segunda-feira, 5 de março de 2012

Foda-se

“Você está subindo as escadas no contrafluxo”. “Foda-se”. Foi esse o diálogo que acabei de ouvir, numa das saídas do metrô Vila Mariana, entre duas meninas de colégio.


A adolescência é um dos períodos mais propícios e pertinentes para atos de uma suposta rebeldia, sabe-se lá contra quem: a família, a sociedade, o sistema. E, quando vemos na mídia e nos pequenos núcleos sociais manifestações claras de repressão, censura, bullying, castração e outras formas de castidade, a sonoridade retumbante de tal expressão ganha contornos ainda mais ululantes.


Mas, convenhamos, este maldizer de palavras chulas, ao invés de causar espanto e indignação, com o tempo e com o uso corriqueiro e desnecessário, caiu no desgaste. “Ligar o foda-se”, “apertar o botão do foda-se”, são expressões mais do que batidas para retratar um certo nível de desapego e despreocupação do interlocutor. O que até pode fazer um bem danado a ele. Desvincular-se das amarras e das pressões é salutar. Em teatro e outras formas de manifestação artística e corporal, ficar repetindo “foda-se” é terapêutico, catártico, cria a sensação de liberdade.


Um dos sintomas do empobrecimento gradativo de uma língua é o fato de uma palavra ou conjunto de palavras se adaptar a mais de uma situação. Quando se fala que algo é “legal”, pode se atribuir o adjetivo a uma garota, um filme, um livro, um estado de espírito. Eu estou legal. Ele é legal. Desaparecem, com isso, as características únicas do indivíduo ou do objeto, suas particularidades e idiossincrasias. Colocados no mesmo nível semântico, perde-se a urgência e a necessidade de se procurar outros adjetivos ou elementos caracterizadores de tais substantivos, o que faz com que um número cada vez menor de verbetes passe a ser utilizado com mais frequência. É a famosa lei do uso e desuso. A língua vai deixando de ser simples e passa a ser simplista. “Foda-se”, portanto, passou a servir de exclamação genérica tanto para a rebeldia e inconformismo quanto para o bem-estar, o comodismo (por mais paradoxal que possa parecer), o deixa-disso, o dar-de-ombros. É contra o sistema? Foda-se o sistema. Não tá nem aí pro sistema? Foda-se o sistema.


Pior ainda. O “foda-se” sempre foi aclamado como um artefato de batalha. É uma aliteração rígida, apontada em riste com o objetivo de atacar. Mas, pelo que se percebe no exemplo do início do texto, no campo semântico das interpretações linguísticas, esse intuito bélico de agredir um contexto maior foi substituído pelo descaso e pela falta de respeito no âmbito mínimo e ególatra das coisas. Não é o sistema que está em questão. O furor idealista se amalgamou ao individualismo acomodado. Fodam-se os idosos, fodam-se os deficientes físicos, fodam-se as pessoas que precisam utilizar o corrimão, fodam-se os que estão no fluxo correto da sinalização das escadas. Fodam-se os outros.