sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Previsões para 2012

Janeiro:
Queima de fogos em Copacabana e queima de braços de turistas
Kassab anuncia aumento-surpresa da tarifa de ônibus, passando de R$ 3 pra R$ 4,90
Chuva mata, chuva destroi, chuva não para. Globo faz campanha para arrecadação de donativos para flagelados das enchentes. Arrecadação recorde para as vítimas do Piauí. Exército rouba todos os donativos
Fevereiro:
Bicheiro dono da Mangueira diz que apuração dos votos foi marmelada
Bicheiro dono da Gaviões arma o maior barraco
Dono da Salgueiro desmaia no meio da apuração
Tropa de Elite 2 eliminado da corrida ao Oscar
Março:
Líder do FMI diz que o gato subiu no telhado. Fala sobre a crise usando uma metáfora com o russo Lada modelo 87, batido, quinto dono
Rafinha Bastos mantém mistério sobre seu futuro profissional
Ryan Gosling cotado pro papel do novo Superman
Abril:
Twitter bate recorde de posts sobre o dia 1º de Abril
Especialistas concluem que obras do Maracanã para a Copa vão demorar mais que o previsto
Cai o ministro do Bem-Estar Social da Terceira Idade do governo Dilma
Mais uma Marcha da Maconha na Av. Paulista termina em pancadaria, prisões e... e... e o que mesmo?
Maio:
Ana Maria Braga, além de atacar de DJ, resolve investir na carreira de stand-up
No mês das noivas, comércio de vestidos bate recorde. Mesmo que a mulherada não tem grana e (pior) mesmo sem ter marcado data de casamento
Evaldo Mocarzel lança mais um filme
Ryan Gosling será o novo Batman
Junho:
Presidente ditador do Iêmen do Sul morre baleado por grupo extremista. Quem assume o cargo é seu filho, muito mais radical e imbecil
Foo Fighters anuncia show extra, dá tilt no site de compra de ingressos Ticket For Fun. 48 horas depois, show é cancelado
Corinthians anuncia reforços
Julho:
Fabricante de creme anti-ressecamento de pele por causa do frio é acusado de colocar fezes de rato na fórmula. Donos são indiciados, mas não comparecem ao tribunal
Presidente de Trinidad e Tobago descobre câncer na virilha, mas é benigno e passa bem
Acusado de fraudes e enriquecimento ilícito, ministro das Comunicações do Setor Terciário de Dilma renuncia
Agosto:
Popularidade de Kassab cai para 3,2%. Prefeito chora e cria um novo partido
Imprensa bate recorde de notícias falsas e requentadas. Afinal, NADA acontece em agosto
Setembro:
Evaldo Mocarzel lança mais um filme
Extremistas dos extremistas do Oriente Médio tomam o poder de toda a região
Líder do FMI cria rifas virtuais pra tentar salvar a Europa
Bolsa cai, dólar sobe, e Lula aparece na TV pra falar do Coringão
Hackers de Quixeramobim acertam todas as questões do ENEM e revelam: "Não basta colar na prova. Tem que copiar e colar, Ctrl C + Ctrl V"
Outubro:
No Dia das Crianças, criança engole peça de plástico de brinquedo na Tanzânia. Família pede indenização recorde
Mais um jogador do Corinthians envolvido em drogas, bingo, tiroteio, mortes e piriguetes
Chega ao mercado o iPhone 5.1 TSI e o iPad 2X Duo Tel. Ágio no Brasil chega a 400%
Scorcese filma biografia de Obama. Ryan Gosling no papel principal
Novembro:
Folha de São Paulo diz que homicídio aumentou e assalto diminuiu. Estadão diz que homicídio caiu e assalto aumentou. Povo diz que aumentou homicídio, latrocínio e ladainha
Adiada para 2013 extensão da Linha Amarela do metrô
Fã-clube do Foo Fighters divulga vinda da banda. Site oficial nega
Deprimida, líder do FMI assume presidência da Coreia do Norte
Cai o ministro dos Arredondamentos Fiscais do governo Dilma. É o 13º que sucumbe. “13 é nosso número de sorte”, desconversa a presidente
Dezembro:
Roberto Carlos traz Erasmo pro show de Natal
Mocarzel lança mais um filme
Brasil sobe para 3º no ranking das maiores economias mundiais. ONU detecta fraudes nos critérios de avaliação e na apuração dos resultados
Twitter aponta que, ao contrário das previsões, o mundo não acabou
Stand-up vira programa complementar ao churrasco na laje
Deputados autopromovem aumento de 520% em seus salários

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Mil folhas

Um respeitado gerente de marketing de um grande anunciante brasileiro (intimamente chamado pelos publicitários de “cliente”) resolve entrar em uma conhecida boulangerie dos Jardins, em São Paulo. É um estabelecimento pouco caloroso, em que os atendentes não são dispersivos, porém evitam um contato mais amigável com seus frequentadores. Tem aquele ar meio blasé, que te deixa em dúvida se você deve se sentir confortável ou intimado pela antipática ostentação. Claro que, sem sombra de dúvida, dá de goleada em qualquer doceria ou padoca. Para deixar impregnado no ambiente aquele cheiro orgástico e sinestésico de um doce dionísico que acabou de sair do forno, o tal lugar fabrica, de hora em hora, a iguaria que o colocou em todos os guias gastronômicos como o melhor da cidade: o mil folhas.

Pois foi num domingo à tarde que o dito cliente entrou na doceria. Pelo seu olhar atônito e inebriado, todos os funcionários perceberam se tratar de um marinheiro de primeira viagem.
Para bajular a reputação do lugar, o cliente inicia um discurso ufanista à primeira balconista que o atende:
Boa tarde. Ouvi falar que vocês têm o melhor mil folhas de São Paulo. Tô muito curioso pra conhecer. A gente acabou de passar por um longo e exaustivo processo de concorrência. Eu visitei várias lojas, mas nenhuma delas atendeu aos critérios mínimos de preço, qualidade e sabor. Por isso, resolvi passar aqui.
A atendente fica lisonjeada e retribui os elogios.
Pois não, senhor. Obrigada pela escolha. Realmente, esse doce tem muita saída.

Percebendo que poderia ganhar um lucrativo e espontâneo filão de mercado, sem falar na dita cuja fidelização de cliente, a atendente pega o seu talher de alumínio brilhante e prepara-se para colher o melhor, o mais fresquinho, o mais vistoso e o mais perfumado doce da translúcida incubadora de quitutes.
Antes de a balconista manifestar seu gesto, o cliente prefere tirar algumas dúvidas. Assim como uma parcela razoável de clientes deste país, este caso específico fez uma série de cursos e especializações, MBAs, mas conhece pouco do riscado daquele tipo de aprendizado que se adquire na prática. Neste caso, a confeitaria de doces.
Pera, pera... antes de você me dar o doce, eu queria saber umas coisinhas, diz o cliente. Queria saber se aí tem realmente mil folhas.
Como?
Claro que, diante de uma indagação inusitada como essa, a balconista não poderia esboçar outra reação que não fosse de incredulidade.
É, a ética e a transparência fazem parte dos critérios de contratação de fornecedores. Se a gente adquirir um mil folhas sem as mil folhas, isso pode dar um problema danado com o departamento de Compras. Nossa empresa passa constantemente por processos de auditoria e avaliação de patrimônio. Por isso, volto a repetir (em um tom mais enfático): ESSE MIL FOLHAS TEM MIL FOLHAS?
Olha, senhor... veja bem... nosso confeiteiro é o melhor da cidade... ele capricha bastante... mas a gente nunca contou o número de folhas não senhor.
Tá bom, vai... OK então... whatever... se tiver umas 890, tudo bem... a gente justifica pro Financeiro como perda decorrente de margem de erro.

A atendente volta a pegar o doce, quando é novamente interrompida.
Outra coisa... é frente e verso?
??
É. Quero saber se tem recheio na frente e no verso de cada uma das folhas.
Olha, nosso mil folhas é bem recheado.
Ah, tá... legal...

Novamente se inicia o mesmo processo: atendente tenta pegar o doce, cliente faz mais perguntas.
Mais uma coisinha... desculpe... como é o refile dessas folhas?
???
O refile. Como elas são cortadas? Tem faca especial?
A balconista pensou numa resposta bem mal-educada, mas preferiu ser mais polida na tentativa de ganhar o cliente.
Não é um corte especial não. É um corte padrão da massa feito pela máquina importada que temos na cozinha.
Ah, certo... Então me vê um mil folhas.

