domingo, 5 de julho de 2020

Um brinde ao foda-se


Em Publicidade aprendemos que, quando uma mensagem é repetida várias vezes, procura-se ampliar a cobertura e reforçar seu conceito. Entretanto, um dos efeitos negativos é a perda de sua eficácia. A sensação de ver tudo igual, sem alguma novidade ou qualquer atrativo que nos tenha passado despercebido da primeira vez, nos faz virar a página, mudar de canal, apagar o e-mail. O discurso perde sua força e entra na nossa cabeça como um fundo sonoro com o qual já passamos a nos acostumar.

Durante a pandemia, a sociedade se sensibilizou com as falas dos governos locais, da OMS e até do então Ministro da Saúde. A importância do isolamento, o #FiqueEmCasa, lavar as mãos sempre e, mais recentemente, o uso obrigatório de máscaras. Talvez nos primeiros minutos de confinamento alguns cidadãos não estivessem levando a coisa tão a sério. Mas, em seguida, houve uma certa adesão geral e compreensão dos fatos. Tanto é que os índices de isolamento eram relativamente bons.
Só que os pronunciamentos das autoridades foram se reprisando. E, consequentemente, perdendo sua força e credibilidade. Quando se fala que esse é um momento muito importante para adotarmos as medidas preventivas de segurança e seguirmos corretamente as orientações da ciência e da saúde, isso quer dizer que no momento imediatamente anterior não era? Ao ouvirmos diversas vezes, em modo looping, que o pico da pandemia ainda não foi atingido e que a quarentena precisará ser esticada, passa-se a sensação de que alguma coisa está errada. Na cabeça do homem comum, nada diplomado em Medicina ou Matemática, conclui-se que ou deixaram de acertar nos cálculos ou as medidas iniciais não foram corretamente aplicadas. Isso sem falar no atual desgoverno federal, que desobedece a todas as regras sanitárias, provoca os governantes menores e veta artigos de lei, usando critérios meramente pessoais, no sentido de tornar o processo de retomada ainda mais flexível. E mais perigoso.

O fato é que a população meio que ficou de saco cheio. Não só de permanecer trancada por mais de 100 dias, como também de obedecer a comandos baseados no repeteco. No Brasil e no mundo. De Nova York a Nova Iguaçu.

As cenas que vimos nos últimos dias, em que notívagos invadiram e lotaram bares e mesas na calçada, aglomeradíssimos e sem o uso de máscara, são ao mesmo tempo trágicas e patéticas. Esse comportamento burlesco de um povo até então preso em regime domiciliar pode suscitar algumas interpretações. O mais ululante foi a afronta. O tapa na cara aos órgãos fiscalizadores. A onipotência da fala do nosso presidente, agora convertida nas camadas imediatamente abaixo na pirâmide social. Enquanto a classe operária dos entregadores de pizza trabalhava devidamente paramentada com os equipamentos de proteção individual, os emergentes criavam suas leis próprias durante sua efêmera diversão. Tudo junto e misturado. Os garçons e motoboys, mais vulneráveis ao vírus devido à sua condição social, ocupando o mesmo espaço dos novos-ricos que acham que o corona já passou. Uma falsa sensação de imunidade com impunidade. Aquela muvuca poderia ser também entendida como um basta. Um alegórico brinde à apressada carta de alforria, sem nada a se comemorar. Ou talvez, em última análise, a pulsão de morte que também habita no ser humano. Se é para viver o novo normal como um ermitão, um indivíduo incel, se é para abdicar de sua sexualidade e sua forma gregária de convívio, melhor nem viver. Vamos à la playa, morra quem morrer. O neodarwinismo necropolítico está aí para poupar quem tiver a sorte de ser poupado. Fez-se de conta que aquela mesa de bar foi a última ceia dessa quarentena que nunca termina, muito menos com final feliz. Saúde a todos os incompetentes, que não souberam conduzir sua manada. Agora só resta pedir a porção de picanha no réchaud e aguardar a chegada da vacina de Oxford. Enquanto isso, o democrático vírus poderia estar ali circulando livremente entre todos os cuspes impregnados nos copos de cerveja. Seja no pub de Londres, seja na calçada do Leblon. A imagem ridícula do fracasso da Humanidade.


