quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Não vá ao Cinemark


Cansei de reclamar com o gerente, usar o Fale Conosco do site, enviar textos para a extinta seção de críticas do Guia da Folha. Cansei. Só me resta então fazer campanha. NÃO VÁ AO CINEMARK. Agora, a “moda” é unificar as bilheterias de compra de ingressos com a bomboniere. Isso só prova que, como eu sempre falo, CINEMARK NÃO É CINEMA. É uma loja de doces em que se passam filmes. A consequência disso? Ontem fiquei mais de 20 minutos agonizando na fila. E a tendência é só piorar. Sou das antigas. Recuso-me terminantemente a comprar por aplicativo, que também gera transtornos na leitura do código e não impede o cliente de enfrentar fila, só que trocando uma por outra. Não compro em sites, eles cobram uma taxa de conveniência pra não oferecer conveniência nenhuma. Minha vida é cheia de imprevistos, eles também não fazem a troca ou devolução do ingresso caso eu não consiga chegar à sessão comprada. As filas nos terminais de autoatendimento são igualmente lerdas e gigantescas, e raramente contam com um funcionário para auxiliar os clientes. Se você não se sente afetado com meus argumentos, tudo bem. Continue indo ao Cinemark. Meu diálogo não é com você. Mas se você é daqueles que também ficam indignados com tamanho descaso da rede pela Sétima Arte, tamo junto. O lucro dos exibidores para cada ingresso vendido não passa de 10%. Já o lucro das gororobas do snack bar, como por exemplo a pipoca, ultrapassa 500%. Então, você já deve ter percebido qual é o foco da empresa. NÃO VÁ AO CINEMARK. Se possível, opte pelos cinemas de rua, que conduzem o ofício de oferecer cinema usando uma lógica menos perversa. Opte pelos circuitos “de arte” que também colocam blockbusters na programação (Arteplex, por exemplo). Com telas boas e poltronas confortáveis, na maioria dos casos. Talvez o movimento de derrocada seja inevitável e essa luta ganhe um efeito nulo. Mas é o máximo que eu posso fazer. Se você chegou até aqui na leitura do texto, é porque em algum aspecto concorda comigo.


quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Coisas que me emputecem


Hoje tá um ótimo dia pra reclamar da vida:
1)     Está chovendo forte. Você espera a chuva passar. Ela passa. Até você descer do elevador, se despedir de todo mundo, na hora em que sai pra rua a chuva volta, mais forte ainda. Torrencial. Você se lembra... de que esqueceu o guarda-chuva. Fica ensopado. Entra aonde precisava chegar. Um minuto depois, a chuva para.
2)     Você faz uma pergunta pra alguém. De múltipla escolha. Espera como resposta uma das alternativas apresentadas. Por exemplo: “Você gosta de bife mal passado ou bem passado?”. E a pessoa responde: “Isso mesmo”.
3)     O motorista do Uber acha que você é o psicanalista dele. Ele desabafa, conta toda a sua vida, os seus problemas. Você só ouve. Como um bom psicanalista. Só que, no final, quem paga a consulta é você.
4)     Pessoas que resolvem almoçar juntas. Todas elas, da firma inteira. Forma-se um bloco de 14 indivíduos na calçada. Eles é que determinam a velocidade média dos transeuntes. Não deixam ninguém ultrapassar. Estão todos felizes, rindo muito. E bloqueando a passagem dos demais. Como se fosse um bloco de micareta.
5)     Gente
que
escreve
assim
no WhatsApp
6)     O valor da oferta anunciada na gôndola do produto no supermercado nunca coincide com o valor registrado no caixa.
7)     Ainda no supermercado. A pessoa na sua frente da fila repetiu de ano em Matemática. Puxa um carrinho abarrotado de mercadorias, debaixo da placa onde se lê “máximo 10 volumes”.
8)     Você vai ao banco. Pega a senha. Número 322. Vê no painel a última pessoa que foi atendida: 275. Sabe que vai demorar pa-ra-ca-ra-lho. Dá tempo de ler todos os livros do Tolkien. Aquele vidro fosco que divide os caixas e os clientes foi criado pra você não conseguir enxergar quantos funcionários estão atendendo. Depois desse trajeto Rio-São Paulo de ônibus, avista o número 321 no painel. Pega seus boletos e prepara-se psicologicamente pra ser o próximo. Painel apita o número P014. Preferencial. A velhinha que acabou de chegar, mesmo com seu andador, consegue te ultrapassar.
9)     Loja de roupas campo-minado. Você está do lado de fora, olhando a vitrine. Assim que encosta na primeira lajota do piso interno, explode um vendedor ao seu lado: “Bom dia em que posso ajudar tá procurando algo específico aproveita nossa promoção dá uma olhada nos outros modelos sem compromisso”.
10)  A mesma lógica. Só que ao contrário. Você entra na loja, espera ser atendido, e nada. Procura você mesmo as roupas, consulta você mesmo os preços, revira você mesmo as pilhas de camisetas, e ainda assim nada. Entra no provador, sai de lá, usa seu braço de cabide, dirige-se ao caixa. Sozinho. Do começo ao fim, você é o meme do John Travolta.
11)  Situação parecida. Desta vez, no restaurante. O garçom finge que não te vê. Você levanta a mão e faz um breve aceno. Ele desvia o olhar. Levanta o braço um pouquinho mais, tentando chamar outro garçom. Ele também finge que não te vê. Você estica ainda mais o braço, tentando alcançar o lustre, pra ver se São Pedro consegue te enxergar e providenciar uma atitude divina. Só que a coisa é muito sincronizada lá dentro. Todos os garçons combinam entre si de te ignorar solenemente. A não ser na hora de trazer a conta e cobrar os 10%.
12)  Continuando no restaurante. Por quilo. Você está se servindo. A pessoa atrás de você tem pressa, muita pressa. Parece o Coelho Branco da Alice no País das Maravilhas. Toda hora encosta a bandeja no seu cóccix. Tá bufando. Pega qualquer coisa e joga de qualquer jeito no prato. Em compensação, a pessoa à sua frente tem toda a calma do mundo. Faz todo um processo seletivo para cada folha de alface. Escolhe minuciosamente cada ervilha como se fosse um gemologista. Despeja no prato os grãos de feijão por unidade.
13)  Escada rolante. As pessoas à sua frente acham que o aviso “deixe a esquerda livre” é mera panfletagem política.


segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Começa com E


A história de hoje se passou há mais ou menos 10 anos, quando trabalhei no departamento de Comunicação de uma distribuidora de médio porte de filmes. Uma empresa familiar, cuja dona era folclórica no mercado cinematográfico brasileiro. Fiquei pouco tempo ali. Mais ou menos 3 meses, o equivalente ao período de experiência. Quando eu já tinha um bom tempo de casa, pelo menos pra todo mundo dali saber quem eu era e o que eu fazia, a tal proprietária me perguntou:
- Qual o seu nome, mocinho?
- Começa com E.
Ela, um pouquinho mais irritada, respondeu:
- Fala logo, mocinho!

Corria à boca pequena que de vez em quando ela costumava maltratar alguns funcionários. Comigo nunca houve nada nesse sentido. Mas isso não quer dizer que a gente tinha algum tipo de intimidade. Analisando hoje, eu sinceramente não sei onde estava com a cabeça para achar que uma senhora de quase 80 anos, presidente de um renomado selo de distribuição de filmes, ira naquele momento querer brincar de jogo de adivinhação. É a mesma coisa que beliscar o braço do Kim Jong-um e falar “3 marcas de cigarro”. É como falar pro Bolsonaro “sebrãbisdoila” e, na hora em que ele perguntar “o quê?”, você aponta o polegar pra baixo e faz um som com a língua “prrrrr”. Se bem que no caso do Bolsonaro é até capaz de ele rir e gostar da brincadeira.

No fundo, eu queria achar que se tratava de um esquecimento temporário. Não passava pela minha ingênua cabeça de que ela nem fazia ideia de quem eu era. Que a minha importância para o sucesso da empresa era o equivalente ao bebedouro. Que eu era facilmente confundido com um cartaz de filme de terror.

Claro que esse fato ficou notório no nosso departamento. Risadinha aqui, risadinha ali, cada vez que alguém se lembrava do episódio. Até que o assunto morreu. Dias depois, falei para um comparsa da equipe:
- Já salvei na rede o texto do filme.
- Qual filme?
- Começa com E.