A atendente esboça um sorriso incontido. Venceu a barreira da dúvida. Agora é só aguardar a cara de prazer do cliente e recolher o dinheiro pra depositar no caixa. Ponto, foi pra conta.
Só que, na relação entre clientes e fornecedores, a coisa nunca sai tão fácil assim. A coisa é mais complicada do que licitação pública. E o cliente, assim como todos os outros clientes, assim como todos nós, são pessoas. E pessoas são indecisas.
Peraí. Última coisinha, juro. Lembrei agora. Quanto custa?
Como a casa não estampa aquela famosa tabela de preços nas suas paredes pra não “sujar” a estética clean do ambiente, a pergunta do cliente fez todo sentido. Claro que a maioria dos frequentadores que lá costumam abarcar não se preocupam muito com esse pormenor. O que não quer dizer que o cliente não tenha razão em perguntar.
R$ 8,00 a unidade, senhor.
O quê??
OITO REAIS.
Mas isso é um absurdo! Totalmente fora do nosso orçamento.
O dinheiro é de fato a ponte entre as amizades. É ele o responsável por deixar homens de negócios cada vez mais próximos e pessoas cada vez mais distantes. Toda relação corre o risco de estremecer quando o assunto é dinheiro. Caem as máscaras. E foi justamente a partir desse momento que a balconista não fez mais questão nenhuma de esconder sua irritação com o consumidor em questão.
O cliente ainda tenta acalmar os ânimos e contornar o clima de mal-estar:
Olha, sei que é um momento estressante, mas somos parceiros. Vamos buscar a melhor solução, OK? Se vocês retirarem essa camada de açúcar do topo, lógico que chegaremos a um acordo tranquilamente.
Isso está fora de cogitação.
Se eu quiser levar um doce de 500 folhas, quanto daria pra fazer?
???
Não, não precisa ser a metade do valor não! Vocês têm o trabalho de preparar o produto, aquecer os fornos, faço questão de pagar mais do que 50% do custo. Sei lá, uns... R$ 5,00, pode ser?
???
Vai ser bom pra você, vai ser bom pra nós dois. Você me vende um 500 folhas, eu prometo voltar aqui mais vezes, indico o estabelecimento pra minha rede de contatos, vocês aumentam o faturamento, todos saem ganhando.
A atendente faz uma cara mostrando que está muito irritada.
Vamos fazer diferente então. Se não dá para cortar na carne, vamos ganhar em volume. Vamos supor que eu tenha que fazer uma festa. E nessa festa vai ter muitos convidados. Teria como você me passar um orçamento para 100, 200, 500, 1.000 e 5.000 unidades?
Mas afinal, de quantos doces o senhor precisa?
Então, não posso dizer agora. Estou apenas fazendo um levantamento de preços para uma eventual necessidade.
O senhor vai fazer uma festa e não sabe quantas pessoas vai convidar?
É só para balizar melhor a planilha de custos, só isso. Vocês querem ou não querem que eu seja o cliente de vocês?
Mantendo o tom de uma relativa animosidade, a balconista responde com ironia polida para esconder sua raiva:
É que, num caso extremo, atípico como esse, se por ventura o senhor precisar de uma quantidade gigantesca, teremos que reestruturar nossa equipe. E precisaríamos de um prazo um pouco maior pra dar conta da demanda, tipo 5 dias úteis.
Como? Não, não tenho esse prazo. Assim que batermos o martelo, vou precisar dos doces com urgência. Um dia de prazo, dois no máximo. Afinal, vocês topam ou não topam? Senão, vou procurar uma doceria que faça.
É IMPOSSÍVEL fazer 5.000 doces de um dia pro outro. Nem que a gente contratasse TODAS as docerias da região pra fazer freelance pra gente.
OK, vamos então deixar essa suposição pra depois. Me vê aquele mil folhas ali.
Pois não, senhor.

...

O recheio é do que mesmo?
Recheio de creme. É o padrão do mil folhas. O recheio é de fabricação caseira. Usamos ingredientes da melhor qualidade.
Ótimo! Ótimo! Excelente!
(Rosto feliz da balconista).
A história parece ter encontrado um desfecho satisfatório. Mil folhas saído da vitrine, agora desfilando seu aroma no balcão, bem abaixo do nariz do cliente.
Olha, é o seguinte. Com certeza, vocês fazem o melhor mil folhas de São Paulo. Talvez o melhor do país. Deve ser uma delícia esse mil folhas... de creme. Só que eu queria ver mais algumas opções.
?????
Isso mesmo! É natural num processo de concorrência o fornecedor mostrar sua criatividade, seu empenho. Sei lá, queria ver algumas sugestões fora da caixa. Mil folhas de doce de leite, de goiabada, de frutas vermelhas, massa de tapioca... tá vendo como eu também sou criativo? Hehe... Se a gente sentar aqui, trocar uma ideia, rabiscar umas propostas no papel, a gente consegue se diferenciar do mercado fácil, fácil. É só ter um pouco de boa vontade que a gente conquista a liderança.
Olha, meu senhor. Meu caríssimo senhor. Eu também gosto de mil folhas. E gosto mais ainda de dinheiro. Seria uma honra muito grande ter o senhor como nosso principal cliente. Mas pra mim já chega. Estou abrindo mão da venda antes mesmo de concretizar essa venda. Não dá certo. O senhor quer uma coisa, eu vendo outra. Nada pessoal. E pro senhor não sair com uma imagem abalada da nossa empresa, que demorou quase 20 anos pra construir a reputação que tem, faço questão de oferecer esse mil folhas ao senhor, sem custo nenhum. Cortesia da casa. Sem negociação, sem nada. Por favor, aceite a oferta e experimente o melhor mil folhas da cidade. De graça.
O cliente ficou meio sem jeito, mas não quis demonstrar.
Imagina! De jeito nenhum! Assim a senhora me ofende! Faço questão de pagar. Tudo bem, nossa negociação não foi das melhores, mas o mercado é assim. A economia obriga a gente a tomar essas atitudes. Nada pessoal também. Mas somos como uma empresa. Com regras, com missão, valores. E não posso aceitar esse doce de graça porque senão isso pode ser caracterizado como suborno. E a gente valoriza a ética e a transparência, conforme já falei. Por favor, não vamos criar esse clima. É nas dificuldades e nos desafios que criamos as oportunidades. Viu? Nossa negociação criou a oportunidade de eu experimentar o seu mil folhas, e você não vai precisar arcar com o prejuízo, pois faço questão e vou pagar seu valor integral! Só que vou precisar da notinha...

A balconista olha pro cliente. O cliente olha pro doce. E o doce não vê a hora de ser devorado e acabar logo com essa angústia.

Pensando bem... acho que vou pegar o mil folhas lá perto de casa, que também é muito bom. Por favor, pode me ver aquela coxinha?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Lula no Céu

Após algum tempo morto, desempregado e perambulando as galáxias, Lula resolve fazer um estágio no Céu, a mais importante e premiada agência de Propaganda.
Carregando seu portfólio, Lula entra na agência. Fica encantado com sua suntuosidade, com o pé direito triplo da recepção, seguranças espalhados pelo hall. É uma agência asséptica, toda branca, que ostenta colunas góticas e um enorme quadro de Klimt.
Vim falar com o diretor de Criação, diz Lula.
Imediatamente, a lacônica recepcionista desliga o interfone e pergunta: Qual o nome do senhor?
Luís Inácio da Silva.
O senhor tem hora marcada?
Sim, marquei com ele ontem por telefone.
A recepcionista olha pra baixo, pega o interfone, balbucia uma sílabas incompreensíveis com o interlocutor. Desliga o interfone, recompõe-se, cria um sorriso falso e diz pro Lula:
O senhor pode olhar para a câmera, por favor? Segundo andar, primeira à direita.

Lula dirige-se à Criação, espera sua vez de ser atendido num sofá de veludo preto. Folheia rapidamente as últimas páginas de uma Meio & Mensagem bem antiga, mais ou menos de 2045. Fecha a revista, inicia um nervoso e aflito sapateado sobre o chão de madeira laminada. Começa a assobiar uma música que não existe. Para. Pega seu iPhone e começa a mandar algumas mensagens, quando é interrompido pelo diretor de Criação, um senhor alto, esguio, camisa preta, barba grisalha por fazer e brinco na orelha esquerda.
Aceita um café? Água?
Não, obrigado.
Então vamos entrar.

...

E aí? Fala um pouco de você.
Olha... veja bem... eu nasci e cresci numa cidade bem pobre. Nunca fiz faculdade, sempre me sustentei. Entrei nesse mercado por mérito próprio, nunca tive uma indicação. Comecei a fazer meu portfólio lá no Sindicato, na hora do almoço. Aí fui batalhando, batendo de porta em porta... já fui em tudo quanto é lugar: periferia, cidades do interior, Jardins. Meu último emprego foi como Presidente do Brasil, não sei se o senhor já ouviu falar... Batalhei pras minhas ideias serem aprovadas, briguei com quase todo mundo da agência. Mas no final consegui o apoio de quase 90%. Não foi fácil, mas foi muito bom. Tanto é que eu renovei meu contrato.
E por que saiu de lá?
Agora eu tô em busca de novos desafios.
E você chegou a trabalhar em alguma agência grande? Estados Unidos, China, Canadá...
Não, mas meus amigos me disseram que quem trabalha no Brasil consegue emprego em qualquer lugar do mundo, hehe...
Vamos ver sua pasta?

