terça-feira, 29 de novembro de 2011

Lula no Céu

Após algum tempo morto, desempregado e perambulando as galáxias, Lula resolve fazer um estágio no Céu, a mais importante e premiada agência de Propaganda.
Carregando seu portfólio, Lula entra na agência. Fica encantado com sua suntuosidade, com o pé direito triplo da recepção, seguranças espalhados pelo hall. É uma agência asséptica, toda branca, que ostenta colunas góticas e um enorme quadro de Klimt.
Vim falar com o diretor de Criação, diz Lula.
Imediatamente, a lacônica recepcionista desliga o interfone e pergunta: Qual o nome do senhor?
Luís Inácio da Silva.
O senhor tem hora marcada?
Sim, marquei com ele ontem por telefone.
A recepcionista olha pra baixo, pega o interfone, balbucia uma sílabas incompreensíveis com o interlocutor. Desliga o interfone, recompõe-se, cria um sorriso falso e diz pro Lula:
O senhor pode olhar para a câmera, por favor? Segundo andar, primeira à direita.

Lula dirige-se à Criação, espera sua vez de ser atendido num sofá de veludo preto. Folheia rapidamente as últimas páginas de uma Meio & Mensagem bem antiga, mais ou menos de 2045. Fecha a revista, inicia um nervoso e aflito sapateado sobre o chão de madeira laminada. Começa a assobiar uma música que não existe. Para. Pega seu iPhone e começa a mandar algumas mensagens, quando é interrompido pelo diretor de Criação, um senhor alto, esguio, camisa preta, barba grisalha por fazer e brinco na orelha esquerda.
Aceita um café? Água?
Não, obrigado.
Então vamos entrar.

...

E aí? Fala um pouco de você.
Olha... veja bem... eu nasci e cresci numa cidade bem pobre. Nunca fiz faculdade, sempre me sustentei. Entrei nesse mercado por mérito próprio, nunca tive uma indicação. Comecei a fazer meu portfólio lá no Sindicato, na hora do almoço. Aí fui batalhando, batendo de porta em porta... já fui em tudo quanto é lugar: periferia, cidades do interior, Jardins. Meu último emprego foi como Presidente do Brasil, não sei se o senhor já ouviu falar... Batalhei pras minhas ideias serem aprovadas, briguei com quase todo mundo da agência. Mas no final consegui o apoio de quase 90%. Não foi fácil, mas foi muito bom. Tanto é que eu renovei meu contrato.
E por que saiu de lá?
Agora eu tô em busca de novos desafios.
E você chegou a trabalhar em alguma agência grande? Estados Unidos, China, Canadá...
Não, mas meus amigos me disseram que quem trabalha no Brasil consegue emprego em qualquer lugar do mundo, hehe...
Vamos ver sua pasta?

Antes de exibir seu extenso portfólio, Lula explica ao avaliador que, além dessas campanhas que irá apresentar, fez também uma série de atas, emendas constitucionais, projetos de lei, mas preferiu não trazê-los para não deixar a entrevista maçante.
Nesse momento, o diretor de Criação coloca seus óculos de armação de casco de tartaruga. Sai da sala o amigo e entra o mestre, o doutor, o auditor publicitário que irá decidir o futuro profissional de quem está à sua frente.
À medida que o diretor de Criação folheia cuidadosamente o portfólio, Lula explica cada uma das peças, num tom meio apreensivo e com uma certa insegurança. Sem dar ouvidos às explicações, o diretor não esboça nenhuma reação sequer, mantendo sua postura de distância e frieza. A lenta virada de página e o olhar fixo em cada detalhe dos anúncios mostra o quão rigoroso é o analista, como se estivesse diante de um experimento científico.
Ao terminar de ler a última página, o diretor olha vagamente pro infinito e fala, num tom ao mesmo tempo misterioso e contemplativo:
Muito boa sua pasta. Muito boa.
Lula fica aliviado. Acabou de passar no vestibular da vida.
O diretor de Criação volta ao início da pasta e folheia rapidamente as peças, só pra constatar que não deixou escapar nada. Acrescenta:
Eu só tiraria algumas coisas. Esse aqui... reforma tributária... tá com cara de anúncio-fantasma. Esse aqui, do Renda Mínima, também. E esse aqui, o Bolsa-Família, é bem criativo, mas tenho a impressão de que já foi feito.
Finaliza seus comentários:
E também mudaria um pouco a ordem. Tenta colocar esse aqui do PAC em primeiro, pra causar impacto. Deixa os “menores” pro final, como esse aqui do Ministério da Defesa.

Passada a angústia do teste aos moldes do American Idol, Lula quer saber se essa avaliação positiva irá lhe redner momentos de glória, de fama. Se, com sua pasta, Lula poderá conseguir um lugar ao Céu.

