quinta-feira, 14 de junho de 2018

Copa


Não vou torcer contra o Brasil.
Mas também não vou torcer a favor do Brasil.
Simplesmente não vou torcer.
Futebol não é minha língua.
Os 200 milhões de comentaristas que me desculpem, mas não vou falar nada.
A concentração vai ser no meu silêncio.
Podem gritar, podem vibrar. Eu não vou ouvir.
Não faz sentido algum torcer para profissionais que ganham um BMW por hora.
Não torcem para você. Nunca torceram. Aliás, nem sabem quem você é.
Não faz sentido algum torcer para exibicionistas que andam de Armani como se isso fosse exemplo de superação.
Não se envolvem em questões políticas. Não abraçam causas. Não apoiam ONGs. Talvez até o façam, mais por marketing do que por princípios.
Nasceram nas favelas, mas esqueceram o Brasil.
Pegaram a ponte aérea, da Baixada Fluminense para Manchester.
Vêm pra cá como turistas.
Alienígenas que pousam em nosso território a cada década.
Minha torcida é para os médicos, professores, artistas. Caminhoneiros, até.
Não faz sentido pintar o rosto, maquiar a rua, abrir o sorriso desdentado, estampar uma beleza que não existe, num dos piores momentos da nossa história.
E não estou falando só de política.
Falar que somos todos um só, num só coração, que #tamojunto por um ideal maior, é uma atitude no mínimo hipócrita. Ou ingênua.
Nunca se brigou tanto por nada nas redes sociais.
Nunca fomos tão polarizados. Ou bipolares.
Vivemos num tempo do mais alto e execrável individualismo.
Anunciantes, podem continuar vendendo refrigerante pra mim. Me forçando a abrir uma conta. A trocar de shampoo. A comprar um carro. Mas, por favor, não me peçam para torcer. Isso é pedir muito. Dinheiro jogado fora: o grito de gol não vai sair.
Meus caros, vocês pisaram na bola. Pisaram feio.
Estamos num momento de penalidade máxima.
Continuem aí, no jogo do “ame-o ou deixe-o”.
Eu vou fazer o que mais sei fazer: ignorar.

terça-feira, 12 de junho de 2018

Na feira


- Olhaí, olhaí, freguesa. Pois não, senhora?
- Eu queria um namorado.
- Com espinha ou sem espinha?
- Não não. O senhor não me entendeu. Tô procurando um namorado. Alguém pra sair comigo, pegar um cinema, dar uns beijos, dormir de conchinha...
- Conchinha? Tem ostra aqui. Vai levar, freguesa?
- Não, obrigada. É que...
- Garoupa, quer? Tá bem bonita.
- Obrigada. Acredito que seja bonita mesmo. Olha, eu respeito a diversidade, a comunidade gay, mas meu negócio é homem mesmo.
- GA-ROU-PA. Tem traíra, se a senhora quiser.
- Não, vixe! Chega de traíra na minha vida. Se eu te contar cada roubada que passei, a gente não sai daqui hoje. Na verdade eu procuro um homem sincero, companheiro, que entenda a gente.
- Entender vocês? Kkkk
- Deixa eu terminar. Eu tô a fim de achar o amor definitivo da minha vida. Mas não esses príncipes de contos de fada. Quero alguém de carne e osso.
- Olha, barraca de carne é a terceira pra lá. Pergunta pelo Seu João que ele faz um precinho pra senhora. Fala que você veio do Ademir.

- Bom dia. Eu queria um...
- Pra viagem, freguesa?
- Como o senhor sabe? Eu queria alguém que fosse comigo pros lugares mais exóticos. Alguém pra conhecer o mundo, aprender novos costumes, novas línguas.
- Tem língua aqui, vai querer?
- Ai, credo! Mas deixa eu terminar. Eu sou praia, eu sou campo, eu sou trilha, eu sou cidade, adoro viver a vida...
- Coração?
- Isso é uma cantada?
- Não, senhora... magina... a senhora vai levar coração hoje? Tá bom, bonito e barato.
- Coração barato... tsã... era só o que faltava. Minha vida já tá complicada demais. Ah, os homens são tão vulgares...