Antes de exibir seu extenso portfólio, Lula explica ao avaliador que, além dessas campanhas que irá apresentar, fez também uma série de atas, emendas constitucionais, projetos de lei, mas preferiu não trazê-los para não deixar a entrevista maçante.
Nesse momento, o diretor de Criação coloca seus óculos de armação de casco de tartaruga. Sai da sala o amigo e entra o mestre, o doutor, o auditor publicitário que irá decidir o futuro profissional de quem está à sua frente.
À medida que o diretor de Criação folheia cuidadosamente o portfólio, Lula explica cada uma das peças, num tom meio apreensivo e com uma certa insegurança. Sem dar ouvidos às explicações, o diretor não esboça nenhuma reação sequer, mantendo sua postura de distância e frieza. A lenta virada de página e o olhar fixo em cada detalhe dos anúncios mostra o quão rigoroso é o analista, como se estivesse diante de um experimento científico.
Ao terminar de ler a última página, o diretor olha vagamente pro infinito e fala, num tom ao mesmo tempo misterioso e contemplativo:
Muito boa sua pasta. Muito boa.
Lula fica aliviado. Acabou de passar no vestibular da vida.
O diretor de Criação volta ao início da pasta e folheia rapidamente as peças, só pra constatar que não deixou escapar nada. Acrescenta:
Eu só tiraria algumas coisas. Esse aqui... reforma tributária... tá com cara de anúncio-fantasma. Esse aqui, do Renda Mínima, também. E esse aqui, o Bolsa-Família, é bem criativo, mas tenho a impressão de que já foi feito.
Finaliza seus comentários:
E também mudaria um pouco a ordem. Tenta colocar esse aqui do PAC em primeiro, pra causar impacto. Deixa os “menores” pro final, como esse aqui do Ministério da Defesa.

Passada a angústia do teste aos moldes do American Idol, Lula quer saber se essa avaliação positiva irá lhe redner momentos de glória, de fama. Se, com sua pasta, Lula poderá conseguir um lugar ao Céu.

Percebendo a cara de curiosidade de Lula, chega o momento do diretor jogar o balde de água fria.
Bom, você sabe... estamos passando por um processo de reestruturação. Ontem ficamos até de madrugada em reunião com a diretoria pra discutir benefícios, essas coisas. Mês passado a gente implantou um programa de qualidade de vida. O departamento dos anjos não precisa mais vir de branco, pode vir de preto, se quiser. Acabamos de alugar uma bateria e um teclado pra substituir as harpas. O piercing foi liberado pros apóstolos. A gente quer fazer daqui um lugar bacana de se trabalhar. Perdemos muitos bons profissionais pra concorrente lá do outro lado da cidade.
Sei, a Inf. Muito boa agência, ouvi falar.
É... (resignado em admitir) é boa... mas lá o dono escraviza os funcionários, faz todo mundo trabalhar fim de semana, o cara é um tirano. Pessoal estressado, lá é um inferno. Fica na Berrini, a Berrini também é um inferno.
É, mas ouvi dizer que eles andaram ganhando muitas contas. A Apple estava com vocês e foi pra eles.
Pois é, mas eles não são éticos nos processos de concorrência. Abrem mão do percentual de agência só pra ganhar conta. Chamam freela pra concorrência e depois mandam embora. Conselho de amigo: se eu fosse você e recebesse uma proposta deles, recusava. Não se deixe cair em tentação.
Claro. Mas eles estão ganhando o mercado.
Por isso que a gente tem que se adaptar aos novos tempos. Vê só, tem uma porrada de agência criativa e premiada que hoje não consegue pagar suas contas. A Grécia, por exemplo. Puta agência premiada pra cacete. Tá demitindo até os pica-grossa. Ontem mesmo 3 da diretoria foram pra rua. E olha o que te digo: a Espanha vai ser a próxima. Aqui já estão falando em passaralho.

O diretor de Criação, que não é bobo nem nada, usa todo esse clima de pessimismo pra concluir sua linha de raciocínio e não se passar por um déspota insensível.
Toda essa remodelagem que estamos fazendo aqui tem um custo. A gente não pode mais perder os talentos pra concorrência. Por isso a gente não tá contratando.
Lula tenta sua última sorte:
Tá, mas eu topo vir aqui de graça. Trabalhar no Céu iria fazer um bem danado pro meu currículo. Eu ia poder acompanhar o trabalho de excelentes profissionais. Me contrata, vai... nem que seja pra me colocar num cantinho. Fazer clipping das ações sociais, visita técnica em Honduras, no Haiti, e nos países subdesenvolvidos, tento acordo de paz na Síria, faço levantamento estatístico de terremotos... eu preciso muito desse emprego.
Embora quisesse dar uma oportunidade a Lula, o diretor se vê obrigado a ser taxativo:
Lula, sua pasta é muito boa. Boa mesmo. Com certeza, você vai ser recolocado rapidamente. Mas não aqui. Tá vendo aquele redator ali? Foi ele quem criou as palavras do bem que estão na moda: sustentabilidade, responsabilidade social, politicamente correto, orgulho gay, transparência... O dono veio falar comigo que queria a cabeça dele semana passada, eu é que segurei as pontas e pedi pra ele ficar. Aqui, eu só teria como justificar a contratação de um puuuta profissional, como a Madre Teresa de Calcutá, o Gandhi, o Nelson Mandela... ou quem já passou pelas agências fodonas, como Holanda, Suécia, Dinamarca... e mesmo assim, teria que brigar por salário com o Financeiro, que fechou as torneiras.

O diretor de Criação pega uma caneta e uma folha de papel em branco, pronto para anotar as indicações típicas de fim de entrevista.
Eu conheço aqui umas ONGs... você já foi falar com as Casas André Luiz?
Já, mostrei a pasta lá 3 vezes.
Dorina Nowill?
Só dão estágio pra filho de cliente.
Fundação Abrinq? O dono é muito amigo meu.
Vi anúncio num blog no mês passado. Mandei e-mail com link de portfólio e eles não me retornaram até hoje.

O diretor de Criação anota umas indicações na folha e entrega ao Lula, sem perder seu ar de otimismo.
Tá aqui. Procura essas pessoas e depois me retorna. E se você tiver alguma campanha nova e quiser me mostrar antes, fica à vontade.

E foi assim que o imperador do Brasil voltou à sua realidade. Descendo de elevador e depositando seu crachá de visitante no compartimento à esquerda da catraca de saída.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Muda ou não muda?

Atualmente, trabalho numa agência de endomarketing e campanhas internas. Nosso principal cliente é o banco Itaú, que tem como slogan de campanha, em todas as esferas e para todas as disciplinas do marketing, a frase “O mundo muda. E o Itaú muda com você”. Para ilustrar esse conceito, foram escalados diversos perfis de público, reforçando a base teórica de que o mundo de hoje é diferente do mundo de ontem. Os nerds que assumiram os principais cargos das empresas, as pessoas se conectando e interagindo em qualquer lugar do planeta, o efeito-estufa e a vocação para a reciclagem, a sustentabilidade como plataforma de gestão e discurso de campanha, a linguagem cada vez mais visual e menos verbal, os emoticons, as diversas gerações frequentando shows de rock, tudo isso.

Em contrapartida, tem um outro comercial no ar, do novo Fiat Palio, que segue o caminho inverso ao afirmar que, desde os tempos de Adão e Eva, o mundo não mudou tanto assim, com exceção do automóvel propagado. É um túnel do tempo ao contrário, mostrando diversas situações de rompimento das relações entre casais. As mesmas desculpas.

Num mundo que se vangloria de mudar a cada instante, como se o hoje diferente do ontem fosse a única forma de mensurar o progresso e a transformação, tendo a acreditar que, de fato, quase nada mudou na nossa história. Não tenho orgulho disso não, muito pelo contrário. Acho frustrante constatar que ainda somos medievais no que diz respeito às formas de governo, às maneiras de a sociedade se organizar e se relacionar, ao comportamento humano. Mudanças consumistas, que provam que o iPad 2 é totalmente diferente e revolucionário em relação ao iPad pioneiro de mercado, é claro que existem. Mas essa é uma constatação epidérmica e paliativa. Na essência, o ser humano é estanque. Fatos históricos praticamente se repetem. E não creio que seja a velocidade das informações ou os avanços tecnológicos que irão trazer essa real percepção de mudança. Essa visão é conveniente para quem detêm o mercado. Mudança concreta, significativa e verdadeira, nem daqui o lançamento de 10 gerações de automóvel.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Luzes, câmera e muitas luzes

Do ponto de vista cinematográfico, posso dizer que encerrei a 35ª Mostra SP com chave de ouro vendo Mexican Suitcase, um documentário sobre fotos perdidas da época da Guerra Civil Espanhola. Mas, no que diz respeito ao exercício da cidadania, este epílogo foi um vexame. Cheguei minutos atrasado na sessão e, logo em seguida, vejo uma moça trocando de lugar e sentando-se no cantinho da sala. Ela abre seu laptop e começa a trabalhar... no meio do filme. Mesmo imaginando que o fato de se sentar isolada da aglomeração fosse motivo suficiente para fazer o que bem entendesse, ela levou um justo cartão amarelo. Advertida por uma amiga minha, que dirigiu-se a ela para dizer que aquele mini-holofote atrapalha os demais espectadores, ela fingiu que não ouviu ou fez corpo-mole para tomar alguma atitude em respeito a todos os cinéfilos que entraram na sala... para ver o filme. Já cansei de mencionar que minhas intervenções aos falantes são voto vencido, mas felizmente nessa sessão estive acompanhado de pessoas mais criteriosas, que usam métodos mais ortodoxos para mandar os incomodantes calar a boca ou apagar as luzes, do tipo “desliga essa porcaria” ou algo que o valha. Inconformada com a solicitação geral da plateia, e não é que a moça sai esbravecida, pisando forte e resmungando? Para se ter uma ideia, ela até foi aplaudida quando finalmente se retirou da sala.