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Um dia de Playcenter


A história de hoje se passou no fim da década de 90. Mas, antes de começar o relato, é bom trazer o contexto para quem ainda não era nascido ou não conhece o lugar. O Playcenter foi o maior parque de diversões de São Paulo. Deve ter surgido nos anos 70, bombou nos anos 80, sobreviveu nos 90, começou a dar sinais de cansaço nos anos 2000 e fechou as portas coisa de uns 7 anos atrás. Era gigantesco. Proporcional à quantidade de frequentadores. Creio que um Playcenter lotado equivalia à população de Belo Horizonte. E as filas dos brinquedos eram muito, muito grandes. Intermináveis. Pra dar a sensação de que nem eram tão imensas assim, a organização do parque inventou de fixar aquelas grades que formavam corredores improvisados. E aí as filas rocambolescas faziam aquele caracol. Vistas de cima, pareciam o intestino delgado. E, se fossem esticadas em linha reta, cada fila começaria no bairro do Limão e terminaria na Rodoviária Tietê. Pra você aproveitar bastante, tinha que ir lá numas datas meio atípicas, como véspera de Natal, dia de jogo do Brasil na Copa ou dia de greve dos caminhoneiros, se houvesse. Caso contrário, em dias considerados normais, você passava a tarde inteira no parque pra conseguir entrar em no máximo três atrações. Isso tem uma explicação. A maioria dos frequentadores era galera. Não aqueles grupos de 4 pessoas que resolvem ocupar uma mesa do Outback. Era grupo meeesmo. Parecia aqueles ônibus que desembocam na 25 de Março durante o fim de semana. Ou as caravanas do Sílvio Santos. Quando uma escola resolvia fazer excursão ao Playcenter, era a escola INTEIRA. Se existisse smartphone na época, o pau de selfie teria que ser do tamanho de uma canoa pra fazer caber a turma toda na foto. Se por acaso houvesse alguma briga de gangue, a professora tinha que fazer chamada antes do embate pra conferir se todos os lutadores estavam presentes. Na prática, essa situação era meio bizarra. Já imaginou como seria a divulgação do ultimate fighting entre o Colégio Dom Bosco e a Escola de Primeiro Grau Marista da Glória?

O Playcenter era a opção mais em conta pra quem não tinha grana para ir à Disney. Mesmo assim, o ingresso não era tão barato. Por isso, vira e mexe faziam promoções, sorteios, etc. Era relativamente fácil encontrar o Passaporte da Alegria nas tampinhas das garrafas de Coca-Cola, nos encartes de jornal... se bobear, tinha Passaporte até na caixa de sucrilhos.

Na época, eu tinha uma amizade muito forte com uma moça que trabalhou comigo. Rolava um certo clima no ar. Nunca aconteceu nada, nunca ficamos, nem rolaram beijinhos, nem chegamos a nos declarar, nada. Mas existia na atmosfera aquela coisa que me alimentava as esperanças de que, quem sabe um dia, essa situação poderia evoluir.

Pois foi numa dessas promoções, talvez no jornal, que ganhei o Passaporte da Alegria e chamei essa minha amiga pra me acompanhar. Por três razões: primeiro, porque eu queria impressioná-la. Quem sabe com esse convite eu poderia acelerar o processo daquilo que minha cabeça imaginou que um dia fosse acontecer. Segundo, porque eu não tinha tantos amigos assim. Por mais que eu seja um cara “sociável”, com milhares de amigos, fãs e seguidores nas redes sociais, a lista de pessoas na agenda é bem pequena. Sim, na época eu usava agendinha telefônica, aquela em papel com suas respectivas divisórias por ordem das letras do alfabeto. E terceiro porque eu, como um bom judeu, não poderia desperdiçar a oportunidade e menosprezar a informação constante no verso da filipeta: válido para 2 pessoas.

Marcamos no metrô Barra Funda. Ela chegou pontualmente e estava bem entusiasmada. A chance de cumprir o critério 1 do parágrafo acima era quase certa. Aquela com certeza iria ser a tarde mais divertida da minha vida.

Desculpe interromper novamente a linha de raciocínio, mas preciso acrescentar outra informação relevante. Eu ia bastante ao Playcenter. Quando era pequeno. Acompanhado pelos meus pais. Adorava esse programa. Durante minha infância, saía ileso da casa mal-assombrada. Jamais sofri qualquer tipo de acidente no carrinho de bate-bate. Era o rei da roda-gigante. Só que os anos se passaram. E o parque passou a adotar brinquedos mais radicais.

Chegamos ao parque e nossa primeira escolha foi um brinquedo chamado Samba. Na verdade, de samba ele não tinha nada. A não ser o fato de eu odiar os dois, tanto a música quanto aquela máquina. Parecia um pandeiro desengonçado, e você tinha que se equilibrar segurando em alguns ferros laterais. Quem não conseguisse se segurar, caía. Não vi graça nenhumas, mas precisava cumprir meu objetivo. Saí de lá com um sorriso de fazer inveja ao Coringa.