Percebendo a cara de curiosidade de Lula, chega o momento do diretor jogar o balde de água fria.
Bom, você sabe... estamos passando por um processo de reestruturação. Ontem ficamos até de madrugada em reunião com a diretoria pra discutir benefícios, essas coisas. Mês passado a gente implantou um programa de qualidade de vida. O departamento dos anjos não precisa mais vir de branco, pode vir de preto, se quiser. Acabamos de alugar uma bateria e um teclado pra substituir as harpas. O piercing foi liberado pros apóstolos. A gente quer fazer daqui um lugar bacana de se trabalhar. Perdemos muitos bons profissionais pra concorrente lá do outro lado da cidade.
Sei, a Inf. Muito boa agência, ouvi falar.
É... (resignado em admitir) é boa... mas lá o dono escraviza os funcionários, faz todo mundo trabalhar fim de semana, o cara é um tirano. Pessoal estressado, lá é um inferno. Fica na Berrini, a Berrini também é um inferno.
É, mas ouvi dizer que eles andaram ganhando muitas contas. A Apple estava com vocês e foi pra eles.
Pois é, mas eles não são éticos nos processos de concorrência. Abrem mão do percentual de agência só pra ganhar conta. Chamam freela pra concorrência e depois mandam embora. Conselho de amigo: se eu fosse você e recebesse uma proposta deles, recusava. Não se deixe cair em tentação.
Claro. Mas eles estão ganhando o mercado.
Por isso que a gente tem que se adaptar aos novos tempos. Vê só, tem uma porrada de agência criativa e premiada que hoje não consegue pagar suas contas. A Grécia, por exemplo. Puta agência premiada pra cacete. Tá demitindo até os pica-grossa. Ontem mesmo 3 da diretoria foram pra rua. E olha o que te digo: a Espanha vai ser a próxima. Aqui já estão falando em passaralho.

O diretor de Criação, que não é bobo nem nada, usa todo esse clima de pessimismo pra concluir sua linha de raciocínio e não se passar por um déspota insensível.
Toda essa remodelagem que estamos fazendo aqui tem um custo. A gente não pode mais perder os talentos pra concorrência. Por isso a gente não tá contratando.
Lula tenta sua última sorte:
Tá, mas eu topo vir aqui de graça. Trabalhar no Céu iria fazer um bem danado pro meu currículo. Eu ia poder acompanhar o trabalho de excelentes profissionais. Me contrata, vai... nem que seja pra me colocar num cantinho. Fazer clipping das ações sociais, visita técnica em Honduras, no Haiti, e nos países subdesenvolvidos, tento acordo de paz na Síria, faço levantamento estatístico de terremotos... eu preciso muito desse emprego.
Embora quisesse dar uma oportunidade a Lula, o diretor se vê obrigado a ser taxativo:
Lula, sua pasta é muito boa. Boa mesmo. Com certeza, você vai ser recolocado rapidamente. Mas não aqui. Tá vendo aquele redator ali? Foi ele quem criou as palavras do bem que estão na moda: sustentabilidade, responsabilidade social, politicamente correto, orgulho gay, transparência... O dono veio falar comigo que queria a cabeça dele semana passada, eu é que segurei as pontas e pedi pra ele ficar. Aqui, eu só teria como justificar a contratação de um puuuta profissional, como a Madre Teresa de Calcutá, o Gandhi, o Nelson Mandela... ou quem já passou pelas agências fodonas, como Holanda, Suécia, Dinamarca... e mesmo assim, teria que brigar por salário com o Financeiro, que fechou as torneiras.

O diretor de Criação pega uma caneta e uma folha de papel em branco, pronto para anotar as indicações típicas de fim de entrevista.
Eu conheço aqui umas ONGs... você já foi falar com as Casas André Luiz?
Já, mostrei a pasta lá 3 vezes.
Dorina Nowill?
Só dão estágio pra filho de cliente.
Fundação Abrinq? O dono é muito amigo meu.
Vi anúncio num blog no mês passado. Mandei e-mail com link de portfólio e eles não me retornaram até hoje.

O diretor de Criação anota umas indicações na folha e entrega ao Lula, sem perder seu ar de otimismo.
Tá aqui. Procura essas pessoas e depois me retorna. E se você tiver alguma campanha nova e quiser me mostrar antes, fica à vontade.

E foi assim que o imperador do Brasil voltou à sua realidade. Descendo de elevador e depositando seu crachá de visitante no compartimento à esquerda da catraca de saída.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Muda ou não muda?