Já escrevi aqui que algumas sessões da Mostra foram tumultuadas, nesse sentido. É quando se junta a surdez das velhinhas dos Jardins, que lotam o Cinesesc e adjacências nas sessões vespertinas e não param de tagarelar, com a falta de educação de uma (quero acreditar) restrita parcela do público jovem, insaciável, que encara o ato de se ver um filme como uma aula facultativa que se pode cabular, o recreio fora de horário, o momento revolucionário de usar a força da expressão na sua temperatura máxima.

É triste notar, e parece ser um fenômeno irreversível, que a cultura Cinemark esteja invadindo a “cinefilia de arte” da região da Paulista. Conversar durante um filme tornou-se um hábito digestivo, como se fosse o respiro entre uma cena e outra. As advertências das vinhetas são inócuas quando tocam nesse assunto. Até mesmo a vinheta do Cinesesc faz uma ressalva: “cochichar vale”. Não, cochichar não vale. Em certos casos, o balbucio quase silenciosos do ranger silábico das consoantes atrapalha mais do que um bate-papo.

Eu já passei por experiências terríveis. Teve uma vez que um casalzinho metido a besta da fileira de trás se sentiu ofendido e o brutamontes do namorado levantou-se para exibir seus músculos, dando a entender que estava MUITO disposto a resolver a questão na porrada. Teve outro dia (no Belas Artes, quem diria!) que o estúpido me respondeu: “tá incomodando? Vai sentar lá do outro lado”. Outra vez (no Unibanco Arteplex!) um casal ao meu lado que não parava de fochicar e, quando eu pedi silêncio, à minha maneira corleônica de ser, o besta-quadrada deu a entender que, pelo fato de pagar o ingresso, tinha o direito de fazer o que quisesse na sala.

O ruído verbal, todavia, virou algo do passado. Hoje os folgados, como bem foi exemplificado acima, usam toda a modernidade e tecnologia ao seu alcance para incomodar os outros com requintes de malvadeza, egoísmo e gigabytes. É comum esbarrarmos com pessoas que ligam o celular a toda hora, não param de enviar torpedos e e-mails, entram nos chats e precisam, a qualquer custo, mandar via Twitter o resumo de cada cena a que estão assistindo. É a geração Y, verdadeiros lanterninhas e caga-lumes do escurinho que, com seus smartphones e aplicativos, cospem sobre o cidadão cinéfilo de bem. Uma juventude que não entende porra nenhuma de democracia, que acha que ser revolucionário é botar o pezão na cadeira da frente, que entende que liberdade é falar alto no meio da sala, entrar rindo e gritando, sair jogando pipoca no chão. Esses são os caras-pintadas do Século 21, fachada de um comportamento de mercado que vende uma sociedade conectada, integrada e sustentável, mas que no fundo não passa de um bando de individualistas, mercadologicamente egocêntricos, apoiadores retrógrados do bullying social.

Aos meus 43 anos, faço parte de uma geração jurássica, uma minoria em extinção que faz “shhh” na sala. Devo ser visto como um chato, um xiita. Para a horda desembestada, quem incomoda a sessão sou eu.

Mas o que fazer para mudar esse estado das coisas? Sinceramente, perdi minhas esperanças. Meu ponto de vista ganha a adesão somente das pessoas que concordam comigo e nunca cometeram tais atos de barbaridade nos cinemas. Para dialogar com os infratores dos bons modos, só mesmo à base do confrontamento. Não adianta o diálogo. Ninguém vai mudar de opinião. O tagarela não vai deixar de ser tagarela por se sensibilizar à petição. Muito pelo contrário, provavelmente. Vai se sentir insultado, moralmente diminuído, e vai querer usar da falta de educação a sua pior arma. Existe uma lista de reivindicações dos cinéfilos que são verdadeiras causas perdidas. A meu ver, a sociedade caminha para uma direção muito estranha. Cinema é vendido como diversão, como entertainment. Em tempos de simultaneidade e de informações descartáveis, exigir concentração para a apreciação da arte é um esforço inútil. A relação do cinema com seu público é das mais efêmeras. O cinema é como um show de rock, uma tanda. E o filme, um palco paralelo da atração principal.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

35ª Mostra SP: balanço final

De um modo geral, a avaliação que faço da Mostra deste ano é bem positiva. Claro que teve seus problemas, aos montes, mas é bom ressaltar que é a primeira Mostra-órfã desde a sua criação, e o fato de o Leon falecer às suas vésperas teve uma série de implicações. Como já falei antes, algumas medidas tomadas talvez foram, conscientemente ou não, uma tentativa de resgate dos bons tempos de Mostra, enquanto que algumas intempéries talvez possam servir de lição para as edições futuras.

Por uma questão prática, resolvi listar os pontos fortes, os pontos fracos e as medidas indiferentes do festival. Eles não estão necessariamente apresentados em ordem de importância ou de peso, mas creio serem, no meu julgamento pessoal, os fatores mais relevantes para a sua avaliação.

Pontos fracos da Mostra:
Digital: definitivamente, este foi o problema mais grave da Mostra. Foram esses filmes que geraram o caos total. Ainda não estamos preparados a absorver esta tecnologia. Incompatibilidade de formatos, exibição fora dos padrões de conversão, equipamentos de projeção precários, e por aí vai. Hoje, a divisão não é mais dicotômica película/digital. Existem, para atrapalhar um pouco mais essa lógica, os diversos suportes do digital, que quase nunca se conversam. Nas próximas edições e nas futuras salas de cinema, os organizadores e exibidores vão ter de trocar os ultrapassados projecionistas por hackers. Ausência de áudio, imagem tremida que lembra um DVD pirata, imagem congelada, cores esmaecidas, interrupção abrupta da projeção, foram alguns dos problemas causados pelo famigerado digital.
Programação I: além dois problemas em si, o digital foi também um dos principais responsáveis pela caótica programação. Todo ano, improvisos, retenções na alfândega e quetais fazem com que a programação inicialmente desenhada seja prejudicada. Mas este ano foi campeão. Principalmente na primeira semana, os problemas foram hercúleos. Nem dava tempo para anunciar as trocas de filmes. Em alguns dias, recebi e-mails que eram verdadeiros relatórios, tamanhas as substituições e cancelamentos. Teve casos de filmes que mudaram de sala e isso foi noticiado no horário do começo da sessão. Essas mudanças de última hora também comprometeram a troca de ingressos. Soube de filmes que sofreram alteração umas três vezes numa única sessão. Teve filme que atrasou quase 1 hora e, só após esse vácuo, os espectadores foram avisados do cancelamento da sessão. Testes de áudio e de legenda minutos antes do filme começar eram comuns. O guia de programação oficial da Mostra, aquele retangular, serviu apenas de referência. O Guia da Folha, então, apenas para as sinopses curtas.
Programação II: é sabido que alguns filmes, graças ao boca a boca, crescem durante a maratona e caem no gosto do público. E, em muitos casos, não dá para se prever o sucesso ou o fracasso de um filme, principalmente aqueles dirigidos por iniciantes. E, ainda por cima, sabemos como é complexo organizar uma grade de programação, pois tem de se levar em conta o formato/suporte do filme, sua duração, as exigências contratuais, o período de disponibilidade em São Paulo, entre outros fatores. Mas, ainda assim, vale frisar que a Mostra ainda não nos trouxe um modelo ideal de programação. É um desperdício assistir ao insignificante Maria My Love no espaçoso e vazio Cinesesc, que serviu de refugo frustrado para quem não conseguiu ingresso para ver o concorrido Las Acacias. O coreano The Day He Arrives foi programado pra passar no cubículo Cineartinho (Livraria Cultura 2). Na minha modesta opinião, não vejo problemas em passar um mesmo filme outras vezes na mesma sala, em vez de se tentar o rodízio completo. É possível programar melhor os filmes que ganharam festivais no exterior, filmes de diretores consagrados, filmes dos queridinhos da Mostra, filmes que fazem parte do fetiche dos cinéfilos. Parece óbvio, mas vale lembrar que concentração de público é que nem concentração de renda. Colocando na medida do possível os filmes mais concorridos em salas maiores, menos espectadores ficam do lado de fora. Com isso, vendem-se mais ingressos. E, quanto mais ingressos vendidos, mais dinheiro entra pros caixas da Mostra.
Uruca: como se não bastasse, esse ano também foi atípico em outras questões. O filme Habemus Papam teve as primeiras sessões canceladas porque, de acordo com o que ouvi falar, a empresa de legendagem foi assaltada. Outros filmes também foram cancelados na primeira semana porque a empresa de serviços expressos de envio de mercadorias não era cadastrada, impossibilitando o rastreamento. Houve queda de energia no Cine TAM. Muitos foram os casos de queima de luz do projetor. Nas próximas vezes, sal grosso no sal de prata.
Monitoria: antes de entrar no mérito da questão, vale ressaltar que muitos coordenadores dos monitores, em especial o que ficou de plantão no Unibanco Arteplex, soube conduzir com eficiência a sua função, mostrando-se ágil e atento aos inúmeros problemas e procurando trazer soluções imediatas dentro do possível. Mas a grande equipe de subalternos, principalmente os marinheiros de primeira viagem, os mais novinhos e colegiais, pareciam estar lá para fazer figuração. O público espera uma brigada de incêndio treinada e orientada para agir rapidamente em casos de emergência mas, em vez disso, encontra uma meninada desinformada, alheia e indiferente aos obstáculos e sem preparo algum para controlar a fúria dos pagantes ou atuar de maneira exemplar na condução das medidas improvisadas. Alguns até que são simpáticos e esforçadinhos, mas de boas intenções o Inferno tá cheio. Era comum ver os bilheteiros do próprio cinema se desdobrando e driblando a inércia dos novilhos. Já que a Mostra convoca uma farta equipe para fazer número e, com suas camisetas verdes, propagar o evento para as demais áreas e espaços, sugiro que, nas próximas edições, um dos monitores fique dentro da sala o filme inteiro para observar as falhas de projeção e que outro fique com um Nextel na mão para comunicar remotamente os problemas ao projecionista ou a alguém da Central. Fico com a impressão de que a monitoria foi orientada única e exclusivamente para distribuir e recolher as cédulas de votação.
Unibanco Arteplex: sem dúvida alguma, o QG do caos. Shopping center já é uma aberração em si. Junte-se a isso um evento importante em suas dependências. Acrescente a época das compras de fim de ano e você pode ter uma noção aproximada do Apocalipse. Embora as bilheterias tenham sido relativamente rápidas no fluxo de venda de ingressos, foi insuficiente para evitar filas que, em alguns horários de pico, aproximavam-se das Lojas Americanas do andar de baixo. Apenas alguns milímetros separavam as filas que se formavam na entrada das salas. Correria, barulho, fuzuê, muvuca, lotação, tudo isso é pouco para tentar definir o pandemônio em que se transformou o relativamente calmo centro de compras da região da Augusta. Me senti no Armageddon.
Shhhhh: é notório perceber que o público da Mostra tá mudando, tanto pela faixa etária quanto pelos gostos, costumes e comportamentos. Natural. A Mostra, além de exibir filmes, não deixa de ser um recorte social e cultural da cidade. Infelizmente, boa parte dessa nova safra trouxe a cultura Cinemark para dentro das salas do Adhemar de Oliveira. Em outras edições, meus amigos cinéfilos, igualmente rigorosos nas condições de silêncio que se exige ao se assistir a um filme, rogavam a quietude já nos primeiros segundos pós-vinheta. Mas em muitas sessões deste ano eles parecem ter desaparecido, e o comportamento egoísta imperou. Falatórios, cochichos, pipoca, chutes na cadeira da frente, atitudes típicas de blockbuster estavam ali nos ditos “filmes de arte”. Uma pena. Perde o público, perde o festival, perde a cinefilia. Como se não bastasse, a geração Y dos cinemas entende que a conectividade deve existir 24 horas por dia. Um bando de lanterninhas de luxo, vaga-lumes de plantão mandando e-mails e twittando em seus iPhones cada cena do filme.
Cariocas: com a volta do Rock in Rio ao Rio, o FestRio atrasou uma semana em relação ao calendário dos anos anteriores. Sua semana de repescagem encavalou com a primeira semana da Mostra. Com isso, muitos amigos nossos, frequentadores habituais, encurtaram sua estadia em Sampa,ou chegaram no final da Maratona, ou simplesmente não compareceram.
Repescagem: acredito que a organização da Mostra deve fazer um esforço sobrenatural para segurar os filmes no festival, mas os cinéfilos não podem deixar de lamentar, na semana de reprise, a ausência dos bem avaliados Era Uma Vez na Anatolia, Elena, Um Mundo Misterioso, Las Acacias, O Desaparecimento do Gato, The Day He Arrives, Hanezu, Desapego, O Dedo, Tudo pelo Poder, Forgiveness of Blood, Low Life, O Garoto de Bicicleta, Habemus Papam, Vulcão, Respirar, Neve em Kilimanjaro, entre outros.
Ingresso grátis: por se tratar de órgãos públicos, o MIS e o Cinusp poderiam continuar oferecendo sessões gratuitas. Ou, pelo menos, cobrar o valor simbólico de R$ 1,00, como fazem o Olido e o Centro Cultural. O Matilha Cultural também deixou de abrigar a Mostra este ano.


