sexta-feira, 14 de junho de 2019

O sentido da vida


Helvécio começou sua busca pelo autoconhecimento. Para isso, decidiu mudar radicalmente sua vida. Virou vegano. Aboliu a carne vermelha, a carne branca, a carne de siri. Aboliu os prazeres da carne também. Agora, só sexo tântrico. Aquele amor físico em que se fica mais de 3 horas numa mesma posição, sem o contato direto entre corpos opostos. Ao final do rito, difícil saber se vem a vontade de gozar ou de dormir. A sensação orgástica máxima é a massagem pélvica. Com um incenso fumegante no ambiente, ao som das cítaras de Ravi Shankar.

Na questão culinária, Helvécio aboliu também o mel, o ovo, as saúvas e qualquer outra espécie animal ou substância produzida por elas. Nada de causar sofrimento a um ser, por mais protozoário que seja. Passou a adotar também a penitência como estilo de vida. Dormir no chão. Fazer voto de silêncio. Dar chibatadas nas próprias costas. Em compensação, aderiu a práticas mais saudáveis. Tai-chi chuan. Yoga ayurvedica. RPG. Meditação com atenção focada.

O maior sonho de Helvécio agora é conhecer o cume do planeta e os ancestrais templos religiosos da região. Trocou a Disney pelo Tibete. Programou-se pra isso. Já estudou o roteiro, comprou a passagem com 4 anos de antecedência (antes disso, tá tudo esgotado), reservou um quarto rústico numa pousada perto de uma colônia de discípulos religiosos. Fez curso de filosofia oriental. Inscreveu-se nas aulas sobre técnicas de respiração para encarar a altitude do país. Raspou a cabeça. Passou a vestir batas e túnicas. Até entrou num grupo de WhatsApp para discutir sobre as especificidades desse pedaço de mundo.

Tudo isso porque Helvécio precisa se encontrar com o monge-mor para saber o verdadeiro sentido da vida. Ele quer respostas para esse mundo tão complicado. Um exercício metafísico de reflexão.

Eis que Helvécio vai ao Tibete. Escala montanhas, caminhando a pé uma distância equivalente ao trecho entre São Paulo e Santos. Marca a entrevista com espera de mais de mês. Até que o tão aguardado dia chega. À frente do rio Yun-Xiao, aparece o abade Ho-Pin Tse, do templo Wahshjrhuta. Com os olhos semicerrados e as mãos juntas e esticadas apontando para o céu, Helvécio pergunta ao monge qual o verdadeiro sentido da vida. E o sábio responde de maneira definitiva:

- As cervejas podem até ter um gosto diferente entre si. Mas as latinhas de todas elas fazem o mesmo som efervescente.


quarta-feira, 5 de junho de 2019

Mãos ao volante


O capitão, o ditador, o fascista, o machista, resolveu ser uma mãe para os motoristas barbeiros. Anistiou a imprudência e a imperícia ao volante, num ato de equivocado liberalismo nas ruas e estradas. Sabe aquela quantidade de faltas graves que você não pode cometer sob o risco de ter sua carteira de habilitação cassada? Então. Esse limite dobrou.


Com (mais) essa medida, temos então a prova de um verdadeiro presidente duas-caras. Extremamente intolerante com a diversidade de gênero. E extremamente permissivo com o uso (porte e posse) de armas, ainda que isso seja reprovado por 3/4 da população. Rigoroso e taxativo com a "baderna nas universidades", mas um coração mole com a redução de impostos de bebidas e cigarros, estimulando o consumo de tais substâncias e dando um passo atrás na guerra contra o tabagismo. Irredutível na questão das fronteiras indígenas, mas muito mão-aberta aos interesses econômicos dos madeireiros. Radicalmente contrário ao dialeto LGBT nas provas do Enem, mas totalmente vulnerável à liberação dos agrotóxicos proibidos no mundo inteiro. Absoluto nos cortes de verbas destinadas à Educação e à Cultura. E um docinho na não-obrigatoriedade da cadeirinha no banco traseiro do carro.


De um lado, a botinada. De outro, o borra-botas. O facínora misógino decidiu abrir as pernas. Que na época de campanha dizia serem de chumbo, mas agora readjetivou para “flexíveis”. Em nome da desburocratização, facilitou o acesso ao fuzil, ao Marlboro, à cachaça e, mais recentemente, ao acelerador. Do carro, não da economia. Esta continua em ponto morto. Em compensação, em sua retidão obtusa, torna cada vez mais inviável o acesso ao teatro, ao cinema nacional tão premiado no exterior, às exposições de corpos nus ou qualquer outra manifestação artística outrora beneficiada por incentivos fiscais de empresas estatais ou patrocínios do setor privado via Lei Rouanet. Quem sai ganhando com isso, ao contrário do que se pensa, não é o cidadão de bem. É o lobby empresário-político. Como sempre foi na história deste torpe país.

Se você votou no coiso, e continua defendendo cega e irrefreavelmente o dito cujo, não posso deixar escapar as seguintes perguntas: que tipo de Brasil você pensa para o seu futuro? Para o MEU futuro? Que tipo de sociedade você pretende construir para seus filhos? Você realmente é a favor do remédio caro e da pinga barata? Da impunidade no trânsito? Com o fim dos exames toxicológicos para caminhoneiros, além da (esta sim) fraquejada em outras questões do trânsito, agora nem será mais necessário subornar o guardinha. Temos enfim um caminho livre para a pista de bate-bate e a mesa de mata-mata. Fica para sua reflexão. Mas, se você continua achando que o correto é governar pelo Twitter, que as fake news são mais instrutivas do que os livros, e que de fato são acertados os estímulos para reproduzirmos uma população que bebe, que fuma, que atropela e que atira, aí nossas divergências não são meramente ideológicas. Trata-se de uma questão de bom senso. De caráter, pra falar a verdade.