Atualmente, trabalho numa agência de endomarketing e campanhas internas. Nosso principal cliente é o banco Itaú, que tem como slogan de campanha, em todas as esferas e para todas as disciplinas do marketing, a frase “O mundo muda. E o Itaú muda com você”. Para ilustrar esse conceito, foram escalados diversos perfis de público, reforçando a base teórica de que o mundo de hoje é diferente do mundo de ontem. Os nerds que assumiram os principais cargos das empresas, as pessoas se conectando e interagindo em qualquer lugar do planeta, o efeito-estufa e a vocação para a reciclagem, a sustentabilidade como plataforma de gestão e discurso de campanha, a linguagem cada vez mais visual e menos verbal, os emoticons, as diversas gerações frequentando shows de rock, tudo isso.

Em contrapartida, tem um outro comercial no ar, do novo Fiat Palio, que segue o caminho inverso ao afirmar que, desde os tempos de Adão e Eva, o mundo não mudou tanto assim, com exceção do automóvel propagado. É um túnel do tempo ao contrário, mostrando diversas situações de rompimento das relações entre casais. As mesmas desculpas.

Num mundo que se vangloria de mudar a cada instante, como se o hoje diferente do ontem fosse a única forma de mensurar o progresso e a transformação, tendo a acreditar que, de fato, quase nada mudou na nossa história. Não tenho orgulho disso não, muito pelo contrário. Acho frustrante constatar que ainda somos medievais no que diz respeito às formas de governo, às maneiras de a sociedade se organizar e se relacionar, ao comportamento humano. Mudanças consumistas, que provam que o iPad 2 é totalmente diferente e revolucionário em relação ao iPad pioneiro de mercado, é claro que existem. Mas essa é uma constatação epidérmica e paliativa. Na essência, o ser humano é estanque. Fatos históricos praticamente se repetem. E não creio que seja a velocidade das informações ou os avanços tecnológicos que irão trazer essa real percepção de mudança. Essa visão é conveniente para quem detêm o mercado. Mudança concreta, significativa e verdadeira, nem daqui o lançamento de 10 gerações de automóvel.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Luzes, câmera e muitas luzes

Do ponto de vista cinematográfico, posso dizer que encerrei a 35ª Mostra SP com chave de ouro vendo Mexican Suitcase, um documentário sobre fotos perdidas da época da Guerra Civil Espanhola. Mas, no que diz respeito ao exercício da cidadania, este epílogo foi um vexame. Cheguei minutos atrasado na sessão e, logo em seguida, vejo uma moça trocando de lugar e sentando-se no cantinho da sala. Ela abre seu laptop e começa a trabalhar... no meio do filme. Mesmo imaginando que o fato de se sentar isolada da aglomeração fosse motivo suficiente para fazer o que bem entendesse, ela levou um justo cartão amarelo. Advertida por uma amiga minha, que dirigiu-se a ela para dizer que aquele mini-holofote atrapalha os demais espectadores, ela fingiu que não ouviu ou fez corpo-mole para tomar alguma atitude em respeito a todos os cinéfilos que entraram na sala... para ver o filme. Já cansei de mencionar que minhas intervenções aos falantes são voto vencido, mas felizmente nessa sessão estive acompanhado de pessoas mais criteriosas, que usam métodos mais ortodoxos para mandar os incomodantes calar a boca ou apagar as luzes, do tipo “desliga essa porcaria” ou algo que o valha. Inconformada com a solicitação geral da plateia, e não é que a moça sai esbravecida, pisando forte e resmungando? Para se ter uma ideia, ela até foi aplaudida quando finalmente se retirou da sala.

Já escrevi aqui que algumas sessões da Mostra foram tumultuadas, nesse sentido. É quando se junta a surdez das velhinhas dos Jardins, que lotam o Cinesesc e adjacências nas sessões vespertinas e não param de tagarelar, com a falta de educação de uma (quero acreditar) restrita parcela do público jovem, insaciável, que encara o ato de se ver um filme como uma aula facultativa que se pode cabular, o recreio fora de horário, o momento revolucionário de usar a força da expressão na sua temperatura máxima.

É triste notar, e parece ser um fenômeno irreversível, que a cultura Cinemark esteja invadindo a “cinefilia de arte” da região da Paulista. Conversar durante um filme tornou-se um hábito digestivo, como se fosse o respiro entre uma cena e outra. As advertências das vinhetas são inócuas quando tocam nesse assunto. Até mesmo a vinheta do Cinesesc faz uma ressalva: “cochichar vale”. Não, cochichar não vale. Em certos casos, o balbucio quase silenciosos do ranger silábico das consoantes atrapalha mais do que um bate-papo.

