. Entretanto, por uma obra do destino, na última coletiva, a esposa de Leon e coorganizadora da Mostra, Renata de Almeida, esteve ali, próxima aos jornalistas, durante quase todo o receptivo. Naquele dia, Leon já estava internado e, por conta desse infortúnio, a Renata estava visivelmente abalada, ameaçando o tempo todo despejar sua primeira lágrima em virtude de sua aflição e ansiedade. É a primeira vez em que ela, depois de muitos anos, comanda sozinha este barco. Bem no ano em que o Brasil tem uma mulher à sua frente de governo. E, talvez por uma soma de fatores, senti a Renata muito mais próxima, mais descalça, mais orgânica. Os agradecimentos a toda a equipe foram sinceros e não protocolares. E, provavelmente devido a toda essa vulnerabilidade, a essa fragilidade humana, ouso arriscar um palpite de que a Mostra tem tudo pra ser uma das melhores dos últimos anos. Foi falado que, por uma decisão ainda do Cakoff, que a Mostra iria abandonar um pouco seu gigantismo megalomaníaco. Isso, em termos práticos, diz muita coisa. Afinal, é mais fácil domar 300 leões do que quase meio milhar deles. O risco da coisa fugir do controle cai um pouco. Com um número mais restrito e a opção de se exibir somente filmes inéditos (tirando as retrospectivas), o cinéfilo pode encontrar mais tempo para ver, digerir, depurar e reter os filmes. Que é a principal característica de um festival. Este ano, a Mostra tá mais para um menu degustação do que para um rodízio, o que é melhor e mais saboroso para todos. Mas não é só por isso. Retraindo-se a quantidade de películas e estipulando-se uma seleção mais criteriosa de seus títulos, a Mostra encontra maiores condições de resgatar seus valores mais antigos e mais intrínsecos, preteridos por essa pressa efêmera de correr atrás do próprio rabo. Seria um saudável paradoxo ver nessa Mostra o diálogo com o mundo atual, em sintonia com a reciclagem retrô de posturas das edições passadas. Talvez tenha sido esse o maior legado do Cakoff: fazer com que voltemos a experimentar os filmes na tentativa de descobrirmos a nós mesmos, como fazíamos no começo. O resto é grandiloquência panfletária.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Estupro à democracia

“Sabe qual é o cúmulo da mira? Transar com uma grávida e acertar o ânus do feto”. Essa piada eu conheço faz muito tempo. E já ouvi algumas vezes, sem qualquer tipo de represália ou algum esboço de reação adversa. É uma anedota típica de roda de amigos. Um pouco indecente e de gosto duvidoso talvez, mas não se trata de um texto imoral ou proveniente de uma visão de mundo torpe e abjeta. Pra você ter uma ideia, foi MINHA MÃE quem me contou essa piada pela primeira vez. Ou seja, não é propriedade restrita e limitada dos comediantes mais, por assim dizer, transgressores, malditos ou simplesmente boca-suja.

Recentemente, o comediante e apresentador Rafinha Bastos fez uma piada nessa linha ao vivo, durante o programa CQC, e o alvo foi a cantora Wanessa Camargo. Embora com palavras mais polidas do que a piada original existente, o tom “irreverente” foi mais ou menos o mesmo. Mal sabia a pessoa mais influente do Twitter que estaria mexendo num vespeiro. A cantora se ofendeu. Seu marido, empresário de uma agência, e Ronaldo Fenômeno, amigo do empresário e garoto-propaganda de uma operadora de telefonia móvel, também se ofenderam. Marco Luque, companheiro de Rafinha no programa e também garoto-propaganda da mesma operadora do jogador, repudiou o comentário infeliz. Resultado: cedendo às pressões, a Rede Bandeirantes de televisão, numa atitude hipócrita e covarde, decidiu afastar o apresentador por tempo indeterminado. Bastou uma ligação telefônica (de Claro para Claro?). Ele está de molho, está de quarentena, aguardando um parecer de uma escala maior do poder.

Junto com outras notícias que enfatizam a desgraça, como as rebeliões na Síria, a crise na Europa, a alta do dólar, a soltura do atropelador assassino e seu carro de luxo e as contínuas greves, essa também foi uma das mais comentadas. Rafinha, de ídolo dos nerds, passou para o banco dos réus deste mesmo eleitorado. De capa da Info, da RG ou da Rolling Stone, que enalteceram seus atributos físicos e intelectuais, passou a figurar, em questão de semanas, na capa da Vejinha, sob a alcunha de “O rei da baixaria”. Sua piada até pode ter sido um soco no estômago, um chute no ventre da famosa prenha. Mas é certo dizer que Rafinha foi nocauteado, sem nenhuma chance de se defender. Quem saiu perdendo? Ora, todos nós. Esse comentário apressado teria sido uma ótima oportunidade para a sociedade promover debates sobre a ética do humor e sobre seus limites e critérios. O apresentador deveria, no mínimo, ter um espaço condizente com seu maldizer para se retratar publicamente. Que nada. Vivemos no país da censura velada. A atitude da emissora, evidentemente, reflete muito mais a obediência servil a um jogo de interesses de quem tem influências na mídia do que a punição por uma falta de decoro propriamente dita.