- Moça bonita não paga, mas também não leva. Bom dia, freguesa.
- Eu queria um...
- Maduro?
- Com certeza! Um homem, assim, experiente... vivido... bem resolvido... que conhece as mulheres... que sabe agradar uma mulher... entende a mulher...
- Entende a mulher? Kkkk
- Por que todo mundo ri quando eu falo isso? Enfim... quero alguém estabelecido. Cansei de me envolver com moleque, gente imatura, despreparada...
- Chupa aqui.
- O senhor me respeita!
- Tô falando da laranja, senhora. Pode provar, tá bem docinha.
- Ah, tá. Então, como eu tava falando... o mercado tá difícil, sabe? Mas eu procuro alguém divertido, alto-astral, inteligente, que me faça cafuné, que me faça bem...
- Banana?
- E você acha que eu tenho cara de quem tá procurando um banana? Eu, hein?
- Tô falando dessa banana aqui. Tem prata, nanica...

- Bom diiiia, freguesa.
- Bom dia. Eu queria um... achei! É ele! É ELE! Finalmente encontrei o amor da minha vida.
- Muito bem! Quer que embrulhe?
- Não, eu prometo ser bem honesta com ele.
- O fiel aqui...
- Mas é ÓBVIO que ele tem que ser fiel!
- Tô falando do fiel da balança. O ponteiro. Tá marcando...
- Ai, nem me fale em balança. Preciso fazer uma dieta ur-gen-te! E malhar!
- Tá marcando 2 quilos. Tá bom ou quer mais?
- Tá ÓTIMO!
- A senhora não vai se arrepender. Chegando em casa vai ver que é bem fresquinho.
- Não, peraí... para, para tudo! Um pouco meigo, sensível e delicado, até aí tudo bem. Mas... fresquinho... fresquinho definitivamente NÃO! Quer saber? Deixa quieto, não vou levar nada. Já vi que aqui eu não vou encontrar o que procuro. Só tem bagaço! Pra mim chega! Desisto. Só uma última coisa...
- Pois não, senhora.
- Onde tem um supermercado aqui perto?

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Meu futuro primeiro encontro