Eu já passei por experiências terríveis. Teve uma vez que um casalzinho metido a besta da fileira de trás se sentiu ofendido e o brutamontes do namorado levantou-se para exibir seus músculos, dando a entender que estava MUITO disposto a resolver a questão na porrada. Teve outro dia (no Belas Artes, quem diria!) que o estúpido me respondeu: “tá incomodando? Vai sentar lá do outro lado”. Outra vez (no Unibanco Arteplex!) um casal ao meu lado que não parava de fochicar e, quando eu pedi silêncio, à minha maneira corleônica de ser, o besta-quadrada deu a entender que, pelo fato de pagar o ingresso, tinha o direito de fazer o que quisesse na sala.

O ruído verbal, todavia, virou algo do passado. Hoje os folgados, como bem foi exemplificado acima, usam toda a modernidade e tecnologia ao seu alcance para incomodar os outros com requintes de malvadeza, egoísmo e gigabytes. É comum esbarrarmos com pessoas que ligam o celular a toda hora, não param de enviar torpedos e e-mails, entram nos chats e precisam, a qualquer custo, mandar via Twitter o resumo de cada cena a que estão assistindo. É a geração Y, verdadeiros lanterninhas e caga-lumes do escurinho que, com seus smartphones e aplicativos, cospem sobre o cidadão cinéfilo de bem. Uma juventude que não entende porra nenhuma de democracia, que acha que ser revolucionário é botar o pezão na cadeira da frente, que entende que liberdade é falar alto no meio da sala, entrar rindo e gritando, sair jogando pipoca no chão. Esses são os caras-pintadas do Século 21, fachada de um comportamento de mercado que vende uma sociedade conectada, integrada e sustentável, mas que no fundo não passa de um bando de individualistas, mercadologicamente egocêntricos, apoiadores retrógrados do bullying social.

Aos meus 43 anos, faço parte de uma geração jurássica, uma minoria em extinção que faz “shhh” na sala. Devo ser visto como um chato, um xiita. Para a horda desembestada, quem incomoda a sessão sou eu.

Mas o que fazer para mudar esse estado das coisas? Sinceramente, perdi minhas esperanças. Meu ponto de vista ganha a adesão somente das pessoas que concordam comigo e nunca cometeram tais atos de barbaridade nos cinemas. Para dialogar com os infratores dos bons modos, só mesmo à base do confrontamento. Não adianta o diálogo. Ninguém vai mudar de opinião. O tagarela não vai deixar de ser tagarela por se sensibilizar à petição. Muito pelo contrário, provavelmente. Vai se sentir insultado, moralmente diminuído, e vai querer usar da falta de educação a sua pior arma. Existe uma lista de reivindicações dos cinéfilos que são verdadeiras causas perdidas. A meu ver, a sociedade caminha para uma direção muito estranha. Cinema é vendido como diversão, como entertainment. Em tempos de simultaneidade e de informações descartáveis, exigir concentração para a apreciação da arte é um esforço inútil. A relação do cinema com seu público é das mais efêmeras. O cinema é como um show de rock, uma tanda. E o filme, um palco paralelo da atração principal.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

35ª Mostra SP: balanço final

De um modo geral, a avaliação que faço da Mostra deste ano é bem positiva. Claro que teve seus problemas, aos montes, mas é bom ressaltar que é a primeira Mostra-órfã desde a sua criação, e o fato de o Leon falecer às suas vésperas teve uma série de implicações. Como já falei antes, algumas medidas tomadas talvez foram, conscientemente ou não, uma tentativa de resgate dos bons tempos de Mostra, enquanto que algumas intempéries talvez possam servir de lição para as edições futuras.

Por uma questão prática, resolvi listar os pontos fortes, os pontos fracos e as medidas indiferentes do festival. Eles não estão necessariamente apresentados em ordem de importância ou de peso, mas creio serem, no meu julgamento pessoal, os fatores mais relevantes para a sua avaliação.

