Cansei de reclamar com o gerente, usar o Fale Conosco do
site, enviar textos para a extinta seção de críticas do Guia da Folha. Cansei.
Só me resta então fazer campanha. NÃO VÁ AO CINEMARK. Agora, a “moda” é
unificar as bilheterias de compra de ingressos com a bomboniere. Isso só prova
que, como eu sempre falo, CINEMARK NÃO É CINEMA. É uma loja de doces em que se
passam filmes. A consequência disso? Ontem fiquei mais de 20 minutos agonizando
na fila. E a tendência é só piorar. Sou das antigas. Recuso-me terminantemente
a comprar por aplicativo, que também gera transtornos na leitura do código e
não impede o cliente de enfrentar fila, só que trocando uma por outra. Não
compro em sites, eles cobram uma taxa de conveniência pra não oferecer
conveniência nenhuma. Minha vida é cheia de imprevistos, eles também não fazem
a troca ou devolução do ingresso caso eu não consiga chegar à sessão comprada.
As filas nos terminais de autoatendimento são igualmente lerdas e gigantescas,
e raramente contam com um funcionário para auxiliar os clientes. Se você não se
sente afetado com meus argumentos, tudo bem. Continue indo ao Cinemark. Meu
diálogo não é com você. Mas se você é daqueles que também ficam indignados com
tamanho descaso da rede pela Sétima Arte, tamo junto. O lucro dos exibidores
para cada ingresso vendido não passa de 10%. Já o lucro das gororobas do snack
bar, como por exemplo a pipoca, ultrapassa 500%. Então, você já deve ter
percebido qual é o foco da empresa. NÃO VÁ AO CINEMARK. Se possível, opte pelos
cinemas de rua, que conduzem o ofício de oferecer cinema usando uma lógica
menos perversa. Opte pelos circuitos “de arte” que também colocam blockbusters
na programação (Arteplex, por exemplo). Com telas boas e poltronas
confortáveis, na maioria dos casos. Talvez o movimento de derrocada seja
inevitável e essa luta ganhe um efeito nulo. Mas é o máximo que eu posso fazer.
Se você chegou até aqui na leitura do texto, é porque em algum aspecto concorda
comigo.
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Coisas que me emputecem
Hoje tá um ótimo dia pra reclamar da vida:
1)
Está chovendo forte. Você espera a chuva passar.
Ela passa. Até você descer do elevador, se despedir de todo mundo, na hora em
que sai pra rua a chuva volta, mais forte ainda. Torrencial. Você se lembra...
de que esqueceu o guarda-chuva. Fica ensopado. Entra aonde precisava chegar. Um
minuto depois, a chuva para.
2)
Você faz uma pergunta pra alguém. De múltipla
escolha. Espera como resposta uma das alternativas apresentadas. Por exemplo: “Você
gosta de bife mal passado ou bem passado?”. E a pessoa responde: “Isso mesmo”.
3)
O motorista do Uber acha que você é o
psicanalista dele. Ele desabafa, conta toda a sua vida, os seus problemas. Você
só ouve. Como um bom psicanalista. Só que, no final, quem paga a consulta é
você.
4)
Pessoas que resolvem almoçar juntas. Todas elas,
da firma inteira. Forma-se um bloco de 14 indivíduos na calçada. Eles é que
determinam a velocidade média dos transeuntes. Não deixam ninguém ultrapassar.
Estão todos felizes, rindo muito. E bloqueando a passagem dos demais. Como se
fosse um bloco de micareta.
5)
Gente
que
escreve
assim
no WhatsApp
que
escreve
assim
no WhatsApp
6)
O valor da oferta anunciada na gôndola do
produto no supermercado nunca coincide com o valor registrado no caixa.
7)
Ainda no supermercado. A pessoa na sua frente da
fila repetiu de ano em Matemática. Puxa um carrinho abarrotado de mercadorias,
debaixo da placa onde se lê “máximo 10 volumes”.