Assim que soube da notícia do afastamento dele, no domingo à noite, publiquei a matéria no meu perfil do Facebook. As primeiras reações, talvez as mais imediatas e menos elaboradas, foram de amigos meus (prefiro não cometer a indelicadeza de citar nomes) pelos quais exerço uma profunda e sincera admiração. Pessoas com uma invejável erudição, clareza de raciocínio e capacidade de organizar ideias. Amigos de longa data, que me concedem a liberdade e me deixam suficientemente confortável para eu manifestar opiniões contrárias quando for o caso, se for o caso. Não quero fazer generalizações precipitadas, mas, coincidentemente, ambos regem uma preferência ideológica mais de acordo com o pensamento de esquerda, se é que isso ainda existe com a mesma coerência dos tempos de liberdade e luta. Talvez numa resposta movida mais pela urgência e pela emoção do que pela razão (talvez!), a primeira reação que vejo é a de que, na opinião deste cordial colega, todos os integrantes do CQC poderiam ser expulsos para o programa acabar de vez, e que ele (o CQC) não faria a mínima falta. Não foram exatamente essas as palavras, mas o sentido foi algo assim. Bom, é notória a precária qualidade dos programas de TV, isso ocorre faz muito tempo. Mesmo eu sendo assinante de TV a cabo, a quantidade de programas que vejo não passa de meia dúzia. Da mesma maneira que meu amigo se expressa, eu também não sinto a mínima falta dos humorísticos rasos, dos reality shows, das novelas açucaradas, das mesas-redondas, dos programas matinais, dos noticiários sensacionalistas, dos seriados enlatados. Mas, no meu entender, não vejo que a solução seja a eliminação pura, simples e rápida dessas porcarias que emanam dos eletrodos dos tubos magnéticos e empesteiam nossos indefesos neurônios. Aniquilar a televisão atual com um tiro letal de bazuca pode até erradicar seus efeitos nocivos, mas dificilmente irá chegar à causa do problema. E, mesmo que as intenções do inofensivo comentário madrugal de um post sejam apenas fazer rir ou polemizar sem um grande contexto, elas revelam no fundo uma súbita vontade tirana. Outro comentário que recebi, de uma amiga pela qual nutro uma admiração maior do que nossas afinidades, dizia que, dada a quantidade de merda que o Rafinha fala, a conta até que saiu barato. Algo nessa linha. Ou seja, seu temporário período de carceragem até que é um castigo justo pelo mal que ele faz à humanidade. Respeito ambas as opiniões e tenho certeza de que existe um embasamento lógico e elaborado por trás delas. Mas não posso deixar de ficar indignado ao perceber que o confinamento, a reclusão, a iconoclastia pura e simples, tenham vindo de pessoas com posições ideológicas que, historicamente, derramaram sangue pela democracia e pela liberdade de expressão.