Pontos fracos da Mostra:
Digital: definitivamente, este foi o problema mais grave da Mostra. Foram esses filmes que geraram o caos total. Ainda não estamos preparados a absorver esta tecnologia. Incompatibilidade de formatos, exibição fora dos padrões de conversão, equipamentos de projeção precários, e por aí vai. Hoje, a divisão não é mais dicotômica película/digital. Existem, para atrapalhar um pouco mais essa lógica, os diversos suportes do digital, que quase nunca se conversam. Nas próximas edições e nas futuras salas de cinema, os organizadores e exibidores vão ter de trocar os ultrapassados projecionistas por hackers. Ausência de áudio, imagem tremida que lembra um DVD pirata, imagem congelada, cores esmaecidas, interrupção abrupta da projeção, foram alguns dos problemas causados pelo famigerado digital.
Programação I: além dois problemas em si, o digital foi também um dos principais responsáveis pela caótica programação. Todo ano, improvisos, retenções na alfândega e quetais fazem com que a programação inicialmente desenhada seja prejudicada. Mas este ano foi campeão. Principalmente na primeira semana, os problemas foram hercúleos. Nem dava tempo para anunciar as trocas de filmes. Em alguns dias, recebi e-mails que eram verdadeiros relatórios, tamanhas as substituições e cancelamentos. Teve casos de filmes que mudaram de sala e isso foi noticiado no horário do começo da sessão. Essas mudanças de última hora também comprometeram a troca de ingressos. Soube de filmes que sofreram alteração umas três vezes numa única sessão. Teve filme que atrasou quase 1 hora e, só após esse vácuo, os espectadores foram avisados do cancelamento da sessão. Testes de áudio e de legenda minutos antes do filme começar eram comuns. O guia de programação oficial da Mostra, aquele retangular, serviu apenas de referência. O Guia da Folha, então, apenas para as sinopses curtas.
Programação II: é sabido que alguns filmes, graças ao boca a boca, crescem durante a maratona e caem no gosto do público. E, em muitos casos, não dá para se prever o sucesso ou o fracasso de um filme, principalmente aqueles dirigidos por iniciantes. E, ainda por cima, sabemos como é complexo organizar uma grade de programação, pois tem de se levar em conta o formato/suporte do filme, sua duração, as exigências contratuais, o período de disponibilidade em São Paulo, entre outros fatores. Mas, ainda assim, vale frisar que a Mostra ainda não nos trouxe um modelo ideal de programação. É um desperdício assistir ao insignificante Maria My Love no espaçoso e vazio Cinesesc, que serviu de refugo frustrado para quem não conseguiu ingresso para ver o concorrido Las Acacias. O coreano The Day He Arrives foi programado pra passar no cubículo Cineartinho (Livraria Cultura 2). Na minha modesta opinião, não vejo problemas em passar um mesmo filme outras vezes na mesma sala, em vez de se tentar o rodízio completo. É possível programar melhor os filmes que ganharam festivais no exterior, filmes de diretores consagrados, filmes dos queridinhos da Mostra, filmes que fazem parte do fetiche dos cinéfilos. Parece óbvio, mas vale lembrar que concentração de público é que nem concentração de renda. Colocando na medida do possível os filmes mais concorridos em salas maiores, menos espectadores ficam do lado de fora. Com isso, vendem-se mais ingressos. E, quanto mais ingressos vendidos, mais dinheiro entra pros caixas da Mostra.
Uruca: como se não bastasse, esse ano também foi atípico em outras questões. O filme Habemus Papam teve as primeiras sessões canceladas porque, de acordo com o que ouvi falar, a empresa de legendagem foi assaltada. Outros filmes também foram cancelados na primeira semana porque a empresa de serviços expressos de envio de mercadorias não era cadastrada, impossibilitando o rastreamento. Houve queda de energia no Cine TAM. Muitos foram os casos de queima de luz do projetor. Nas próximas vezes, sal grosso no sal de prata.
Monitoria: antes de entrar no mérito da questão, vale ressaltar que muitos coordenadores dos monitores, em especial o que ficou de plantão no Unibanco Arteplex, soube conduzir com eficiência a sua função, mostrando-se ágil e atento aos inúmeros problemas e procurando trazer soluções imediatas dentro do possível. Mas a grande equipe de subalternos, principalmente os marinheiros de primeira viagem, os mais novinhos e colegiais, pareciam estar lá para fazer figuração. O público espera uma brigada de incêndio treinada e orientada para agir rapidamente em casos de emergência mas, em vez disso, encontra uma meninada desinformada, alheia e indiferente aos obstáculos e sem preparo algum para controlar a fúria dos pagantes ou atuar de maneira exemplar na condução das medidas improvisadas. Alguns até que são simpáticos e esforçadinhos, mas de boas intenções o Inferno tá cheio. Era comum ver os bilheteiros do próprio cinema se desdobrando e driblando a inércia dos novilhos. Já que a Mostra convoca uma farta equipe para fazer número e, com suas camisetas verdes, propagar o evento para as demais áreas e espaços, sugiro que, nas próximas edições, um dos monitores fique dentro da sala o filme inteiro para observar as falhas de projeção e que outro fique com um Nextel na mão para comunicar remotamente os problemas ao projecionista ou a alguém da Central. Fico com a impressão de que a monitoria foi orientada única e exclusivamente para distribuir e recolher as cédulas de votação.
Unibanco Arteplex: sem dúvida alguma, o QG do caos. Shopping center já é uma aberração em si. Junte-se a isso um evento importante em suas dependências. Acrescente a época das compras de fim de ano e você pode ter uma noção aproximada do Apocalipse. Embora as bilheterias tenham sido relativamente rápidas no fluxo de venda de ingressos, foi insuficiente para evitar filas que, em alguns horários de pico, aproximavam-se das Lojas Americanas do andar de baixo. Apenas alguns milímetros separavam as filas que se formavam na entrada das salas. Correria, barulho, fuzuê, muvuca, lotação, tudo isso é pouco para tentar definir o pandemônio em que se transformou o relativamente calmo centro de compras da região da Augusta. Me senti no Armageddon.
Shhhhh: é notório perceber que o público da Mostra tá mudando, tanto pela faixa etária quanto pelos gostos, costumes e comportamentos. Natural. A Mostra, além de exibir filmes, não deixa de ser um recorte social e cultural da cidade. Infelizmente, boa parte dessa nova safra trouxe a cultura Cinemark para dentro das salas do Adhemar de Oliveira. Em outras edições, meus amigos cinéfilos, igualmente rigorosos nas condições de silêncio que se exige ao se assistir a um filme, rogavam a quietude já nos primeiros segundos pós-vinheta. Mas em muitas sessões deste ano eles parecem ter desaparecido, e o comportamento egoísta imperou. Falatórios, cochichos, pipoca, chutes na cadeira da frente, atitudes típicas de blockbuster estavam ali nos ditos “filmes de arte”. Uma pena. Perde o público, perde o festival, perde a cinefilia. Como se não bastasse, a geração Y dos cinemas entende que a conectividade deve existir 24 horas por dia. Um bando de lanterninhas de luxo, vaga-lumes de plantão mandando e-mails e twittando em seus iPhones cada cena do filme.
Cariocas: com a volta do Rock in Rio ao Rio, o FestRio atrasou uma semana em relação ao calendário dos anos anteriores. Sua semana de repescagem encavalou com a primeira semana da Mostra. Com isso, muitos amigos nossos, frequentadores habituais, encurtaram sua estadia em Sampa,ou chegaram no final da Maratona, ou simplesmente não compareceram.
Repescagem: acredito que a organização da Mostra deve fazer um esforço sobrenatural para segurar os filmes no festival, mas os cinéfilos não podem deixar de lamentar, na semana de reprise, a ausência dos bem avaliados Era Uma Vez na Anatolia, Elena, Um Mundo Misterioso, Las Acacias, O Desaparecimento do Gato, The Day He Arrives, Hanezu, Desapego, O Dedo, Tudo pelo Poder, Forgiveness of Blood, Low Life, O Garoto de Bicicleta, Habemus Papam, Vulcão, Respirar, Neve em Kilimanjaro, entre outros.
Ingresso grátis: por se tratar de órgãos públicos, o MIS e o Cinusp poderiam continuar oferecendo sessões gratuitas. Ou, pelo menos, cobrar o valor simbólico de R$ 1,00, como fazem o Olido e o Centro Cultural. O Matilha Cultural também deixou de abrigar a Mostra este ano.


