domingo, 24 de outubro de 2010

A culpa é da Nicole

Se você alimenta uma certa admiração ou interesse pelos primeiros filmes de Todd Solondz, Neil Labute, Greg Araki, Darren Aronofsky, Alexander Payne, Paul Thomas Anderson e toda a turminha do fundão do cinema norte-americano, certamente irá apreciar esse Sentimento de Culpa e toda a mesquinhez humana que ele incita. A cena inicial, closes de seios de idosas sendo submetidas a mamografias, com um fundo musical alegrinho que faz uma alegoria ao sul dos Estados Unidos, já denuncia boa parte das intenções da diretora Nicole Holofcener. Não existe, nem com muito boa vontade, um parecer que possa justificar a gratuidade desse registro, pois o que está em questão no filme não é o envelhecimento ou algum tema congênere, e a personagem que acompanha esses exames tem um papel secundário. Esse fetichismo sádico permeia o restante do roteiro e traz muitas semelhanças com a ironia física e leviana evocada pelos ícones da desgraça alheia citados no introito. É certo que a potência estadunidense hoje nada mais é do que um acúmulo de carboidratos e de desajustes sociais e familiares, e discutir a crise dessas relações pós-Obama seria algo bem-vindo. Mas o olhar cínico e superficial de Nicole, maquiado de cinema provocativo, não dá margem a essa leitura. Temos uma adolescente com complexo de peso e de espinhas, um casal acomodado com a rotina, um pai ausente, uma relação extraconjugal envolvendo uma alcoólatra frustrada, uma relação de ódio e de submissão envolvendo uma avó esclerosada, e por aí vai. Ninguém se salva. Apple city está contaminada por maçãs podres. Você acha que estou exagerando? Então tente encontrar uma justificativa plausível para a cena de uma equipe de jovens com Síndrome de Down treinando basquete. Sentimento de Culpa é a condensação frívola dos novos seriados da Warner, que tratam o ser humano como um aperitivo descartável para o talk show do horário nobre da televisão. E se você imagina que o título sugere uma redenção autopiedosa dos personagens, pode incorrer em erro. A única protagonista que se sente culpada pelo status quo da miséria social instaurada é Kate (Catherine Keener, a musa-coringa do cinema independente), que dá generosas esmolas a mendigos porque não consegue conviver harmoniosamente com a parasitose de sua profissão, que é a de comprar móveis e cacarecos das casas das pessoas que acabaram de morrer para revender como objetos de arte. Nesse contexto, tem-se a impressão de que a culpa é mais da Nicole do que de Kate (vocês se lembram da cena final de As Confissões de Schmidt?). No filme, os personagens estão acomodados no conforto de seus conflitos. Não há espaço para suas angústias. Estender a mão ao economicamente excluído, além de mostrar um falso altruísmo que o filme não questiona, talvez seja uma maneira terapêutica da diretora transferir seus remorsos à personagem. Está claro que o cinema low profile de hoje não precisa de donativos. Não é a esmola que vai curar a maneira sórdida e astigmática de Nicole enxergar seu mundo e as fraquezas de suas pessoas.

1 lentilha