Não fui eu que pedi. Me incluíram, sem minha autorização, numa comunidade facebookiana de solteiros. Como esse passou a ser recentemente meu status, OK também fazer parte dela e ver o que acontece. Não preciso denunciar o anônimo que me botou lá. É um grupo de poucas interações. Uma balada micada. Com a vantagem de não ter banda cover tocando “parabéns” à meia-noite para os aniversariantes do dia. Passei pela página de modo superficial, rápido e desinteressado como quem lê revista em consultório. Me chamou a atenção um perfil de uma moça com cara de quem fez o papel da Branca de Neve no colégio. Ela deve usar maquiagem à base de porcelanato. Não tem uma espinha, uma ruga. Em lugar nenhum. Deve deixar uma quiromante bem confusa. Seu semblante traz uma sensação boa. Alto-astral. Seu sorriso não é forçado. Ela passa a imagem de segurança. De poder. Deve trabalhar na Berrini. E passar as férias esquiando em Aspen. Eu passo minhas férias no Guarujá. Quando sobra dinheiro. Sei lá, parece que ela tem muitas qualidades. Destacou-se fácil da maioria dos perfis da comunidade. Até porque essa maioria é de homens que tiram selfie fazendo biquinho em frente ao espelho da academia. Ou dentro do Honda Civic. Sim, meu caros. A humanidade não tem mais salvação. É o fim dos tempos. Homem também faz selfie de biquinho na Smart Fit, entre um supino e outro.
Dei um “oi” nos comentários de sua foto e esperei resposta. Que chegou mais ou menos 10 dias depois. Poderia ter ficado puto. Poderia achar que ela trabalha no telemarketing da NET. Mas entendi a situação. Ela foi respondendo por ordem de chegada. Que nem atendimento do SUS. Como eu não agendei horário de chat, fui atendido somente quando chegou minha vez. Minha senha era 637.
Começamos o diálogo com aquelas perguntas protocolares. Formulário-padrão de entrevista de emprego. Como eu previa, ela ocupa uma função foda. Nem lembro direito, mas sei que é alto escalão. Aquilo não é um cargo, é uma oração subordinada. 4 ou 5 palavras e umas iniciais no meio que só servem pra te humilhar. Gestora de Franquias IT Aplicadas ao Pequeno Varejo. Corregedora Master XP em Prevenção a Fraudes e Delitos. Vice-Presidente MHD em Análise de Riscos e Oportunidades. Se colocar todos os cargos de onde ela trabalha no papel, sai a continuação do Harry Potter.
Minha pergunta seguinte foi bem besta. Homem fica meio retardado quando tenta se aproximar de uma mulher. “O que você pretende nesta comunidade?”. Criar um evento #ForaTemer. Vender Cogumelos do Sol. Fazer novas amizades. Claro que não, ô idiota! Amigos a gente faz na sinagoga. No curso de stand-up. Quem entra numa comunidade chamada Solteiros e Solteiras de São Paulo é porque está procurando sua cara-metade. Pode ser um casamento. Um namoro sério. Um namoro divertido. Até uma trepada, quem sabe. Ou, na maioria dos casos, o que de fato acontece é uma sequência de 300 mensagens no WhatsApp e um encontro de um dia só. Uma relação efêmera e casual de 3 horas, que começa no Star Wars e termina no Starbuck’s.
Se ela é uma pessoa bem resolvida, e provavelmente muito seletiva, você deve estar se perguntando: o que ela está fazendo numa comunidade de losers, e ainda por cima virtual, onde só dá maluco? É fácil de responder. Sim, existem aristocratas que além de ricos são bonitões. Ela poderia ficar com qualquer um deles fácil. O problema é que a elite brasileira é uma bosta. Esses Mansur, Garneros da vida, aparecem na coluna da Mônica Bergamo mas todos eles cometeram grandes crimes contra a nação. O mais gritante é que todos namoraram a Adriane Galisteu. Thor Batista, por exemplo. Ele é deus nórdico só no nome. Um babaca. Deve ser muito chato namorar um cara cujo hobby preferido é atropelar ciclista. Então, é possível que ela tenha entrado na rede por uma questão de experimentação. Deixar aflorar o lado insólito da vida. Entrar em contato com o excêntrico. Sei lá.
Na sequência do nosso diálogo virtual... aliás, esqueci de apresentar a pessoa. É Anna, com 2 NN. Não sou besta, né? Claro que esse não é seu nome verdadeiro. Mas eu gosto. Anna é nome de gente rica. Empoderada (odeio essa palavra). Anna Pegova, Anna Hickmann, Anna Karenina. Nome de quem empresta sua imagem a comercial de cosméticos. Portanto, essa pessoa relatada doravante será chamada de Anna. Que continua sendo um mistério. Sabe aquela história de que a música “Parabéns a você” não é de domínio público, mas foi criada por uma velhinha de 90 anos que mora no sul do Texas, e cada vez que alguém canta ou toca essa música tem que depositar uma porcentagem dos royalties na conta dela? Então, eu tô desconfiado de que a Anna é neta dessa velhinha. Disse que tem um casal de filhos adolescentes e me mandou a foto deles. Sei não, mas acho que ela alugou esses pimpolhos num brechó. Duvido que o pirulão de 1,80m tenha saído daquele ventre imaculado.
