sábado, 29 de abril de 2023

O Pastor e o Guerrilheiro

Em seu novo filme, o diretor José Eduardo Belmonte traz de forma mais direta o tema da ditadura militar. Sem manter uma ordem cronológica, vai até a década de 1970, quando um guerrilheiro comunista se encontra na mesma cela que um cristão evangélico, preso por engano. Em meio a torturas e conflitos ideológicos, eles se ajudam e marcam um encontro para o réveillon de 2000. Nos últimos dias do milênio, Juliana, ativista estudantil e filha ilegítima de um coronel que acabara de se suicidar, é surpreendida com uma herança deixada para ela. Por meio de um livro encontrado na casa do coronel, ela descobre que seu pai foi o torturador dos dois presos.

Apesar da contundência do tema, os anos de chumbo servem como pano de fundo para permear esses caminhos dos protagonistas. O filme, claro, tem substância. Mostra a união de dois prisioneiros, marcada justamente por suas diferenças políticas e religiosas. Traz o sentimento de culpa de quem fez parte do regime militar. Mesmo assim, O Pastor e o Guerrilheiro não carrega em si um traço meramente político. A condução da trama, com histórias paralelas, encontros e desencontros, faz a obra se aproximar de um romance. Belmonte mantém sua postura crítica em relação ao país, mas conclui um filme menos orgânico em comparação com seus primeiros longas. 


Morte a Pinochet

Com o sucesso do oscarizável Argentina, 1985, chega ao streaming a versão chilena sobre o período da ditadura militar. Em setembro de 1986, um grupo de jovens criou um plano para matar o ditador Augusto Pinochet. O professor de educação física e integrante da luta armada Ramiro, a psicóloga Tamara, que abandonou a família para viver na clandestinidade, tornando-se comandante da Frente Patriótica, e Sasha, nascida na favela de Santiago, marcam o ataque armado para uma tarde de domingo. 

Baseado na história real de um ataque fracassado por um braço armado do Partido Comunista Chileno, o filme acompanha o clima tenso de todo o planejamento da ação. Diferentemente do filme argentino, que insere alguns diálogos cômicos para dar um ritmo mais leve, aqui temos a seriedade como norte do começo ao fim. O diretor Juan Ignacio Sabatini não dá trégua, trazendo uma sensação quase de tempo real. Embora trate de um assunto importante e pouco explorado, o filme exagera no tom sisudo. Opta pela secura e objetividade, o que é um bem para a arte. Mas corre o risco de deixar seu trabalho um pouco cansativo.


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Desaprendendo

A partir da próxima segunda-feira a gente comemora a Semana do Índio. Mas não podemos mais chamar índio de índio. Índio é quem nasce na Índia. Devemos trocar por indígena. Ou povos originários.

Também não podemos mais falar sobre morador de rua. Rua não é moradia. O correto é, em 2023, pessoa em situação de rua.

Já nem sei mais como devo me referir aos indivíduos de raça negra. Antigamente, chamá-los de preto era ofensivo, quase um palavrão. Hoje me parece que é um termo mais aceito. Assim como, creio eu, não deve pegar mal citar africanos ou afrodescendentes. O problema é quando queremos nos referir ao povo miscigenado, ou seja, a maioria da população brasileira. Antes a gente recorria a eufemismos, vocábulos mais brandos. "Moreninho" hoje, nem pensar. Mulato, embora aceito pelo vernáculo nesse sentido, vem sendo proibido pois faz uma analogia aos negros escravos que conduziam as mulas dos patrões. Ou traz a semelhança dessa palavra como um cruzamento de espécie animal. Sei lá. E não dá pra chamar um mestiço de mula. Nem de vira-lata. Se não me engano, pardo parece ser um termo aceito e não ofensivo. Isso hoje. Amanhã é capaz da Associação Internacional dos Gastronomistas vetar seu uso por fazer lembrar o molho pardo, rebaixando o indivíduo de tom azeviche a um mero ornato ao paladar.

Também não podemos mais usar as simbologias da nossa língua que evocam outros campos semânticos. Mesmo que a cor negra possa servir de metáfora para a noite, as trevas, a escuridão. "A situação está preta", por exemplo. Esquece. Proibidíssimo. O lado negro da força foi substituído pelo lado obscuro da força quando a Princesa Léia ainda era viva.