8)
Você vai ao banco. Pega a senha. Número 322. Vê
no painel a última pessoa que foi atendida: 275. Sabe que vai demorar pa-ra-ca-ra-lho.
Dá tempo de ler todos os livros do Tolkien. Aquele vidro fosco que divide os
caixas e os clientes foi criado pra você não conseguir enxergar quantos
funcionários estão atendendo. Depois desse trajeto Rio-São Paulo de ônibus,
avista o número 321 no painel. Pega seus boletos e prepara-se psicologicamente
pra ser o próximo. Painel apita o número P014. Preferencial. A velhinha que
acabou de chegar, mesmo com seu andador, consegue te ultrapassar.
9)
Loja de roupas campo-minado. Você está do lado
de fora, olhando a vitrine. Assim que encosta na primeira lajota do piso
interno, explode um vendedor ao seu lado: “Bom dia em que posso ajudar tá
procurando algo específico aproveita nossa promoção dá uma olhada nos outros
modelos sem compromisso”.
10) A
mesma lógica. Só que ao contrário. Você entra na loja, espera ser atendido, e
nada. Procura você mesmo as roupas, consulta você mesmo os preços, revira você
mesmo as pilhas de camisetas, e ainda assim nada. Entra no provador, sai de lá,
usa seu braço de cabide, dirige-se ao caixa. Sozinho. Do começo ao fim, você é
o meme do John Travolta.
11) Situação
parecida. Desta vez, no restaurante. O garçom finge que não te vê. Você levanta
a mão e faz um breve aceno. Ele desvia o olhar. Levanta o braço um pouquinho
mais, tentando chamar outro garçom. Ele também finge que não te vê. Você estica
ainda mais o braço, tentando alcançar o lustre, pra ver se São Pedro consegue
te enxergar e providenciar uma atitude divina. Só que a coisa é muito
sincronizada lá dentro. Todos os garçons combinam entre si de te ignorar
solenemente. A não ser na hora de trazer a conta e cobrar os 10%.
12) Continuando
no restaurante. Por quilo. Você está se servindo. A pessoa atrás de você tem
pressa, muita pressa. Parece o Coelho Branco da Alice no País das Maravilhas. Toda
hora encosta a bandeja no seu cóccix. Tá bufando. Pega qualquer coisa e joga de
qualquer jeito no prato. Em compensação, a pessoa à sua frente tem toda a calma
do mundo. Faz todo um processo seletivo para cada folha de alface. Escolhe
minuciosamente cada ervilha como se fosse um gemologista. Despeja no prato os
grãos de feijão por unidade.
13) Escada
rolante. As pessoas à sua frente acham que o aviso “deixe a esquerda livre” é
mera panfletagem política.
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Começa com E
A história de hoje se passou há mais ou menos 10 anos, quando
trabalhei no departamento de Comunicação de uma distribuidora de médio porte de
filmes. Uma empresa familiar, cuja dona era folclórica no mercado
cinematográfico brasileiro. Fiquei pouco tempo ali. Mais ou menos 3 meses, o
equivalente ao período de experiência. Quando eu já tinha um bom tempo de casa,
pelo menos pra todo mundo dali saber quem eu era e o que eu fazia, a tal
proprietária me perguntou:
- Qual o seu nome, mocinho?
- Começa com E.
Ela, um pouquinho mais irritada, respondeu:
- Fala logo, mocinho!
Corria à boca pequena que de vez em quando ela costumava
maltratar alguns funcionários. Comigo nunca houve nada nesse sentido. Mas isso
não quer dizer que a gente tinha algum tipo de intimidade. Analisando hoje, eu
sinceramente não sei onde estava com a cabeça para achar que uma senhora de
quase 80 anos, presidente de um renomado selo de distribuição de filmes, ira
naquele momento querer brincar de jogo de adivinhação. É a mesma coisa que
beliscar o braço do Kim Jong-um e falar “3 marcas de cigarro”. É como falar pro
Bolsonaro “sebrãbisdoila” e, na hora em que ele perguntar “o quê?”, você aponta
o polegar pra baixo e faz um som com a língua “prrrrr”. Se bem que no caso do
Bolsonaro é até capaz de ele rir e gostar da brincadeira.