Mas voltando ao chat. Mencionei o churrasquinho grego, a Galeria do Rock e o Largo do Paissandu. Não se trata de um convite, claro. É mais pra testar seu nível de conhecimentos sobre estudos antropológicos. Ela conhece o Largo do Paissandu. Viu nos noticiários na semana retrasada. Antes disso, achava que era a capital do Bangladesh.
Próximo assunto: cinema. Meu território, meus domínios. Falei que frequentava mais os cinemas da região da Paulista. Pela localização, pela programação, enfim... Ela respondeu que as cadeiras não são confortáveis. Vou repetir: as-cadeiras-não-são-confortáveis. Aquela informação me caiu como uma pedra. Minha vivência cinéfila ruiu. Passei metade da adolescência dentro do Cine Astor. Parte das cadeiras do Itaú Frei Caneca estão mais fofas graças às minhas nádegas. Conheço os funcionários do Belas Artes pelo nome. Se ela estiver se referindo ao Centro Cultural, está coberta da razão. Aquelas cadeiras duras e sem encosto são ótimas... para monges tibetanos que dormem no chão. Nivelam qualquer opulência. E até hoje não entendo por que raios eles quiseram imitar cadeira de balanço de parque infantil.
Para a musa do capitalismo, o cinema preferido é, adivinhem: Cinépolis JK Iguatemi. Vou dar um briefing pra quem não conhece. Lá, um concierge dentro da sala serve pipoca ao azeite trufado com uma taça de cabernet sauvignon. A poltrona é mais confortável que minha cama. Quando você senta nela, a primeira coisa que precisa fazer é pegar o celular e botar pra despertar às 7h. A lateral da cadeira tem mais botão que o painel do carro da minha mãe. Tem botão pra elevar o apoio dos pés. Botão pra inclinar o encosto. Certeza que se você apertar os 2 botões juntos vem uma oriental te fazer shiatsu. Pena que só passa blockbuster. Se passasse algum filme do Lav Diaz (pra quem nunca ouviu falar desse diretor, um curta-metragem dele dura 4 horas) eles não venderiam ingresso. Venderiam uma diária. A bilheteira te entregaria o ticket junto com uma toalha, Havaianas e sabonete líquido. E naquele complexo não existe “sala comum”. A sala VIP É a sala comum. A hierarquia é sala VIP, sala Ultra VIP, sala Mega VIP e Olimpo. Com a grana do ingresso mais R$ 200 dá pra dar a entrada numa kitchenette. Uma vez eu encontrei o Wagner Moura naquele cinema. Estava deixando currículo com a gerente.
Não definimos ainda o local do encontro. O cine-ostentação é uma possibilidade. Não quero fazer que nem todo homem faz. Chegar uma hora antes e dizer pra ela “acabei de chegar, é minha primeira cerveja”. Vamos tentar sincronizar horários. Vamos chegar mais ou menos juntos. Ela de Hilux, eu de Terminal Capelinha. Não tenho carro, não gosto de dirigir. Mas isso ela não precisa saber. Tem muita coisa da minha vida que ela não precisa saber. Pelo menos não no primeiro encontro. Que eu tive lúpus eritematoso subagudo. Durante 2 anos da minha vida, meu rosto parecia um campo minado de varíola. Ou que nas aulas de lambada ninguém queria dançar comigo e eu treinava sozinho em frente ao espelho. Ou que o pessoal da firma acertou a quina da Mega Sena e eu não entrei no bolão. Ela não precisa saber nada disso. Só o básico, o resumo da minha vida: nasci / peguei autógrafo do Pelé / entrei na ESPM / entrevistei o Tarantino / vim aqui te conhecer. É mais do que o suficiente.
Ela também não precisa saber de alguns detalhes programados para o próprio dia. Vocês sabem, hoje em dia tem um Carrefour Express em cada esquina. Compro um sanduíche integral de peito de peru e tá tudo certo. Simulo uma certa indisposição na hora do encontro. Não vou gastar o olho da cara pra comprar pipoca com redução de aceto balsâmico preparada pelo Alex Atala. A única pipoca que conheço vem com redução de milho. Cansei de comprar saquinho pela metade.
Mas vai dar tudo certo. Já pedi o adiantamento do 13º. Segui o protocolo para impressionar pessoas. Entrei no Google. Decorei o nome de todas as espécies de abelhas em extinção. Aprendi as expressões básicas em mandarim. Treinei um monte de coisa que vi em tutorial: saltos de parkour, fazer crepe suzette na mesa, trocar a bateria de iPhone... pensando bem, esse não. É impossível trocar a bateria de iPhone. Tô confiante. Talvez não role nada. Talvez ela dê a desculpa clássica “vou comprar cigarros”. Faz parte da vida. O que importa é a tentativa. No Cinépolis JK Iguatemi. Capaz dela achar que EU seja o concierge. Mas tudo bem. Vamos ver. Mas antes, preciso dizer uma coisa muito séria: se for pedir vinho dentro do cinema, que seja um Merlot chileno, reserva 2012.