Nossa segunda escolha foi um tal de Viking. Pra quem não conhece, é um barco que fica subindo e descendo. A cada movimento, ele ganha altura e velocidade. No clímax da brincadeira parece que você atingiu o topo do Edifício Itália. Aí ele começa a descer progressivamente, até parar. Entendi porque o brinquedo ganhou esse nome. Ali dentro o tempo demora tanto pra passar que parece que eu vivi uns 5 séculos em 5 minutos. Voltei pra Idade Média. E uma coisa mais recente que adotaram no Playcenter foi botar DJ. Assim que acabou a brincadeira, o DJ pegou o microfone e perguntou “Vocês querem mais?”. Achei que a maioria fosse responder: “Não, de boa”. Só que, ao invés disso, ouvi um coro uniforme gritar “SIIIIIIM”. Igual àquela cabine de um quadro de perguntas do programa Sílvio Santos. E dá-lhe mais eternidade subindo e descendo pelas nuvens de São Paulo.

Quando saí da máquina, meu conceito de chão era uma grandeza muito relativa. Minha labirintite veio parar no joelho. Até tentei manter a compostura e continuar impressionando minha amiga, mas não teve jeito. No primeiro amontado de jardim, veio a incontrolável vontade de regurgitar. Coloquei pra fora o almoço da semana anterior. Imagine você, meu caro. Usei o Passaporte da ALEGRIA para usufruir de dois brinquedos e passar o resto da tarde deitado num banco e tomando sal de frutas. Minha amiga, em seu trenzinho a 10 km/h recomendado para pessoas de até 5 anos, passou várias vezes por mim. Os periódicos tchauzinhos que me foram acenados a cada volta foram a resposta mais definitiva da tarde: jamais conseguiria impressionar minha amiga naquele estado crítico.


quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Bacuringa



Até poucos dias atrás, as principais discussões cinematográficas giravam em torno de Bacurau e de Era Uma Vez... em Hollywood. Agora, o anti-Marvel Coringa chega não com a pretensão de encerrar o assunto longe de se esgotar, mas para abrir um próximo parágrafo diante da questão.

Se esse paralelismo faz parte ou não do inconsciente coletivo, ou de uma histeria hegemônica social, ou se trata apenas de uma coincidência, difícil concluir. Nessa tríade, o que chama a atenção é não só o retrato de uma sociedade doente, mas a urgência de se discuti-la. Vale lembrar redundantemente que, nos três casos, o produto é ficcional, em seus diferentes pesos e medidas autorais. No primeiro caso, mergulhamos na psicopatia de um núcleo invasor, que vem de fora, e usa a pobreza nordestina como palco de um sádico paintball reality show. É a própria comunidade invadida que aplica os contragolpes, com os mesmos requintes de crueldade, durante a catártica vendeta do epílogo. Com essa intensidade igualmente raivosa, bem aos moldes da milenar Lei de Talião, podemos entender que o combate à psicopatia só é possível usando a própria psicopatia. No tarantinesco exemplo, a excessiva caricaturização dos psicopatas abranda um pouco o episódio “baseado em fatos reais”. O clima de tensão do devir é muito maior do que a concretização da violência atrapalhada do derradeiro ato propriamente dito. Aqui, não é a sociedade atingida como um todo que faz o revide, mas apenas uma dupla da indústria cinematográfica decadente e colapsada diante de uma nova era. O efeito é, portanto, mais farsesco e menos catártico. A representação icônica por camadas metalinguísticas (um ator e um dublê de ator) dilui a insanidade dos Estados Unidos dos anos 70, ou pelo menos a coloca em outro registro. Já em Coringa, esse rescaldo patológico se apresenta de modo mais confuso. Não se trata exatamente de um grupo que contra-ataca as arbitrariedades doentias de outro grupo, como no primeiro caso; nem de um duo que evita um mal maior a ser causado por um bando de ripongas alucinados pelo satanismo, como no segundo. Aqui, é um único indivíduo que ao mesmo tempo rebate a doideira social e injeta nela outras nuances patológicas dessa mesma loucura. É o eu-sozinho contra o mundo.

Claro, desnecessário dizer que Coringa é um caldeirão de paradoxos. Comédia e tragédia se misturam como se fossem as facetas de outro vilão, o Duas Caras. O bordão “rir para não chorar” poderia se encaixar perfeitamente na sinopse. A chapliniana canção “Smile” sendo executada nas cenas menos engraçadas é um resquício dessa contida ironia. A música é doce em sua melopeia rítmica, e parece bailar junto com o Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa, em que as digressões do poeta lusitano ecoam na cabeça do personagem interpretado pelo irretocável Joaquin Phoenix. No texto em primeira pessoa, encontra-se um fracassado que vive num mundo de vencedores. E Phoenix, em sua ingenuidade do prefácio, parece assimilar esse discurso de uma bondade utópica. Quanto mais ele acredita no ser humano, mais chutes no estômago ele leva. Nesse acúmulo de socos e pontapés é que vem a pergunta: de que forma e em qual intensidade vai surgir a salvadora reversão cômica?