Nem cheira nem fede (aspectos indiferentes da Mostra):
Belas Artes: no começo do ano, o fechamento dessas salas causou comoção, indignação e criação de comunidades no Facebook. É triste notar, mas parece que o paulistano vem se acostumando à sensação de abandono do atual abrigo de mendigos. A riviera cinéfila paulistana não fez a mínima falta.
Pedala: o discurso de sustentabilidade encontra-se presente em todas as empresas. O metrô e a Prefeitura criaram medidas, ainda que mínimas e paliativas, em prol dos ciclistas. Mas eu não vi uma viva alma que tenha se utilizado das bicicletarias da Mostra para se locomover entre uma sala e outra.
Coletiva: a Renata de Almeida avisou que, a partir do ano que vem, pretende rever como e em que momento será realizada a coletiva de imprensa que apresenta o júri. O café da manhã, vale dizer, estava ótimo. Mas os jornalistas não tinham o que perguntar e os convidados não sabiam o que dizer. Situação constrangedora. Talvez seja o caso de organizar um evento menor ou posterior às escolhas dos filmes, para se criar, pelo menos, a curiosidade de esclarecimento dos critérios de seleção dos filmes mais votados pelo público.
Primeira vez: com exceção das retrospectivas, das cópias restauradas e das sessões do vão livre do MASP, a Mostra este ano optou pela primeira vez por exibir filmes nunca antes exibidos, nem mesmo em festivais. De acordo com a matéria do crítico Cássio Starling Carlos, da Ilustrada, isso só fez valorizar o FestRio. Concordo em parte, ou seja, discordo do seu ponto de vista. Claro que seria muito saudável a Mostra trazer os filmes louvados nos demais festivais. Mas é bom lembrar também que a Mostra traz o pacote completo, dos mais conclamados às porcarias inquestionáveis. Os filmes do Almodóvar, presença garantida na Mostra, responsáveis pelas maiores confusões nas filas, esse ano ficaram de fora. Em contrapartida, a distribuidora preencheu outras salas vizinhas com um monte de pré-estreias de A Pele que Habito, talvez pra pressionar a organização do festival ou para concorrer diretamente com ela. O ineditismo não significa necessariamente um ganho de qualidade. Pra mim, a Mostra não ficou melhor nem pior em relação às edições anteriores.


