terça-feira, 23 de agosto de 2022

O cu do Imperador

Pela primeira vez na nossa história o povo brasileiro poderá ver o ânus de Dom Pedro I. Trata-se de uma homenagem ao Imperador pelos 200 anos de independência da república tupiniquim. A exibição em público dessa partícula final do intestino encerrará os rituais comemorativos e, para isso, foi totalmente embalsamada em formol e guardada num recipiente à prova de todo e qualquer tipo de contaminação.

Embora o pedaço proctal esteja blindado, contando com uma equipe de segurança 24 horas por dia, pouco se sabe ao certo o motivo pelo qual será ostentado à população. Por que não os olhos de Dom Pedro? O fígado? A grande mídia, muito mais preocupada em preparar debates presidenciais, pouco noticiou o assunto. O porta-voz do Governo, mais uma vez, não se pronunciou. O que sobrou então foram apenas hipóteses e conjecturas de estudiosos e formadores de opinião.

Leviano Hang Loose, proprietário de uma importante rede do varejo, apoiador confesso do atual Presidente, declarou em seus grupos de WhatsApp que a analogia é evidente e cristalina. Estamos, afinal de contas, celebrando a independência do país verde-amarelo. E, como todos sabem, o ânus é um órgão independente e autônomo. Adepto ao neoliberalismo, trabalha a hora que quer. Faz jornada extra e não reivindica por mais direitos. A vontade de ir ao banheiro, reparem, nada tem a ver com os avisos dos neurônios. Não existe um condicionamento físico dos pulmões para tal ato. Alongamentos musculares antes da descarga fecal podem, literalmente, induzir que tudo vai dar merda.

Já outras facções menos alinhadas ao regime tendem a discordar. Jacques Gordini, cientista político que se autoexilou do país, entende se tratar de uma atitude homofóbica e carregada de machismo estrutural. De acordo com o ex-BBB, isso representa uma apologia velada e preconceituosa à discriminação de gênero, já que os gays, homossexuais e transexuais gostam de dar o cu. Pelo menos a maioria deles.

Essa percepção, contudo, não é unânime. O analista político Celso Arquibancada acha que existe uma correlação com o atual momento de Bolsonaro, que está com o cu na mão caso perca as eleições. Por outro lado seu companheiro de mesa, Dulcídio Orquidi, entende que quem está com o cu na mão é justamente o Lula, que vem perdendo pontos nas pesquisas eleitorais e vê a diferença de intenções de votos reduzir a cada novo levantamento.

Nem todos, contudo, enxergam o viés político nesse ato simbólico. Perguntada sobre o tema, a estilista da periferia e influenciadora digital Ludmilla von Thiesse retrucou: "O que tem a ver o cu com as calças?".

O fato é que, no próximo dia 7 de setembro, o Brasil inteiro vai assistir ao escatológico desfile do esfíncter real - e retal. Como se fosse um exame de colonoscopia ao vivo. Qual o significado desse mumificado produtor de bosta? Fica aqui a pergunta. Nosso país está suficientemente chafurdado no lodaçal de merda, com uma classe trabalhadora sem trabalho e sem comida. E uma classe política sem classe e sem caráter. Mas que não se envergonha de mostrar, pro mundo inteiro, o cu do nosso imperador.


sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Luta pela Liberdade

O diretor Zhang Yimou se consagrou por fazer filmes de artes marciais e dinastias imperiais. Desta vez, abandona esse campo e se propõe a fazer uma obra de espionagem. Representante da China ao Oscar 2021, Luta pela Liberdade se passa no estado de Manchukuo, um lugar controlado pelo governo, na década de 1930. Quatro agentes especiais do Partido Comunista retornam à China depois de receber treinamento na União Soviética. Juntos, eles embarcam em uma missão secreta com o codinome "Utrennya". Depois de serem dedurados por um traidor, a equipe é ameaçada de morte por todos os lados.

Com seu preciosismo técnico, Zhang traz um trabalho cuidadoso e com uma beleza própria. Nada tão reluzente e escarlatino quanto Lanternas Vermelhas. Ou meticulosamente sorumbático quanto Shadow. Aqui é o branco da neve que dá o tom cromático, um recurso natural até então pouco explorado pelo diretor.

Embora caprichado na forma, Luta pela Liberdade resvala em uma trama complexa, muitas vezes confusa, que exige uma atenção especial. Oscila entre o denso e o desordenado. Tem lá seus méritos mas, se comparado a obras-primas mais remotas, trata-se de um filme menor. 


De Volta à Borgonha

Recentemente, as salas de cinema brasileiras acolheram o francês Lola e Seus Irmãos, que disseca as relações familiares entre parentes que se reencontram. Agora é a vez de Cédric Klapisch dar a sua versão sobre o que une - e separa - um trio de irmãos que, com suas semelhanças e diferenças, se veem obrigados a se ver novamente.

A comparação entre Lola e De Volta à Borgonha para por aí. As brigas, os conflitos de interesse e a ausência de um deles fazem parte do repertório de ambos. Mas em De Volta existe todo um aparato estético, quase noveleiro, que se diferencia do anterior.

Estamos falando de uma família que herda a vinícola de seu pai, recém-falecido. Esse pano de fundo serve de prato cheio para exibir cenas de paisagens campestres e processos de fabricação do vinho. Tudo muito lindo, nítido, com uma luz forte para realçar os detalhes e dar ao filme um tom quase National Geographic. 

Entretanto, Klapisch tem o dom de fazer sua obra escapar de um comercial de restaurante da alta gastronomia. Ainda bem. No meio de tanto primor bucólico, o diretor encontra espaço para mostrar um clã endividado e pouco experiente para exercer sua função de patrões. É nesse âmbito que Klapisch se sai melhor, deixando seu requinte etílico apenas como atrativo superficial para debruçar sobre o que sabe fazer de melhor: captar as relações humanas, sem cair em clichês ou diálogos forçados e atuações falsas.

Nesse sentido, De Volta à Borgonha parece ser um retrato mais maduro se comparado aos sucessos Albergue Espanhol e Bonecas Russas, onde tudo parecia uma folha de rascunho, um grande teatro de improviso recheado de boas intenções e sequências espertinhas.