No fundo, eu queria achar que se tratava de um esquecimento
temporário. Não passava pela minha ingênua cabeça de que ela nem fazia ideia de
quem eu era. Que a minha importância para o sucesso da empresa era o
equivalente ao bebedouro. Que eu era facilmente confundido com um cartaz de
filme de terror.
Claro que esse fato ficou notório no nosso departamento.
Risadinha aqui, risadinha ali, cada vez que alguém se lembrava do episódio. Até
que o assunto morreu. Dias depois, falei para um comparsa da equipe:
- Já salvei na rede o texto do filme.
- Qual filme?
- Começa com E.
sexta-feira, 4 de outubro de 2019
Um dia de Playcenter
A história de hoje se passou no fim da década de 90. Mas,
antes de começar o relato, é bom trazer o contexto para quem ainda não era
nascido ou não conhece o lugar. O Playcenter foi o maior parque de diversões de
São Paulo. Deve ter surgido nos anos 70, bombou nos anos 80, sobreviveu nos 90,
começou a dar sinais de cansaço nos anos 2000 e fechou as portas coisa de uns 7
anos atrás. Era gigantesco. Proporcional à quantidade de frequentadores. Creio
que um Playcenter lotado equivalia à população de Belo Horizonte. E as filas
dos brinquedos eram muito, muito grandes. Intermináveis. Pra dar a sensação de
que nem eram tão imensas assim, a organização do parque inventou de fixar
aquelas grades que formavam corredores improvisados. E aí as filas rocambolescas
faziam aquele caracol. Vistas de cima, pareciam o intestino delgado. E, se
fossem esticadas em linha reta, cada fila começaria no bairro do Limão e
terminaria na Rodoviária Tietê. Pra você aproveitar bastante, tinha que ir lá
numas datas meio atípicas, como véspera de Natal, dia de jogo do Brasil na Copa
ou dia de greve dos caminhoneiros, se houvesse. Caso contrário, em dias
considerados normais, você passava a tarde inteira no parque pra conseguir
entrar em no máximo três atrações. Isso tem uma explicação. A maioria dos
frequentadores era galera. Não aqueles grupos de 4 pessoas que resolvem ocupar
uma mesa do Outback. Era grupo meeesmo. Parecia aqueles ônibus que desembocam
na 25 de Março durante o fim de semana. Ou as caravanas do Sílvio Santos.
Quando uma escola resolvia fazer excursão ao Playcenter, era a escola INTEIRA. Se
existisse smartphone na época, o pau de selfie teria que ser do tamanho de uma
canoa pra fazer caber a turma toda na foto. Se por acaso houvesse alguma briga
de gangue, a professora tinha que fazer chamada antes do embate pra conferir se
todos os lutadores estavam presentes. Na prática, essa situação era meio
bizarra. Já imaginou como seria a divulgação do ultimate fighting entre o
Colégio Dom Bosco e a Escola de Primeiro Grau Marista da Glória?
O Playcenter era a opção mais em conta pra quem não tinha
grana para ir à Disney. Mesmo assim, o ingresso não era tão barato. Por isso,
vira e mexe faziam promoções, sorteios, etc. Era relativamente fácil encontrar
o Passaporte da Alegria nas tampinhas das garrafas de Coca-Cola, nos encartes
de jornal... se bobear, tinha Passaporte até na caixa de sucrilhos.
Na época, eu tinha uma amizade muito forte com uma moça que
trabalhou comigo. Rolava um certo clima no ar. Nunca aconteceu nada, nunca
ficamos, nem rolaram beijinhos, nem chegamos a nos declarar, nada. Mas existia
na atmosfera aquela coisa que me alimentava as esperanças de que, quem sabe um
dia, essa situação poderia evoluir.