Pontos fortes da Mostra:
Calor humano: nem o invernico e as baixas temperaturas fora de época, nem o gelo do ar-condicionado das salas, foram capazes de esfriar o encontro caloroso dos amigos cinéfilos. Pra mim, a Mostra é algo que vai além dos filmes. É um prazer reencontrar as pessoas que você só vê uma vez por ano ou acabou de encontrar na semana passada. A Mostra proporciona a troca de ideias, o convívio, o debate, o crescimento pessoal em torno de um assunto que se desdobra em vários. A Mostra é o encontro, seja por meio das afinidades e interesses, seja por meio do saudável conflito de opiniões.
Menos é mais: com certeza, o enxugamento de cerca de 40% dos filmes (de quase 500 pra quase 300) foi um progresso. Se os problemas apresentados se deram com essa quantidade, imagine então com um acervo maior. A Mostra abandonou um pouco aquele gigantismo e espero que mantenha essa tendência. Não apenas para controlar eventuais problemas de rotina. Um número menor de filmes faz com que eles sejam programados mais vezes, dando mais oportunidades aos espectadores. Com menos filmes, os cinéfilos podem respirar a arte, reter as cenas, dialogar com eles.
Retrospectiva: mais uma vez, a Mostra surpreendeu. Talvez seja o ponto forte do festival. A escolha dos homenageados prova que a organização é desprovida de preconceitos e estereótipos. Do radical ao clássico, é possível apreciar cinema na sua forma mais pura e mais ampla. As retrospectivas trazem um grande material para o entendimento da Sétima Arte no seu aspecto mais vivo, tanto no tempo como no espaço. Cinema de pesquisa, cinema de acervo, cinema de contemplação. É o cinema em perspectiva, longe das amarras e dos rótulos.
Herzog: não assisti ao outro documentário trazido pela Mostra, mas a exibição em 3D da Caverna dos Sonhos Esquecidos reergue a discussão em torno dos formatos e do que de fato é cinema comercial. A tecnologia em terceira dimensão utilizada neste impressionante documentário prova que o recurso não precisa ser necessariamente aplicado como truque de bilheteria e não se restringe aos gêneros mais acessíveis (terror, aventura, animação, filme-catástrofe, etc.). Aqui, o 3D tem uma função verdadeira: trazer aos nossos olhos a textura, as ranhuras, as estalactites de um mundo que o diretor ressuscita. A Caverna é um respiro, uma jornada pela descoberta. Dizer que se trata de uma obra-prima é pouco.
Cinema russo: Fausto, Elena, Sábado Inocente, Movimento Reverso. Fazia tempo que os cinéfilos não viam cinema de qualidade de um determinado país em peso num mesmo festival. Com a abertura de mercado, tende-se a acreditar que a arte dê aquela relaxada e que os realizadores deixem de produzir trabalhos que fazem jus à fama do passado. Não é o caso da atual Rússia escolhida pela Mostra.
Thiago Stivaletti: esse rapaz não só cresceu na Mostra, mas também cresceu junto com ela. De assessor de imprensa que cobria cabines, passou a exercer um papel fundamental no bom andamento do festival. A forma clara, sucinta e organizada de apresentar as informações mais relevantes ou cobrir eventuais lapsos de memória durante a coletiva de imprensa, a mediação nos debates do ciclo Filmes da Minha Vida, esses e outros eventos fazem do Thiago não apenas um assessor, mas quase um cônsul. Se continuar com essa mesma competência, aliada à sua simpatia e seu cavalheirismo de lorde inglês, esse moço vai longe...
Zzzzzzz: A Doença do Sono, Noites de Insônia, O Outro Lado do Sono, O Homem que Não Dormia. Conforme o diário da Vanessa Bárbara, na Ilustrada, esse ano foi propício para se dormitar nas salas. Esse foi o tema do ano. Nada como um revigorante cochilo para quem vê filmes por dúzia. Às vezes, compensa entrar na sala e descansar no conforto da poltrona nos filmes invisíveis da Mostra para recarregar energias para os filmes mais significativos e mais barulhentos, quando o sono torna-se quase impossível. Trabalhos soporíferos, todo festival tem. Que bom que a Mostra assumiu essa postura já nos títulos dos filmes.
MIS: ir no contrafluxo da muvuca costuma render boas experiências. Foi o caso da sessão de Sábado Inocente. Sala vazia, dominada somente por cinéfilos e críticos. Durante o filme, silêncio sepulcral.
Remaster: ouvi dizer que a primeira sessão de Taxi Driver foi bem complicada, e que o vermelho do filme estava tão apagado quanto o de balinha de padoca. Soube depois que foi um erro do projecionista, que trocou os padrões de conversão. Nas sessões seguintes, parece que a apreciação deste clássico foi de 100%, bem como de Laranja Mecânica na telona, sem as bolinhas tapa-sexo dos tempos da censura. Amarcord, 1900, O Leopardo, todos esses trabalhos ganharam nova roupagem e, ao que me consta, dignos de edição de colecionador, deixando ainda mais nítidas as marcas do cinema perfeccionista.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