Nem cheira nem fede (aspectos indiferentes da Mostra):
Belas Artes: no começo do ano, o fechamento dessas salas causou comoção, indignação e criação de comunidades no Facebook. É triste notar, mas parece que o paulistano vem se acostumando à sensação de abandono do atual abrigo de mendigos. A riviera cinéfila paulistana não fez a mínima falta.
Pedala: o discurso de sustentabilidade encontra-se presente em todas as empresas. O metrô e a Prefeitura criaram medidas, ainda que mínimas e paliativas, em prol dos ciclistas. Mas eu não vi uma viva alma que tenha se utilizado das bicicletarias da Mostra para se locomover entre uma sala e outra.
Coletiva: a Renata de Almeida avisou que, a partir do ano que vem, pretende rever como e em que momento será realizada a coletiva de imprensa que apresenta o júri. O café da manhã, vale dizer, estava ótimo. Mas os jornalistas não tinham o que perguntar e os convidados não sabiam o que dizer. Situação constrangedora. Talvez seja o caso de organizar um evento menor ou posterior às escolhas dos filmes, para se criar, pelo menos, a curiosidade de esclarecimento dos critérios de seleção dos filmes mais votados pelo público.
Primeira vez: com exceção das retrospectivas, das cópias restauradas e das sessões do vão livre do MASP, a Mostra este ano optou pela primeira vez por exibir filmes nunca antes exibidos, nem mesmo em festivais. De acordo com a matéria do crítico Cássio Starling Carlos, da Ilustrada, isso só fez valorizar o FestRio. Concordo em parte, ou seja, discordo do seu ponto de vista. Claro que seria muito saudável a Mostra trazer os filmes louvados nos demais festivais. Mas é bom lembrar também que a Mostra traz o pacote completo, dos mais conclamados às porcarias inquestionáveis. Os filmes do Almodóvar, presença garantida na Mostra, responsáveis pelas maiores confusões nas filas, esse ano ficaram de fora. Em contrapartida, a distribuidora preencheu outras salas vizinhas com um monte de pré-estreias de A Pele que Habito, talvez pra pressionar a organização do festival ou para concorrer diretamente com ela. O ineditismo não significa necessariamente um ganho de qualidade. Pra mim, a Mostra não ficou melhor nem pior em relação às edições anteriores.


Pontos fortes da Mostra:
Calor humano: nem o invernico e as baixas temperaturas fora de época, nem o gelo do ar-condicionado das salas, foram capazes de esfriar o encontro caloroso dos amigos cinéfilos. Pra mim, a Mostra é algo que vai além dos filmes. É um prazer reencontrar as pessoas que você só vê uma vez por ano ou acabou de encontrar na semana passada. A Mostra proporciona a troca de ideias, o convívio, o debate, o crescimento pessoal em torno de um assunto que se desdobra em vários. A Mostra é o encontro, seja por meio das afinidades e interesses, seja por meio do saudável conflito de opiniões.
Menos é mais: com certeza, o enxugamento de cerca de 40% dos filmes (de quase 500 pra quase 300) foi um progresso. Se os problemas apresentados se deram com essa quantidade, imagine então com um acervo maior. A Mostra abandonou um pouco aquele gigantismo e espero que mantenha essa tendência. Não apenas para controlar eventuais problemas de rotina. Um número menor de filmes faz com que eles sejam programados mais vezes, dando mais oportunidades aos espectadores. Com menos filmes, os cinéfilos podem respirar a arte, reter as cenas, dialogar com eles.
Retrospectiva: mais uma vez, a Mostra surpreendeu. Talvez seja o ponto forte do festival. A escolha dos homenageados prova que a organização é desprovida de preconceitos e estereótipos. Do radical ao clássico, é possível apreciar cinema na sua forma mais pura e mais ampla. As retrospectivas trazem um grande material para o entendimento da Sétima Arte no seu aspecto mais vivo, tanto no tempo como no espaço. Cinema de pesquisa, cinema de acervo, cinema de contemplação. É o cinema em perspectiva, longe das amarras e dos rótulos.
Herzog: não assisti ao outro documentário trazido pela Mostra, mas a exibição em 3D da Caverna dos Sonhos Esquecidos reergue a discussão em torno dos formatos e do que de fato é cinema comercial. A tecnologia em terceira dimensão utilizada neste impressionante documentário prova que o recurso não precisa ser necessariamente aplicado como truque de bilheteria e não se restringe aos gêneros mais acessíveis (terror, aventura, animação, filme-catástrofe, etc.). Aqui, o 3D tem uma função verdadeira: trazer aos nossos olhos a textura, as ranhuras, as estalactites de um mundo que o diretor ressuscita. A Caverna é um respiro, uma jornada pela descoberta. Dizer que se trata de uma obra-prima é pouco.
Cinema russo: Fausto, Elena, Sábado Inocente, Movimento Reverso. Fazia tempo que os cinéfilos não viam cinema de qualidade de um determinado país em peso num mesmo festival. Com a abertura de mercado, tende-se a acreditar que a arte dê aquela relaxada e que os realizadores deixem de produzir trabalhos que fazem jus à fama do passado. Não é o caso da atual Rússia escolhida pela Mostra.
Thiago Stivaletti: esse rapaz não só cresceu na Mostra, mas também cresceu junto com ela. De assessor de imprensa que cobria cabines, passou a exercer um papel fundamental no bom andamento do festival. A forma clara, sucinta e organizada de apresentar as informações mais relevantes ou cobrir eventuais lapsos de memória durante a coletiva de imprensa, a mediação nos debates do ciclo Filmes da Minha Vida, esses e outros eventos fazem do Thiago não apenas um assessor, mas quase um cônsul. Se continuar com essa mesma competência, aliada à sua simpatia e seu cavalheirismo de lorde inglês, esse moço vai longe...
Zzzzzzz: A Doença do Sono, Noites de Insônia, O Outro Lado do Sono, O Homem que Não Dormia. Conforme o diário da Vanessa Bárbara, na Ilustrada, esse ano foi propício para se dormitar nas salas. Esse foi o tema do ano. Nada como um revigorante cochilo para quem vê filmes por dúzia. Às vezes, compensa entrar na sala e descansar no conforto da poltrona nos filmes invisíveis da Mostra para recarregar energias para os filmes mais significativos e mais barulhentos, quando o sono torna-se quase impossível. Trabalhos soporíferos, todo festival tem. Que bom que a Mostra assumiu essa postura já nos títulos dos filmes.
MIS: ir no contrafluxo da muvuca costuma render boas experiências. Foi o caso da sessão de Sábado Inocente. Sala vazia, dominada somente por cinéfilos e críticos. Durante o filme, silêncio sepulcral.
Remaster: ouvi dizer que a primeira sessão de Taxi Driver foi bem complicada, e que o vermelho do filme estava tão apagado quanto o de balinha de padoca. Soube depois que foi um erro do projecionista, que trocou os padrões de conversão. Nas sessões seguintes, parece que a apreciação deste clássico foi de 100%, bem como de Laranja Mecânica na telona, sem as bolinhas tapa-sexo dos tempos da censura. Amarcord, 1900, O Leopardo, todos esses trabalhos ganharam nova roupagem e, ao que me consta, dignos de edição de colecionador, deixando ainda mais nítidas as marcas do cinema perfeccionista.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