Pois foi numa dessas promoções, talvez no jornal, que ganhei
o Passaporte da Alegria e chamei essa minha amiga pra me acompanhar. Por três
razões: primeiro, porque eu queria impressioná-la. Quem sabe com esse convite
eu poderia acelerar o processo daquilo que minha cabeça imaginou que um dia
fosse acontecer. Segundo, porque eu não tinha tantos amigos assim. Por mais que
eu seja um cara “sociável”, com milhares de amigos, fãs e seguidores nas redes
sociais, a lista de pessoas na agenda é bem pequena. Sim, na época eu usava
agendinha telefônica, aquela em papel com suas respectivas divisórias por ordem
das letras do alfabeto. E terceiro porque eu, como um bom judeu, não poderia desperdiçar
a oportunidade e menosprezar a informação constante no verso da filipeta:
válido para 2 pessoas.
Marcamos no metrô Barra Funda. Ela chegou pontualmente e
estava bem entusiasmada. A chance de cumprir o critério 1 do parágrafo acima
era quase certa. Aquela com certeza iria ser a tarde mais divertida da minha
vida.
Desculpe interromper novamente a linha de raciocínio, mas
preciso acrescentar outra informação relevante. Eu ia bastante ao Playcenter.
Quando era pequeno. Acompanhado pelos meus pais. Adorava esse programa. Durante
minha infância, saía ileso da casa mal-assombrada. Jamais sofri qualquer tipo
de acidente no carrinho de bate-bate. Era o rei da roda-gigante. Só que os anos
se passaram. E o parque passou a adotar brinquedos mais radicais.
Chegamos ao parque e nossa primeira escolha foi um brinquedo
chamado Samba. Na verdade, de samba ele não tinha nada. A não ser o fato de eu
odiar os dois, tanto a música quanto aquela máquina. Parecia um pandeiro
desengonçado, e você tinha que se equilibrar segurando em alguns ferros
laterais. Quem não conseguisse se segurar, caía. Não vi graça nenhumas, mas
precisava cumprir meu objetivo. Saí de lá com um sorriso de fazer inveja ao
Coringa.
Nossa segunda escolha foi um tal de Viking. Pra quem não
conhece, é um barco que fica subindo e descendo. A cada movimento, ele ganha
altura e velocidade. No clímax da brincadeira parece que você atingiu o topo do
Edifício Itália. Aí ele começa a descer progressivamente, até parar. Entendi
porque o brinquedo ganhou esse nome. Ali dentro o tempo demora tanto pra passar
que parece que eu vivi uns 5 séculos em 5 minutos. Voltei pra Idade Média. E
uma coisa mais recente que adotaram no Playcenter foi botar DJ. Assim que
acabou a brincadeira, o DJ pegou o microfone e perguntou “Vocês querem mais?”.
Achei que a maioria fosse responder: “Não, de boa”. Só que, ao invés disso,
ouvi um coro uniforme gritar “SIIIIIIM”. Igual àquela cabine de um quadro de
perguntas do programa Sílvio Santos. E dá-lhe mais eternidade subindo e
descendo pelas nuvens de São Paulo.
Quando saí da máquina, meu conceito de chão era uma grandeza
muito relativa. Minha labirintite veio parar no joelho. Até tentei manter a
compostura e continuar impressionando minha amiga, mas não teve jeito. No
primeiro amontado de jardim, veio a incontrolável vontade de regurgitar.
Coloquei pra fora o almoço da semana anterior. Imagine você, meu caro. Usei o
Passaporte da ALEGRIA para usufruir de dois brinquedos e passar o resto da
tarde deitado num banco e tomando sal de frutas. Minha amiga, em seu trenzinho a
10 km/h recomendado para pessoas de até 5 anos, passou várias vezes por mim. Os
periódicos tchauzinhos que me foram acenados a cada volta foram a resposta mais
definitiva da tarde: jamais conseguiria impressionar minha amiga naquele estado
crítico.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Bacuringa
Até poucos dias atrás, as principais discussões
cinematográficas giravam em torno de Bacurau e de Era Uma Vez... em Hollywood.
