segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Panetone

O ciclo de vida do panetone.
Em setembro, começa a aparecer no supermercado. Caríssimo. Tipo R$ 60 o quilo. Sensação deprimente. Não só pelo fator "caríssimo", mas também pela constatação de que o ano já acabou.
Em outubro, brotam os derivados. Panetone de Prestígio, panetone de Suflair, chocotone, moussetone, panetone de Kinder Ovo, panetone de Godiva. Também caríssimos.
Em novembro, eles estão lá, firmes e fortes. Dominando as gôndolas. Gritando nos seus ouvidos pra você comprar.
Bom, dezembro é um mês complicado... funciona meio que como a Bolsa de Valores, a cotação do dólar... começa com o preço nas alturas, pra compensar a liquidação do Black Friday, sobe mais ainda, cai, volta a valer peso de ouro, entra na lei da oferta e da demanda e, após o dia 25, passa a ficar acessível, ainda que não se justifique pagar R$ 30 por meio quilo de pão com pedacinhos de fruta que mais parecem gelatina congelada.
Em janeiro, o preço da iguaria vai lá pra baixo, já que todo mundo gastou suas economias com IPVA, IPTU e CVC. O nobre sabor do Natal passa a ocupar um tímido cantinho do supermercado, junto com vassouras, inseticidas e naftalina. Quem é que ainda compra naftalina?
No mês do Carnaval, o valor percebido da sobremesa tem um quê de mistério e de indecência. O que antes custava R$ 50 agora você leva por R$ 5. E ainda ganha aquela latona que, além de ocupar 70% do carrinho, te dá a chance de participar de um sorteio do cruzeiro marítimo do Roberto Carlos, ocorrido há 2 meses atrás.
Antes de valer menos do que um chiclete, o panetone é recolhido das prateleiras em março. Vai pro abatedouro da reciclagem. Chegando à fábrica, entra novamente numa forma. Só que não estamos mais falando de uma massa fofinha e fresquinha. O idoso pão doce precisa de uma verdadeira recauchutagem. Seu corpo é reconstituído à base da tortura do faz-caber. Entra na maca cirúrgica praticamente embolorado e transforma-se num amontoado de encaixes que bem lembram o jovem Frankenstein. Mas não tem importância. Essa época do ano precede a penitência cristã. Todo o sofrimento do corpo é compensado com muito jejum e muita reza. E, pra disfarçar a eletrizante agonia, um pouco de açúcar de confeiteiro por cima. Pronto: Colomba Pascal by Ivo Bauducco Pitanguy.
Já sem tanta ostentação glamourosa como em outrora, o recondicionado panetone sob nova alcunha bem que poderia voltar aos mesmos palcos. Está tudo ali: a massa, as frutas e os conservantes acidulantes. Só está um pouco fora de forma, é fato. O fabricante quer porque quer fazer parecer um pombo, mas o consumidor não vê ali nada mais além de um filhote do cruzamento de polvo com kikos-marinhos. A aberração genética em questão, portanto, passa a ocupar aquele pedaço do latifúndio do estabelecimento tão insignificante quanto indefinido. Um buraco negro entre os pães, as sobremesas, as geleias, os dietéticos e o material escolar. Um espaço amorfo, condizente com a estrutura óssea da criatura.
O amargo ostracismo se justifica. É a chegada dos ovos de chocolate, botados por coelhos. Não me pergunte como. Não sei. Mas que isso vende, vende.
E assim a Colomba Pascal lança seus últimos suspiros de vida. Em abril, maio e junho. O bromato ancião chora junto com os ovos que se quebram, vê passar as pipocas e amendoins das festas juninas, e também sente na pele o peso da idade do curau: de R$ 7,50 por apenas R$ 1,99.
Em julho, pode-se perceber a existência de um ou outro agonizante ser que um dia foi panetone. Uma espécie em extinção, direcionada única e exclusivamente para fins de pesquisa. É o enterro da raça. Em agosto, o panetone aparece somente em livros de história, para dar lugar a uma nova safra que irá nascer no mês seguinte. Tudo para provar a perfeição da natureza: nada acontece em agosto.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Resenha

(Dica de resenha para quem não entendeu nada daquilo que viu. Copiar e colar. De nada.)


Já fazia muito tempo que essa metrópole não era invadida por uma obra-prima tão sorumbática e armagedônica. Com um estilo pseudo-naïve, calcado nos minimalismos estéticos da nouvelle vague, o autor fez questão de registrar sua sintagmática incontinência catastrófica de provocar. Algo que nos remete ao ostracismo de Nietsche e Kafka, com texturas solfejantes de Carlos Gardel. Incompreendido até a medula, esse recorte social transita nas vestimentas kitsch de Almodóvar, sem perder a mão e a lúgubre consistência bergmaniana do subtexto. Não dá para ficar indiferente a essa regência silábica desorquestrada em seus paradigmas, quando a ruptura hitchcockiana desconstrói a leveza noir tão vulnerável quanto obsoleta. Uma epígrafe tarantinesca para ver, rever e anotar cada pormenor, inclusive seu flerte com os arcabouços da dodecafônica literatura de cordel. É ali que o trabalho ganha organicidade e escapa da diegese de seus antecessores, talvez uma influência maldita que o autor faz questão de abandonar. Na crueza de suas texturas, ou na arregimentação cromática de seus significantes e significados, essa obra definitiva mostra os claros ecos que o legado do primeiro álbum do Red Hot Chili Peppers deixou. Ou o segundo.