Assim se constrói o universo DC Tragicomics. Os filmes da Marvel, basicamente, são um recheio de efeitos visuais e pirotécnicos reluzentes sobre um palco de guerra. Com pitadas de humor. É o show de stand-up (eu diria talvez Stan-up) num ringue espacial de MMA. A DC procura roer outras camadas. Coloca a risada onde não há graça nenhuma, o que deixa parte de seu legado ainda mais dialético. O pingo de sangue sobre o button smile, na cena de Watchmen em que o primeiro herói morre, traduz um pouco esse sarcasmo contundente. Não há lugar para stand-up em Coringa. Não há plateia disposta a rir. O punchline, fechamento de uma anedota, é muito mais punch. Uma porrada, um soco no fígado.

Do começo ao fim, Coringa tenta provar que a frase mercadológica de lançamento “coloque um sorriso nesse rosto” é algo inatingível. Mas aqui eu me permito, acima de tudo, estabelecer uma relação de tempo e espaço ao filme. Tudo indica se passar em algum lugar dos anos 80. Tem uma secretária eletrônica. E, não por acaso, tem na fachada de um dos cinemas da cidade o letreiro do filme Um Tiro na Noite, a reinterpretação que Brian de Palma faz à obra-prima de Antonioni. Tem Robert de Niro como apresentador de um talk show, fazendo uma alusão ao Rei da Comédia, no qual ele também trabalha. Mas as referências não são apenas herméticas, piadas internas, como se a equipe estivesse lançando um olhar para o próprio umbigo. Coringa se expande ao mostrar uma metrópole violenta e surrupiada quase como um registro documental da maioria das cidades que se desenvolveram rapidamente. Poderia Bacurau ser o retrato do Brasil de Bolsonaro? Sim, perfeitamente. Uma colônia árida atacada por milicianos gringos que tentam aniquilar a pobreza matando sua população nativa. Poderia Coringa ser o registro do Brasil de hoje? Também. Somos 13 milhões de desempregados, fazendo bicos nas ruas, segurando cartazes de lojas de departamentos prestes a falir, num cenário em que a indústria encolheu 15% nos últimos 5 anos. A falta de medicamentos por corte de verbas do governo é um dos elos dessas duas realidades. Protestos de rua numa iminente guerra civil dialogam muito com a nação que se revoltou e se dividiu não por causa dos 20 centavos. Mas Coringa não se pretende abraçar somente a causa terceiro-mundista. Chicuarotes, o novo filme dirigido pelo mexicano Gael Garcia Bernal, que ficou em cartaz no Brasil somente por uma semana, mostra em sua cena inicial uma dupla de palhaços de rua que entra num ônibus e faz algumas piadas antes de anunciar o assalto. A Gotham City de Todd Philips (quem diria, o mesmo que nos divertiu com a trilogia de um grupo de amigos que sofrem de amnésia pós-ressaca), obviamente, é soturna, suja, sorumbática. Poderia ser a síntese de uma Nova York pré-Tolerância Zero, como também a Cidade do México, Bogotá ou até mesmo a Rua Conselheiro Nébias. Existe um convívio forçado entre vencedores e fracassados, mas, do ponto de vista estrutural, as divisas estão muito claras. O diagrama do esqueleto de Gothan é quase tão matemático quanto as fictícias demarcações dogvillianas. Os espaços estão claramente planejados: em Batville, aqui é teatro de rico, ali é beco de pobre. O que ganha potência em Coringa (e aí a sensação é de que quem leva chutes no estômago é o espectador) é justamente quando essa lógica cartesiana se embaralha. O universo trágico não pertence só aos miseráveis. E a vida, que sempre prega suas peripécias divinas ao protagonista, pode ser encarada como uma comédia. Afinal, estamos no registro da ficção. Tudo é espetáculo. Tudo é poesia. Até mesmo a versão nordestina que Kléber Mendonça imprime a seu Mad Max do sertão. Até mesmo, e principalmente, os versos finais de Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa, quando se dá conta de que há pouca salvação para a Humanidade. Phoenix, na pele de Joker, em sua reversão tragicômica, vem sendo vil, literalmente vil, vil no sentido mesquinho e infame da vileza.