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Insônia


Essa noite foi uma noite mal dormida como outra qualquer. Durante a pandemia, difícil ter uma noite tranquila de sono. Só que essa noite não foi igual a todas as outras noites. A insônia me atacou. E durante esses minutos que demoraram uma eternidade pra passar, uma avalanche de pensamentos começou a transbordar em minha cabeça. Fatos que se sobrepunham. Cenas que se atropelavam. Imagens aglutinadas de um ontem com um passado bem remoto. Minha mente saiu dos gafanhotos e foi parar lá no Orkut. Lembrei que a gente classificava os amigos por estrelas. Um deles me deu a nota máxima, até começarmos a trabalhar juntos. E as diferenças começaram a aparecer de modo grosseiro e abrupto. Uma amizade que começou com “sou seu fã” e terminou com “desembucha logo que eu tenho mais o que fazer”.
Lembrei de mais amigos, outros tantos, que eram muito simpáticos e sorridentes quando tínhamos um projeto em comum pra tocar, ou quando precisavam de mim. Hoje me botaram no modo soneca. Desta vez, no Facebook.  
Lembrei de lugares, vários lugares. Bares e restaurantes que tinham tudo pra ser incríveis. Mas não eram. A foto e a descrição do cardápio eram muito mais bonitas e apetitosas do que o prato que me foi servido. O atendimento deixou muito a desejar. Embora eles tivessem adotado a prática chique de cobrar 13% ao invés de 10% como taxa de serviço.
Lembrei de algumas namoradas também. Poucas. Mas com uma sequência recheada de fatos, brigas e desilusões. Muitas. Teve aquela que no começo tudo parecia divino e maravilhoso. E no final a gente já não se suportava mais. Um início marcado por selfies de rosto coladinho. E um epílogo com fotos tiradas a quase um quilômetro de distância. Um início de muito diálogo e um término de muito silêncio. Uma relação que começou com uma admiração profunda pelos meus textos, até culminar com um desprezo total por eles.
Vieram na minha conturbada cabeça outras mulheres. Aquelas que se atrasavam nos nossos encontros, só pra gente ter menos tempo de convívio. Aquelas que me pediram dinheiro. Aquelas que não me pediram nada, mas também não tinham nada a me oferecer. Era pra ser uma noite fantástica. Era pra eu me recordar das trepadas homéricas. Só que a imagem que ficou retida foi eu sendo abandonado num quarto de motel, com a frase “você precisa se tratar”.
A nossa cuca é meio traiçoeira. Parece que faz uma triagem dos flashbacks. Memória seletiva com critérios pra lá de suspeitos. Escolhe o que há de pior. É um filtro ao contrário. Você, tanto quanto eu, sabe como a gente gasta e investe pra alimentar nossas vidas com fragmentos de felicidade. Tempo, dinheiro, esforço, pensamentos positivos, altas expectativas, perfumes e roteiros da Vejinha. E o que sobra disso tudo? A vaga lembrança de um desencontro no metrô causado pela Estação Paulista na Consolação e Estação Consolação na Paulista.
Noite ingrata. Acelerou meu coração com frustrações. Trouxe à tona o desgaste e o desgosto. Não era esse o residual que eu queria. Era pra eu contar carneirinhos, não os pés-na-bunda. Todos dizem que a vida é cheia de prós e contras. Fazendo esse cálculo, o resultado do balanço final deveria ser o equilíbrio de um empate. Mas não. Ficou a sensação de uma derrota de 7 a 1.
E nada do sono aparecer.