35ª Mostra SP - Cut, de Amir Naderi (Japão, 2011)

Arte em carne viva

Embarcar na experiência de “Cut” é quase envolver-se em um ritual primitivo na busca pela essência. Afinal, o que é a metalinguagem senão um exercício ao encontro uterino de sua própria estrutura para a reflexão de questões maiores? Esse é o intróito do filme. Planos fechados, longos, sem diálogos, com raríssimas intervenções sonoras do ambiente. Pode-se dizer que se trata de uma ruptura aos padrões acelerados, nos takes e na ilha de edição, dos blockbusters de hoje. Cenas e planos que trazem a referência da nouvelle vague e dos discípulos deste movimento. Planos inertes de visitas aos túmulos dos cineastas consagrados, como Ozu e Kurosawa. É o rotulado “cinema de arte” falando sobre o próprio “cinema de arte”. Logo em seguida, vem a apologia. Um discurso inflamado do protagonista, com seu megafone, fugindo da polícia, escondendo-se nos escombros de prédios em ruínas de uma metrópole decadente do Japão. O personagem alardeia para os quatro cantos que o cinema atual se rendeu aos modelos comerciais de produção, que não existe mais cinema de autor, que cinema hoje é somente entretenimento, que a arte se rendeu aos mecanismos das bilheterias, entre outras frases prontas. E, para combater esse mercantilismo no qual a arte se transformou, exibe cópias de seu acervo em espaços alternativos, como sacadas de prédios, para os cinéfilos da resistência. Essa é a verdadeira essência da contestação de “Cut”. Tratar o cinema como uma obra itinerante, viva, orgânica, que invade espaços, dribla o poder, encaixa-se nas ranhuras dos arranha-céus para dialogar com seu público. Cinema que respira, cinema que transborda.

Num segundo momento, o filme dá uma reviravolta. A máfia japonesa sequestra o idealista para fazer com que ele acerte uma dívida deixada pelo seu irmão antes de ser assassinado pelos capangas da Yakuza. Sem recursos e sem alternativas, o personagem se vê obrigado a juntar renda num prazo mínimo para saldar esse déficit. Dá a cara a bater, ou melhor, vende ela. Rifa seu corpo para que os mafiosos possam dar-lhe socos, como se o banheiro da espelunca fosse a quermesse da pancadaria, com sangue no lugar da groselha em copinhos ou da barraca de beijos. É a roupagem “lado B” dos filmes igualmente vangloriados pelos cinéfilos, na linha de Takashi Miike. Nesse aspecto, guarda semelhanças com “Tokyo Porrada” por transformar a violência em espetáculo. “Cut” é a arte do corpo, o close nos limites entre a beleza da contemplação de Ozu e a fragilidade dos ossos de Shin'ya Tsukamoto. E esse fragmento do filme é que abre o campo semântico do título. Pode se referir tanto aos cortes secos da película, ao enxugamento dos excessos, quanto as feridas estampadas da carne.

Ainda que possa trazer esse respiro ofegante em prol da arte, “Cut” soa mais como um filme ingênuo e panfletário. Tarantino, por exemplo, sai-se bem melhor quando utiliza as mesmas referências na própria imagem e não no discurso. “Cut” conduz com competência o espectador na mesma paixão pelo cinema, mas isso é causa ganha. Há uma sequência interessante em que aparecem alguns nomes de filmes e de diretores consagrados, fora da diegese das cenas de porrada. Uma espécie de lista do diretor dos 100 filmes a se assistir antes de morrer. Sim, o cinema do passado, dos letterings, está sucumbindo perante os socos das imagens do cinema-violência atual. Mas essa relação doentia de paixão está muito mais presente nas intenções do que em seu organismo.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O câncer não é do Lula

Em primeiro lugar, quero começar o texto verbalizando todo o meu apoio ao ex-Presidente, Lula, e minha torcida para que sua recuperação seja rápida e que seu tratamento corra da melhor maneira possível. Agora, vamos aos meus comentários sobre o assunto.

Corre pelas redes sociais um montão de posts e mensagens criticando e repudiando a ironia que se faz em relação ao câncer da laringe do Lula. Pessoas que não admitem uma comparação entre os fatos, talvez mostrando a opinião de que um erro não justifica o outro. O artigo publicado no blog do Gilberto Dimenstein, inclusive, enaltece algumas características de governo do ex-Presidente. Antes de continuar, um parênteses: a maioria das reações sobre o estado de saúde do Lula clamava para que a figura pública mais importante do país nos últimos anos fosse internada em uma unidade do Sistema Único de Saúde, o SUS.

É claro que um assunto doloroso como esse deve ser tratado com toda a lisura e respeito. Dessa vez, acredito que o momento específico não é dos mais convenientes para se fazer piadinhas, correndo-se o risco de eu ser mal interpretado, perder amigos e a minha credibilidade alcançada. Também não torço para que o Presidente seja tratado com demoras e com sofrimento. Mas o que no fundo rege esses posts malditos, revoltados, é um sentimento coletivo de indignação que não pode ser ignorado e, tampouco, censurado. Talvez um ou outro tenha se concretizado de maneira abusiva, agressiva e pouco democrática, o que acho condenável. Mas, de fato, é mesmo triste conceber a ideia de que a elite, principalmente aquela que representa o povo, vá se tratar nos melhores hospitais da América Latina, frente à realidade paralela de um país que investe quase zero na Saúde, na Educação e na Segurança, pra não falar de outros serviços igualmente precários. É ingênuo pensar que o governo PT promoveu a igualdade dessa nação. E, quando uma figura pública aparece na mídia em seus carros blindados, com sua tropa de elite particular, ou que visita o SUS apenas em época de campanha eleitoral, isso só revela a ampliação do distanciamento entre quem precisa desses serviços e quem os torna viáveis e acessíveis. Se a exaltação dos comentários do Twitter, do Facebook e de algumas celebridades incomodou os correligionários e simpatizantes do partido de situação, ao menos ela trouxe à tona uma questão que revela a incoerência de governança desse Brasil das capitanias hereditárias. Se os serviços públicos são apresentados como os mais modernos e eficientes, se eles pretendem ser, numa atitude arrogante de quem assina os contratos, uma referência continental, por que então não podem ser usados por parlamentares? Esse que é, e continua sendo, o grande abismo brasileiro. Quando os internautas se manifestam com revoltas virtuais do tipo “veja o que é bom pra tosse”, “experimente do seu próprio veneno”, isso é visto por alguns como uma atitude descabida para o delicado momento. Eu acho que a verdadeira luta não é contra o câncer que assola os presidentes latinoamericanos, mas sim contra os lobbies dos planos de saúde, contra a negligência dos hospitais da periferia da Baixada Fluminense, dos erros médicos corriqueiros em hospitais de base. Sim, esse discurso é desgastado e o sistema que rege esse estado das coisas está falido. Mas é bom lembrar que foi essa “esquerda” que lutou pela igualdade de bens e direitos, pelo acesso de todos aos serviços de qualidade, e que os ganhos em modernidade devem ser compartilhados por toda a sociedade. Senhor Luiz Inácio da Silva, eu não quero que o senhor seja tratado pelo SUS, até porque EU jamais gostaria de ser tratado ali. E, já que essa comparação é lida como um desrespeito ao seu estado clínico, gostaria ao menos de saber então se eu e todos os indignados da internet podemos comparecer ao Hospital Sírio-Libanês. Apenas para fazer uma visita ao senhor.