Pouco tempo atrás, uma integrante de uma comunidade de redes sociais trouxe um texto falando sobre os perigos de se aplicar, hoje em dia, o uso da locução criado-mudo. Isso trazia os tempos da escravidão, em que os negros serviçais trabalhavam nas casas dos senhores de engenho desde que ficassem absolutamente calados. Caso contrário, seriam severamente castigados e forçados a voltar a trabalhar na lavoura. Era mais ou menos isso. Esse texto sugere que troquemos por mesa de cabeceira ou algo que o valha. Até aí, tudo bem. Mas estamos no inóspito ambiente das mídias sociais, lembra? Nossa amiga foi rechaçada, avacalhada. (Avacalhada pode? Não faz lembrar o ruminante bovino leiteiro?). Comentaram que isso é tudo mimimi. Ou mumumu, sei lá. Os mais exaltados trouxeram verbetes ainda piores. A tal ponto de deixar a Dercy Gonçalves ruborizada. Claro que nossa amiga, que apenas quis repassar uma linha de pensamento sem tomar partido disso, se sentiu ofendida e preferiu sair da insolente comunidade.

Também não sei como me posicionar diante de um homossexual. Bicha antigamente era quase como "bom dia", de tão leve. Hoje não é mais. Veado então, é crime inafiançável. Só os veados podem chamar veado de veado. Gay me parece um termo isentão. Mas a Língua Portuguesa é muito rica. Se ficarmos apenas em dois ou três palavras é como se estivéssemos jogando dinheiro fora. Eu queria muito continuar usando fanchono, boiola, baitola, fresco, enrustido, sodomita, pederasta, maricas. Definitivamente, não posso. Além de darem um tom pejorativo ao discurso, generalizam demais essa orientação sexual. Com tantas variantes e subvariantes, que quase ocupam o teclado inteiro, precisamos ser mais específicos ao nos dirigirmos a uma pessoa que, por exemplo, supostamente, hipoteticamente, nasceu homem, se veste de mulher, está na fila de cirurgia do SUS, mas odeia fazer sexo. E orientação sexual também me deixa um pouco confuso. Um homossexual não é "orientado" a ser gay. Isso é meio coisa de coach. Também não é uma opção sexual, pelo contrário. Ninguém "opta" por seguir uma determinada linha sexual, como se isso fosse um partido político. Ou clica na opção "correta" dentre várias alternativas possíveis, como se fosse um exame de vestibular. A sexualidade de cada um está diretamente ligada aos impulsos, aos desejos. Taí... desejo sexual. Acho que doravante vou começar a usar essa terminologia.

Puta. Outra palavra a ser banida do meu repertório vocabular. É um dos termos que mais tem sinônimos no dicionário Aurélio, junto com cachaça. E praticamente todos foram vetados, a não ser que você queira ganhar uma legião de haters. Difícil imaginar, na nossa linguagem binária do futuro quase presente, como devemos evocar as prostitutas. Mulher de vida fácil, com certeza não. Não deve ser nada fácil ficar trepando por vários minutos debaixo de um gordo peludo, suado e fedido.

Por falar nisso, gordo é outra palavra que atravessou o sinal amarelo. Se por acaso alguém fizer uma leitura apressada deste meu opúsculo, coisa que mais acontece nas eras do read fast, die young, é provável que eu seja denunciado por gordofobia. Obeso talvez seja o substituto mais testado e aprovado pela Liga das Senhoras Católicas. Pelas comissões, tribunais e juízes do Facebook. Mas então, o que fazer com opulento? Anafado? Adiposo? Rotundo? Chorudo? Gorducho, leitoado, balofo? Joga-se tudo no lixo, bem como embalagem de bacon em tiras?

No começo do ano, tive sérias dificuldades no diálogo com uma atendente de banco. Recebi uma carta (sim, carta impressa, coisa que também deve cair em desuso, junto com quase todos os nossos alfarrábios linguísticos) sobre meu plano de previdência privada. A boa notícia: eu já posso começar a receber os dividendos dessa longeva contribuição. A má notícia: isso denota o quão estou velho, desgastado, caquético, senil, aposentado, tão inútil pra sociedade quanto os verbetes supracitados. Deduzi que o que deveria fazer é resgatar os valores para ter direito ao benefício. Só depois de muita conversa truncada entendi que resgate é uma coisa, migração é outra. O correto seria transformar o plano em renda. Daí fiquei me lembrando da época em que trabalhava numa agência de Propaganda com foco em criação de programas de fidelização. O que a gente mais falava era resgate de pontos. Coisa que todo mundo entende. Desde um sócio do programa Smiles até o juntador de Stix do Pão de Açúcar. Até que num belo e formoso dia um dos clientes entendeu que a gente devia mudar tudo. Resgate é uma palavra que remete a socorro, emergência, SOS, gente ferida, gente morrendo.

É deveras complicado pra mim cancelar lexemas para não ser cancelado. Eles sempre foram meus melhores amigos. Não consigo escrever por subterfúgios. Por abreviações consonantais. Por emojis. Não sei mais como me dirigir às pessoas, já que entramos na era do index palabrorum proibitorum. Perdemos completamente nossa identidade como indivíduo e como sociedade. Já que esse compêndio foi condenado e julgado à prisão perpétua, rogo para que ao menos recebam um funeral digno antes de agonizarem no calabouço do ostracismo e do desprezo.