35ª Mostra SP - Cut, de Amir Naderi (Japão, 2011)

Arte em carne viva

Embarcar na experiência de “Cut” é quase envolver-se em um ritual primitivo na busca pela essência. Afinal, o que é a metalinguagem senão um exercício ao encontro uterino de sua própria estrutura para a reflexão de questões maiores? Esse é o intróito do filme. Planos fechados, longos, sem diálogos, com raríssimas intervenções sonoras do ambiente. Pode-se dizer que se trata de uma ruptura aos padrões acelerados, nos takes e na ilha de edição, dos blockbusters de hoje. Cenas e planos que trazem a referência da nouvelle vague e dos discípulos deste movimento. Planos inertes de visitas aos túmulos dos cineastas consagrados, como Ozu e Kurosawa. É o rotulado “cinema de arte” falando sobre o próprio “cinema de arte”. Logo em seguida, vem a apologia. Um discurso inflamado do protagonista, com seu megafone, fugindo da polícia, escondendo-se nos escombros de prédios em ruínas de uma metrópole decadente do Japão. O personagem alardeia para os quatro cantos que o cinema atual se rendeu aos modelos comerciais de produção, que não existe mais cinema de autor, que cinema hoje é somente entretenimento, que a arte se rendeu aos mecanismos das bilheterias, entre outras frases prontas. E, para combater esse mercantilismo no qual a arte se transformou, exibe cópias de seu acervo em espaços alternativos, como sacadas de prédios, para os cinéfilos da resistência. Essa é a verdadeira essência da contestação de “Cut”. Tratar o cinema como uma obra itinerante, viva, orgânica, que invade espaços, dribla o poder, encaixa-se nas ranhuras dos arranha-céus para dialogar com seu público. Cinema que respira, cinema que transborda.

Num segundo momento, o filme dá uma reviravolta. A máfia japonesa sequestra o idealista para fazer com que ele acerte uma dívida deixada pelo seu irmão antes de ser assassinado pelos capangas da Yakuza. Sem recursos e sem alternativas, o personagem se vê obrigado a juntar renda num prazo mínimo para saldar esse déficit. Dá a cara a bater, ou melhor, vende ela. Rifa seu corpo para que os mafiosos possam dar-lhe socos, como se o banheiro da espelunca fosse a quermesse da pancadaria, com sangue no lugar da groselha em copinhos ou da barraca de beijos. É a roupagem “lado B” dos filmes igualmente vangloriados pelos cinéfilos, na linha de Takashi Miike. Nesse aspecto, guarda semelhanças com “Tokyo Porrada” por transformar a violência em espetáculo. “Cut” é a arte do corpo, o close nos limites entre a beleza da contemplação de Ozu e a fragilidade dos ossos de Shin'ya Tsukamoto. E esse fragmento do filme é que abre o campo semântico do título. Pode se referir tanto aos cortes secos da película, ao enxugamento dos excessos, quanto as feridas estampadas da carne.

Ainda que possa trazer esse respiro ofegante em prol da arte, “Cut” soa mais como um filme ingênuo e panfletário. Tarantino, por exemplo, sai-se bem melhor quando utiliza as mesmas referências na própria imagem e não no discurso. “Cut” conduz com competência o espectador na mesma paixão pelo cinema, mas isso é causa ganha. Há uma sequência interessante em que aparecem alguns nomes de filmes e de diretores consagrados, fora da diegese das cenas de porrada. Uma espécie de lista do diretor dos 100 filmes a se assistir antes de morrer. Sim, o cinema do passado, dos letterings, está sucumbindo perante os socos das imagens do cinema-violência atual. Mas essa relação doentia de paixão está muito mais presente nas intenções do que em seu organismo.