Atitude digital

Manifesto público da Associação Brasileira de Cinematografia:

Atitude Digital

Recomendações Técnicas para a Imagem e o Som nas Mídias Audiovisuais Digitais

A ABC (Associação Brasileira de Cinematografia), que tem como associados os técnicos responsáveis pela criação da imagem e som do audiovisual brasileiro, vem a público manifestar sua crescente preocupação com a forma com que os seus trabalhos vem sendo apresentados ao público, e propor uma ampla discussão ao longo de toda a cadeia produtiva (técnicos, produtores, realizadores, finalizadores, distribuidores, laboratórios, imprensa especializada(1), autoridades e instituições do cinema).

Esta iniciativa ganhou urgência face aos problemas técnicos constatados pela ABC durante a exibição de muitos filmes nas últimas edições dos principais festivais e mostras realizadas no Brasil, e também na divulgação pelas emissoras de televisão, e tem por objetivo buscar, em conformidade com todos os envolvidos, a melhor forma de preservar a qualidade do audiovisual brasileiro, adotando padrões técnicos universais e aperfeiçoando os procedimentos ao longo do processo produtivo. Esse é um momento de acelerada transformação tecnológica - com todas as dificuldades e percalços que isso implica, e à ABC cumpre agir no sentido de assegurar ao público a melhor qualidade possível na apresentação da obra audiovisual.

A cadeia produtiva no foto-químico

Até alguns anos atrás o percurso das nossas imagens e sons entre o momento da sua captação e apresentação poderia ser descrito como:

Filmagem > Laboratório > Montagem > Finalização > Copiagem > Projeção

Tradicionalmente, era responsabilidade do Diretor de Fotografia dominar a técnica da filmagem, do laboratório processar a película dentro de padrões rígidos que garantissem a qualidade do registro fotográfico, e do Exibidor projetar os filmes também dentro de padrões que permitissem a reprodução fiel da imagem e som concebidos na origem por Produtores/Diretores, Diretores de Fotografia, Diretores de Arte e Equipe de Som.

Ao Diretor de Fotografia cabia indicar equipamentos e procedimentos técnicos necessários para a impressão no negativo da imagem concebida para o projeto. Era de sua responsabilidade garantir a obtenção de uma imagem de qualidade compatível com o grau de investimento financeiro e artístico de todos os envolvidos no processo de produção e criação.

Para garantir a preservação da qualidade da imagem e som foi necessário desenvolver uma metodologia e criar padrões técnicos de referência para todos os processos. Diretores de Fotografia, Técnicos de Laboratório e de Projeção se pautaram por eles visando garantir a excelência do espetáculo cinematográfico.

A revolução digital trouxe a falsa esperança de que a qualidade do original seria integralmente preservada ao longo da cadeia de produção. Além disso, o digital inaugurou a facilidade de acesso (preço e acessibilidade), aos equipamentos (hardwares e softwares) por parte dos produtores e técnicos .

Com o desenvolvimento da tecnologia digital, que multiplicou formatos, mídias e codecs (codificadores/decodificadores), surgiu uma enorme diversidade de caminhos para as nossas imagens, da captação até a exibição. Expandiram-se as possibilidades criativas e com isso tornou-se imperativo o estabelecimento de uma metodologia e de padrões rígidos como a que havíamos alcançado no foto-químico. A facilidade das interfaces amigáveis, de certa forma mascara a complexidade crescente dos equipamentos e processos. Um erro numa fase intermediária muitas vezes só aparece quando da exibição da peça finalizada.

A partir de 1999 a tecnologia DLP Cinema (Digital Light Processing), foi aprovada pela indústria cinematográfica norte-americana, sem que entretanto fossem criadas normas técnicas ou padrões definidos para regulamentar o que passou a ser chamado de Cinema Digital. Na ocasião ficou estabelecido que sob essa denominação estariam aquelas exibições realizadas com uma resolução espacial superior a 2K (2 mil pontos por linha). Seis anos se passaram até que a DCI (Digital Cinema Initiatives), um grupo formado a partir das majors de Hollywood, publicou em um documento abrangente estabelecendo as especificações técnicas para o cinema digital com o intuito de estabelecer limites de qualidade tão altos quanto o filme 35 mm(2). Esta iniciativa foi encampada pelo meio cinematográfico e pela SMPTE (Society of Motion Picture and Television Engineers) que mais tarde criou um padrão específico para atender tais requisições.

No Brasil, com a alegação de que a produção independente, que hoje migrou maciçamente para o digital, não teria condições de gerar rendas para cobrir os custos da instalação de salas com o padrão DCI, foi adotado informalmente um "padrão brasileiro" que reuniu elementos de hardware e software já existentes no mercado para atender a um modelo de negócio considerado factível pelos empresários da distribuição e exibição digital. Este padrão está sensivelmente abaixo daquele adotado mundialmente para o cinema digital. Como profissionais da imagem e do som sabemos que o aumento de variáveis no processo digital traz junto o crescimento da probabilidade de erros. Daí a necessidade de se aumentar o controle e não diminuí-lo como muitos erroneamente acreditam, e de adotar normas universais que venham disciplinar a cadeia produtiva do audiovisual.

O registro da imagem cinematográfica e do som implica investimento significativo de capital, criação artística e conhecimento técnico. Existe um processo de construção destes registros a partir de conceitos concebidos pelo núcleo criativo que devem ser preservados até sua apresentação seja ela em salas de exibição, televisores, computadores pessoais ou dispositivos portáteis. Ao escolhermos nosso equipamento de captação estamos definindo uma série de especificidades para nossas imagens que devem ser preservadas ao longo do caminho através de um workflow adequado, testado e aprovado pelo produtor.

Outro aspecto que preocupa a ABC nesse momento de transição tecnológica, é a ausência de cursos de atualização, reciclagem e formação de projecionistas e técnicos em projeção digital. Por outro lado, o sucateamento das sala de exibição em suporte foto-químico, consequência da ausência de investimento numa tecnologia cada vez mais considerada como em vias de desaparecimento, levou a qualidade da exibição nas salas de cinema ao patamar mais baixo que se tem notícia até hoje entre nós.

Nesta conjuntura, a ABC manifesta sua preocupação com o acúmulo de erros e a falta de controle de qualidade em todas as etapas do processo, especialmente na masterização e na exibição, o que compromete o trabalho de todos os envolvidos na criação da imagem e do som (Diretores de Fotografia, Diretores de Arte,Montadores, Figurinistas, Tecnicos de Som, Mixadores, Editores, etc).

Como ação inicial, estamos estabelecendo um Grupo de Trabalho dentro desta Associação, com o objetivo de preparar e divulgar as Recomendações Técnicas para a Imagem e o Som nas Mídias Audiovisuais Digitais; documento que descreverá em detalhe os procedimentos mínimos que assegurem a preservação da qualidade - com a reprodução fiel da imagem e som, da captação até a recepção final da obra.

A experiência do espectador diante das obras audiovisuais é nosso bem maior. Deve ser preservado e aprimorado. Para tanto, convidamos a todos os interessados a se unirem à ABC neste esforço.

São Paulo , 28 de Outubro de 2011

Presidente Vice-Presidente Secretario Tesoureira

Carlos Pacheco Adrian Teijido Rodrigo Monte Maritza Caneca

Membros do Conselho

Affonso Beato, Alziro Barbosa, Carlos Ebert, Henrique Leiner,

Jacob Solitrenick, Jose Francisco Neto, Jose Roberto Eliezer,

Lauro Escorel, Lito Mendes da Rocha. Lucio Kodato,

Marcelo Trotta, Nonato Estrela, Pedro Farkas, Roberto Faissal, Tide Borges.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

35ª Mostra - Nota de esclarecimento: projeções digitais

A 35ª Mostra gostaria de esclarecer os recentes problemas em projeções digitais em algumas sessões do evento.

A organização do festival tem a maior preocupação com suas projeções e seu público. Ao convidar um filme para fazer parte da sua programação, ou ao selecioná-lo, a Mostra contata os seus produtores e fica a cargo deles a decisão sobre o formato do filme a ser enviado. Cada vez menos os produtores se dispõem a produzir cópias 35mm, mais caras que as cópias digitais. Mesmo alguns filmes clássicos exibidos na Mostra em suas apresentações especiais foram restaurados digitalmente e nos são enviados no formato DCP com alta resolução (2K). Como foram apresentados em Cannes, Berlim e outros grandes festivais.

Devemos esclarecer que a Mostra não dá preferência aos formatos digitais, e sim às cópias 35 mm, uma vez que elas têm mais possibilidades de exibição nas salas que fazem parte do circuito da Mostra.
Mas neste momento vivemos o impasse da digitalização do cinema e das salas de exibição. E, como apontam reportagens recém-publicadas nos grandes jornais, os mercados europeu e americano encontram-se num estágio muito mais avançado do que o brasileiro no que se refere ao equipamento digital das salas de cinema.

