Deus, ó meu Deus, sabe que não acredito em você. Nunca acreditei.
E tenho plenas convicções de que essa atitude é coerente. Pois, diante das
coisas, chego à conclusão de que, se você de fato não existe, tudo isso é obra
do acaso. Mas, se existe, está numa fase de querer zoar da minha cara, fazer
bullying. Portanto, prefiro ficar com a primeira opção.
Ontem fez 6 anos que meu pai faleceu. Foi descansar
eternamente nas terras do Senhor. Ele era sim uma pessoa brava, rígida, severa.
Mas não merecia passar o último ano de sua vida à base de uma fileira
interminável de remédios. Uma quantidade de doenças que mal cabia no campo
descritivo da certidão de óbito. Isso não se faz com um ser humano. Olha só, quão
irônico você foi. Justamente no ano em que ele conseguiu sua suada e merecida
aposentadoria, época em que poderia viver o melhor da vida, sem as preocupações
da rotina, você só faz agravar seu estado de saúde numa escala geometricamente
progressiva.
Mas o requinte de crueldade não acabou aí. Moro na mesma
casa praticamente minha vida toda. Ela sofreu o desgaste do tempo, já foi
pichada na fachada externa, mas nada muito mais grave. Sempre me senti seguro
dentro dela. Nunca fomos assaltados. Ela sempre foi uma espécie de fortaleza no
meio da bandidagem periclitante das redondezas. E veja só, a que ponto chegou
seu sarcasmo. Alguns anos após a morte do meu pai, nosso porto seguro foi
arrombado. Coisa que nunca aconteceu em mais de quatro décadas. Os pivetes da
favela, nunca encontrados, jamais sequer procurados pela polícia, estilhaçaram
a fechadura da porta principal e fizeram a festa. O que levaram? A nossa
dignidade. A nossa crença no ser humano. E parou por aí? Tsã, claro que não...
dois anos depois, outra invasão. Desta vez, feita por engravatados que nem
precisaram arrombar a porta. Uma cagada da família, somada à incompetência de
um advogado inerte, fizeram com que a gente ganhasse alguns cabelos brancos
tentando resolver essa pendenga na Justiça. Nem vou entrar em detalhes, ó meu
todo-poderoso, pois tem mais gente lendo esse desabafo. Mas você, na sua
onipresença, onisciência e prepotência, sabe do que estou falando. Você lê
pensamentos. Pra falar a verdade, acho que você nem é aquele Deus-profeta de
barbas brancas que imaginamos. No máximo você deve ser o Xavier, sentado em sua
cadeira de rodas, escondido em algum pilar, adivinhando tudo o que vou
escrever. Foi só meu pai morrer pra você decidir amaldiçoar nosso lar amargo
lar. Minha mãe, por exemplo, tá fazendo mais exames médicos. Trocou o cinema
pelo SUS. Nunca mais fez uma viagem decente. Tudo isso por culpa sabe de quem?
Sua.
Sempre aprendi que a gente não pode falar mal de você. Não
pode questionar, criticar. Tem que aceitar e pronto. Caso contrário, pode soar
como insulto, blasfêmia. “Deus castiga”, é o que sempre ouvi. A gente é
obrigado a ter fé, acreditar, orar, aceitar tudo o que você decide de cabeça baixa
e olhos fechados. É a sua vontade e ponto final. Você jamais vai ser convidado
a participar do programa Roda Viva e responder as perguntas dos jornalistas. Você
é autoridade máxima. Devemos temer a Deus. Respeitar a Deus. Subordinar-se a
você. Meio autoritário isso, não acha?
Bom, então já que você não existe, posso continuar, certo?
Porque, se existisse, talvez daria um “control Z” de arrependimento em alguns
comandos recentes. Então, vamos lá. Vamos falar um pouco de mim. Claro, deu pra
perceber que esses últimos 6 anos foram definitivamente os piores da vida deste
ancião de meio século que vos escreve. Nada, mas nada meeesmo, tem acontecido
de relevante que me faça pensar o contrário. Tá bom, OK. Passei a trabalhar
numa empresa que tem ar-condicionado e frutinha todo dia, num momento econômico
em que quase metade da população ativa está preenchendo fichas de emprego. Mas
só isso. O resto tá um desastre. Após a morte do meu pai, fui obrigado a voltar
a fazer terapia, e encarei temas pesados. Os dissabores do dia a dia vieram
como uma avalanche. É erro atrás de erro. Não venci na profissão. Não encontrei
o tal amor verdadeiro que fosse capaz de substituir os 9 anos de relacionamento
(encerrados, diga-se de passagem, no dia em que comemoraríamos os tais 9 anos, junto
com aquele turbilhão de acontecimentos relacionados à doença do meu pai). Existe
toda uma configuração astral que faz com que eu não sinta saudade alguma desta
década, e tenho certeza de que os anos 2010 serão lembrados por mim como os
piores da minha reles existência.
Deus, fala sério! Não fode! Como se não bastasse tudo isso
até agora, o que você me apronta pra 2019? Um mundo que entortou pra extrema direita.
Ataques terroristas quase que diários. O chafurdamento de Brumadinho. Um
Presidente que só fala merda a toda hora. E esse verão então? Porra! Só chove,
caralho! Ainda bem que acabou. Nada contra, a gente precisa de água pra encher
os rios e trazer os peixes que Vossa Senhoria criou. Mas você forçou a barra.
Esqueceu que aqui não tem arca de Noé? O máximo que a gente tem é um prefeito
incompetente, tentando consertar semáforos apagados e nivelar pontes. Alagamentos,
árvores caindo, não são da nossa natureza. Esse cenário triste e cinzento em
nada contribui para qualquer perspectiva. Vivemos na insegurança econômica e
social. Minhas investidas amorosas são uma sucessão de fracassos. Cada nova
descoberta, um banho de água gelada. Até levar uma marretada na cabeça pelo
Thor iria doer menos.
É isso o que tenho a dizer, meu divino Deus. Você não me dá
outra alternativa a não ser blasfemar e reprovar todo seu deboche, sua
pilhéria. Ou continuar acreditando que você não existe. Reafirmar
categoricamente meu ateísmo. Achar que você é um golpe de marketing, uma
criação pra deixar a Igreja mais rica e o Silas Malafaia mais famoso. Assim
encerro toda essa maravilha. Passar muito bem.