Agora, o anti-Marvel Coringa chega não com a pretensão de encerrar o assunto
longe de se esgotar, mas para abrir um próximo parágrafo diante da questão.
Se esse paralelismo faz parte ou não do inconsciente
coletivo, ou de uma histeria hegemônica social, ou se trata apenas de uma
coincidência, difícil concluir. Nessa tríade, o que chama a atenção é não só o
retrato de uma sociedade doente, mas a urgência de se discuti-la. Vale lembrar
redundantemente que, nos três casos, o produto é ficcional, em seus diferentes
pesos e medidas autorais. No primeiro caso, mergulhamos na psicopatia de um
núcleo invasor, que vem de fora, e usa a pobreza nordestina como palco de um
sádico paintball reality show. É a
própria comunidade invadida que aplica os contragolpes, com os mesmos requintes
de crueldade, durante a catártica vendeta do epílogo. Com essa intensidade
igualmente raivosa, bem aos moldes da milenar Lei de Talião, podemos entender
que o combate à psicopatia só é possível usando a própria psicopatia. No
tarantinesco exemplo, a excessiva caricaturização dos psicopatas abranda um
pouco o episódio “baseado em fatos reais”. O clima de tensão do devir é muito
maior do que a concretização da violência atrapalhada do derradeiro ato
propriamente dito. Aqui, não é a sociedade atingida como um todo que faz o
revide, mas apenas uma dupla da indústria cinematográfica decadente e colapsada
diante de uma nova era. O efeito é, portanto, mais farsesco e menos catártico.
A representação icônica por camadas metalinguísticas (um ator e um dublê de
ator) dilui a insanidade dos Estados Unidos dos anos 70, ou pelo menos a coloca
em outro registro. Já em Coringa, esse rescaldo patológico se apresenta de modo
mais confuso. Não se trata exatamente de um grupo que contra-ataca as
arbitrariedades doentias de outro grupo, como no primeiro caso; nem de um duo
que evita um mal maior a ser causado por um bando de ripongas alucinados pelo
satanismo, como no segundo. Aqui, é um único indivíduo que ao mesmo tempo
rebate a doideira social e injeta nela outras nuances patológicas dessa mesma
loucura. É o eu-sozinho contra o mundo.
Claro, desnecessário dizer que Coringa é um caldeirão de
paradoxos. Comédia e tragédia se misturam como se fossem as facetas de outro
vilão, o Duas Caras. O bordão “rir para não chorar” poderia se encaixar
perfeitamente na sinopse. A chapliniana canção “Smile” sendo executada nas
cenas menos engraçadas é um resquício dessa contida ironia. A música é doce em
sua melopeia rítmica, e parece bailar junto com o Poema em Linha Reta, de
Fernando Pessoa, em que as digressões do poeta lusitano ecoam na cabeça do
personagem interpretado pelo irretocável Joaquin Phoenix. No texto em primeira
pessoa, encontra-se um fracassado que vive num mundo de vencedores. E Phoenix,
em sua ingenuidade do prefácio, parece assimilar esse discurso de uma bondade utópica.
Quanto mais ele acredita no ser humano, mais chutes no estômago ele leva. Nesse
acúmulo de socos e pontapés é que vem a pergunta: de que forma e em qual
intensidade vai surgir a salvadora reversão cômica?