Outro texto que me chamou a atenção, nesse mesmo grupo de comentários do post em questão, foi o link do blog da professora-doutora Lola Aronovich, Escreva Lola Escreva, intitulado “Politicamente incorreto não é transgressor, Rafinha”. No texto, a professora defende o uso do politicamente correto, algo condenado por quem se diz subversivo. A professora tem razão em alguns aspectos do artigo. Não podemos tratar o estupro, por exemplo, um assunto sério e traumático, um crime hediondo, com a leviandade e a expiação de culpa de quem simplesmente conta uma piada e sai andando. Lola cutuca na ferida ao apontar um paradoxo: se o humorista diz que fala “as verdades do cotidiano”, como é que ele pode rapidamente se justificar de uma polêmica saia-justa alegando que o que falou “é apenas uma brincadeira”, encerrando a questão e colocando o assunto no nível utópico e intangível da inverossimilhança? E mais: se a professora optou por trocar o “aleijado” pelo “portador de deficiência física”, o problema é dela. Ou o “mongolóide” pelo “possuidor de síndrome congênita da Trissomia do Par 21”. Ou, ainda, o “burro” pelo “cidadão dotado de reduzidas e obtusas faculdades mentais”. A professora tem plena consciência de que, ao substituir palavras que venham a ter uma conotação pejorativa, possa se distanciar do repertório popular. Não vejo problema algum, é um direito soberano e irrevogável. E se ela acha mais conveniente substituir o “humor negro” pelo “humor afro-descendente”, fique à vontade. Entretanto, como ela bem sabe, o humor ácido, corrosivo e sarcástico não vive às custas dessa boa educação no palavreado. E o que me incomodou no artigo foi a maneira como ela ataca alguns comediantes do CQC, principalmente os mais atingidos pelo mal-estar que geram com seus comentários. De cara, a blogueira confessa que pouco conhece esses personagens. E, ao que me parece, não faz questão alguma de conhecê-los, embora sustente suas críticas a eles mesmo navegando nesse perigoso vazio. No decorrer do texto, ela trata essas figuras públicas como “um tal de Danilo” e, mais pra frente, “Rafinhas e afins”. Não é a ironia do desprezo que dará sustentação ao seu ponto de vista. Eles não são pessoas quaisquer, surgidas no meio de diversos caça-talentos cuja razão social é a falcatrua. Embora o CQC vem demonstrando sinais de desgaste, isso é notório, é bom lembrar que o programa foi um dos pioneiros a invadir gabinetes de deputados, a exigir satisfações dos representantes do povo que ignoram o povo. Num determinado contexto histórico, político e televisivo, o CQC inovou. E recrutou comediantes da melhor espécie. Hoje o programa estampa um tipo de humor osteoporótico, visivelmente corroído, que trocou a irreverência pela caricatura de si próprio. Mas não é por isso que Lola pode afirmar que o humor stand-up é tudo uma coisa só, um balaio de gatos oriundos de uma geração espontânea, como se os “afins” do Rafinha fossem um bando de cordeiros seguindo seu pastor. A única “afinidade” que tenho com o Rafinha é a de subir aos palcos e dar a cara para bater. Entre outras coisas, estou me iniciando no stand-up, nem sei ainda se por hobby, vocação ou como um plano de previdência. Estou para o stand-up, metaforicamente falando, assim como o feto da Wanessa Camergo está para o mundo. E não pretendo, em hipótese alguma, acomodar minha comédia na zona de conforto do clichê ou das saídas fáceis e situações genéricas. Quero, e vou lutar pra isso, me destacar no mercado pela diferenciação. E ficaria muito ofendido se alguém me tratasse como um “afim” a mais de outro comediante, quem quer que seja. Claro que existem tácnicas comuns e estilos que inspiram gerações. Mas Lola dá a entender que os humoristas se reúnem periodicamente, como se estivessem num Concílio de Trento, e lá decidem as piadas que todos vão contar, com os mesmos recursos e as mesmas doses de preconceito.

O Brasil é um país emergente. Sediar uma Copa do Mundo, emprestar dinheiro pra Europa, fazem do Brasil um país emergente. E, da mesma forma, o povo brasileiro também é emergente. O Brasil hoje é um país que “se acha”, e isso, embora refresque nossa auto-estima, cria um problema sério para o desenvolvimento. Somos relativamente estáveis no bolso, mas continuamos pobres de espírito. Ainda temos muito o que aprender no que diz respeito à liberdade de expressão, à luta por direitos, ao debate, ao esclarecimento. O humor stand-up não deixa de ser, ainda em última instância, a nossa forma orgânica de dialogar com o mundo e com esse caos, nem que seja ¡à base do riso. É por meio das mais absurdas mentiras que chegamos às mais contundentes verdades. E quem conhece o Danilo (Gentili) sabe que ele já fez stand-up falando sobre o Sarney e a censura. E quem conhece o Rafinha sabe também que ele não é um moleque intempestivo e inconsequente. Ele já gravou uma série de episódios em que testa piadas novas e pede conselhos aos amigos de profissão. Como se fosse um raio-X, ele mostra no vídeo os bastidores da comédia, um constante exercício de tentativa e erro. É essa a verdadeira função do comediante. Socar, socar, socar. Cair, levantar-se. Pedir desculpas pro adversário? Quem sabe. Mas eu tô meio cansado das lutas mornas, das piadas voláteis, das generalizações. E fico muito triste com a resolução que deram ao caso Rafinha. Já que o Brasil pode virar um credor em relação aos países europeus, poderia pelo menos pegar como moeda de troca a ousadia da Holanda, um país que coloca em prática questões avançadas pra ver depois a reação da sociedade e, se for o caso, retrair um pouco. É desse tipo de irreverência, de preparo e de amadurecimento que precisamos. Podemos até ser a bola da vez mas, em relação à comédia stand-up, ainda somos da época e dos costumes dos talibãs.