Assim se constrói o universo DC Tragicomics. Os filmes da
Marvel, basicamente, são um recheio de efeitos visuais e pirotécnicos
reluzentes sobre um palco de guerra. Com pitadas de humor. É o show de stand-up
(eu diria talvez Stan-up) num ringue espacial de MMA. A DC procura roer outras
camadas. Coloca a risada onde não há graça nenhuma, o que deixa parte de seu
legado ainda mais dialético. O pingo de sangue sobre o button smile, na cena de
Watchmen em que o primeiro herói morre, traduz um pouco esse sarcasmo
contundente. Não há lugar para stand-up em Coringa. Não há plateia disposta a
rir. O punchline, fechamento de uma anedota, é muito mais punch. Uma porrada,
um soco no fígado.
Do começo ao fim, Coringa tenta provar que a frase
mercadológica de lançamento “coloque um sorriso nesse rosto” é algo
inatingível. Mas aqui eu me permito, acima de tudo, estabelecer uma relação de
tempo e espaço ao filme. Tudo indica se passar em algum lugar dos anos 80. Tem
uma secretária eletrônica. E, não por acaso, tem na fachada de um dos cinemas
da cidade o letreiro do filme Um Tiro na Noite, a reinterpretação que Brian de
Palma faz à obra-prima de Antonioni. Tem Robert de Niro como apresentador de um
talk show, fazendo uma alusão ao Rei da Comédia, no qual ele também trabalha. Mas
as referências não são apenas herméticas, piadas internas, como se a equipe
estivesse lançando um olhar para o próprio umbigo. Coringa se expande ao
mostrar uma metrópole violenta e surrupiada quase como um registro documental
da maioria das cidades que se desenvolveram rapidamente. Poderia Bacurau ser o
retrato do Brasil de Bolsonaro? Sim, perfeitamente. Uma colônia árida atacada
por milicianos gringos que tentam aniquilar a pobreza matando sua população
nativa. Poderia Coringa ser o registro do Brasil de hoje? Também. Somos 13 milhões
de desempregados, fazendo bicos nas ruas, segurando cartazes de lojas de
departamentos prestes a falir, num cenário em que a indústria encolheu 15% nos
últimos 5 anos. A falta de medicamentos por corte de verbas do governo é um dos
elos dessas duas realidades. Protestos de rua numa iminente guerra civil
dialogam muito com a nação que se revoltou e se dividiu não por causa dos 20
centavos. Mas Coringa não se pretende abraçar somente a causa
terceiro-mundista. Chicuarotes, o novo filme dirigido pelo mexicano Gael Garcia
Bernal, que ficou em cartaz no Brasil somente por uma semana, mostra em sua
cena inicial uma dupla de palhaços de rua que entra num ônibus e faz algumas
piadas antes de anunciar o assalto. A Gotham City de Todd Philips (quem diria,
o mesmo que nos divertiu com a trilogia de um grupo de amigos que sofrem de
amnésia pós-ressaca), obviamente, é soturna, suja, sorumbática. Poderia ser a
síntese de uma Nova York pré-Tolerância Zero, como também a Cidade do México, Bogotá
ou até mesmo a Rua Conselheiro Nébias. Existe um convívio forçado entre
vencedores e fracassados, mas, do ponto de vista estrutural, as divisas estão
muito claras. O diagrama do esqueleto de Gothan é quase tão matemático quanto
as fictícias demarcações dogvillianas. Os espaços estão claramente planejados: em
Batville, aqui é teatro de rico, ali é beco de pobre. O que ganha potência em
Coringa (e aí a sensação é de que quem leva chutes no estômago é o espectador)
é justamente quando essa lógica cartesiana se embaralha. O universo trágico não
pertence só aos miseráveis. E a vida, que sempre prega suas peripécias divinas
ao protagonista, pode ser encarada como uma comédia. Afinal, estamos no
registro da ficção. Tudo é espetáculo. Tudo é poesia. Até mesmo a versão
nordestina que Kléber Mendonça imprime a seu Mad Max do sertão. Até mesmo, e
principalmente, os versos finais de Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa, quando
se dá conta de que há pouca salvação para a Humanidade. Phoenix, na pele de
Joker, em sua reversão tragicômica, vem sendo vil, literalmente vil, vil no
sentido mesquinho e infame da vileza.
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