Neste ano, cerca de 50% dos filmes que confirmaram sua participação na Mostra vêm em formato digital – por opção dos produtores, e não do festival. Para esta edição, houve a preocupação de fazer uma parceria com o Polo Cinematográfico de Paulínia para se ter mais projetores 2K que exibem DCP. Com o aluguel de três projetores DCP, o número de salas que exibem o formato durante o evento aumentou de três para seis. Ainda assim essas seis salas se deparam com uma grande demanda de filmes desse formato.

A direção da Mostra também teve a preocupação de não mais exibir DVcams para melhorar a qualidade da projeção. Os filmes internacionais recebidos em formato digital são encodados (convertidos) no padrão de exibição Mobz – os nacionais são encodados diretamente pelas produtoras – e são exibidos por ela e pela Auwe, as duas únicas empresas de projeção digital que operam nos cinemas da cidade.

A organização da 35ª Mostra está ciente dos problemas ocorridos nas projeções digitais e está colocando todo o seu empenho em resolvê-los junto aos fornecedores, exigindo um padrão de excelência que faça jus a nosso público.

Made in China

Muito se fala sobre a fragilidade econômica mundial pós-crise, mas o que eu fui constatar hoje é outro tipo de fragilidade. Já fiz isso algumas vezes, todos já fizeram. Entrar numa dessas lojas genéricas que estampam um cartaz feio, onde se lê “tudo a partir de R$ 1,99”, algo assim. Só que o máximo que a gente faz, na maioria das vezes, é bisbilhotar, olhar de longe com aquele olhar periférico sobre tal estabelecimento. Num caso ou outro, comprar algo mais à mão, de preferência numa gôndola próxima a saída e àquele fiscal de plantão, do lado de fora, atento a todos os movimentos. Hoje foi diferente. Fiz uma espécie de pesquisa de campo, de escavação. Entrei numa dessas lojas populares de esquina, pejorativamente apelidadas de “ching-ling”, pra tentar entender um pouco melhor por que o tal BRIC é a pedrinha no sapato da outrora soberana e atualmente desmoronada economia norte-americana. Como se fosse um detetive, fiz uma investigação, uma perícia minuciosa em cada um dos estreitos corredores do estabelecimento comercial. Lá se tem de tudo... de inútil. A não ser que você seja um consumidor inveterado de baralho, copo de plástico ou luminárias decoradas. Difícil imaginar que cada um dos artefatos será utilizado mais do que três vezes. E é curioso como essas lojas não têm cara, não têm identidade alguma. Num mesmo concorrido espaço, você pode encontrar desde um grampeador até uma concha de sopa. Esqueça a durabilidade, a exigência dos padrões técnicos, a obediência às normas métricas e científicas observadas no processo industrial de fabricação. Só de olhar, é bem capaz de você conseguir entortar alguns objetos. É assim que a China vem ganhando o mundo: oferecendo produtos com preços lá embaixo e qualidade mais embaixo ainda. Essas bugigangas são tão efêmeras quanto o estado eufórico de prosperidade dos países ditos emergentes. O próprio desconforto do lugar te obriga a fazer uma visita apressada, no máximo uma investida ao soslaio em algum artigo mais exótico. Tudo é muito amontoado, sem qualquer criério de ordem, organização, gênero ou espécie. Senti-me dentro de um confuso e abarrotado caldeirão de paella, a ser confundido com a paisagem caótica da espelunca. Mas acho saudável esse tipo de peregrinação. De vez em quando me considero um hipócrita ao conversar ou divulgar marcas e produtos de outra realidade social. Entrar numa dessas lojas é como estabelecer aquele contato próximo com o povo, tipo o aperto de mãos e o beijinho na testa das crianças que os políticos fazem em época de campanha eleitoral. A loja em questão em nada lembra aquela arrogância perfumada de shopping center. Tudo é feito e pensado para você entrar, comprar e sair rápido. E nem pense em tropeçar próximo a alguma prateleira. Lá você pode avistar um informe em papel sulfite A4, escrito em caneta hidrocor, bem claro e objetivo, sem a delicadeza das meias-palavras: “quebrou, pagou”.

Do mito à Mostra

Recentemente, escrevi um artigo apostando em uma reciclagem retrô da Mostra, que, por todos os motivos pessoais e pela perda inestimável de seu criador, encontrou campo fértil para se humanizar. Em seu recente texto publicado no blog, o crítico Zanin Oricchio pede essa humanização e o exercício compreensivo da cidadania a todos os cinéfilos que fingem não ver os problemas pelos quais a organização do festival vem passando. Concordo em parte com meu colega e amigo. De fato, a Mostra é muito maior do que o consumo de um produto, representado por um ingresso picotado. Mas, assim como em qualquer segmento de atividade, os profissionais envolvidos (humanizados ou não) precisam se adequar às novas épocas e aos novos processos. E o desfalque do líder do time, por mais comoção que possa gerar, não se justifica por si só para esse congelamento no tempo. De nada adianta, por exemplo, continuar solicitando ao almoxarifado uma fita corretiva, em tempos de tablets e netbooks.

Digo isso porque, salvo exceções, venho encontrando um distanciamento cada vez maior entre as expectativas de começo de maratona e os resultados que ela vem proporcionando. Os fatores são inúmeros, expostos ou não. Chegamos a uma cifra quase infinita de cancelamentos de sessões, alterações sem prévio aviso, atrasos, confusões. Se fizermos um paralelo entre a Mostra e outros festivais congêneres, igualmente nababescos e desengonçados, veremos que ela não é muito diferente do Rock in Rio, da Virada Cultural, das maratonas teatrais ou de qualquer outra olimpíada artística de grande porte. Não estamos ainda preparados para abraçar toda essa grandiosidade, tanto na sua proposta quanto nos seus efeitos.

No caso da Mostra propriamente dita, andei percebendo muitos problemas em relação aos formatos dos filmes. Como alguns já sabem, a esmagadora maioria dos filmes é apresentada em digital. Mas hoje, não basta apenas fazer a divisão dicotômica película/digital. Assim como o filme de rolo comporta diversas bitolas (16mm, 35mm, 70mm), o digital também apresenta diversas espécies, cada uma com sua idiossincrasia e suas limitações específicas. E nem todas as salas estão equipadas com projetores compatíveis com cada formato. Isso também ocorreu no Festival do Rio. E é bom lembrar que recentemente o circuito Arteplex trocou de empresa fornecedora, encerrando seu contrato com a Auwe Digital. Ou seja, todos ainda estão se adaptando às necessidades do momento. Agora há pouco, acabei de receber um e-mail da assessoria de imprensa justificando que o filme do Herzog não será exibido em alguns horários porque a empresa de envio do material não é autorizada pelo festival, o que impede o rastreamento do objeto. Enfim, estamos nos deparando aos poucos com uma gama complexa de restrições e imprevistos, decorrentes da modernidade, da tecnologia, de um modelo econômico que impôs estas regras sem consultar a sociedade.

Tudo isso afeta, é lógico, a correria do dia a dia dos cinéfilos. Numa espécie de efeito-dominó, um probleminha técnico da primeira sessão de uma determinada sala acaba afetando toda a programação corrente da data. Em poucos filmes a que assisti, já presenciei testes de áudio, filme sem legenda, trechos sem som, interrupções, sequências erradas (algo equivalente ao jurássico “rolo trocado”), isso sem falar naquelas tremedeiras de cena típicas de DVD pirata. Vale ressaltar que o filme da Naomi Kawaze está com uma qualidade muito boa, mas ele é um oásis no deserto. Para compensar, outros tantos estão beirando uma experiência sofrível de apreciação.

Não posso ser categórico e falar por todos, mas muitos de meus amigos cinéfilos são suficientemente “humanizados” e sensíveis à causa. E estão condolentes com esta situação e não abrem mão do prazer cinéfilo. Mas certas questões exigem muita paciência. Afinal, vale ou não vale a pena enfrentar o desconforto das filas, o estresse dos horários apertadinhos, a sonolência, a fome, o trânsito, a chuva, e, ao se sentar à poltrona (ou no chão, em alguns casos mais concorridos), deparar-se com tudo isso? Confesso que é da nossa natureza querermos ser os primeiros, os pioneiros das descobertas, e nos dirigimos à Mostra como quem precisasse fincar a bandeira na Lua. Mas muitos filmes aguardados já estão comprados pelas distribuidoras do país, alguns deles com datas previstas de estreia em circuito. Tenho minhas dúvidas da relação custo/benefício que a Mostra nos traz. Embora com outra roupagem, os problemas são antigos. Entretanto, continuamos apostando nela. E sofrendo com nossa ansiedade e com nossas angústias. Esse é o nosso combustível, por mais incoerente que possa parecer.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Leon e a Mostra

A matéria da Daniela Thomas publicada na Ilustrada do dia 17 de outubro é uma merecida homenagem ao fundador da Mostra de Cinema de São Paulo, Leon Cakoff. Um tributo necessário a quem foi um herói da resistência: lutou contra a censura, a ditadura e, principalmente, ao pensar pequeno da maioria dos distribuidores nacionais, acomodados em suas zonas de conforto para lançar somente filmes mais acessíveis e pouco questionadores, como as aventuras e ações em 3D, as insossas comédias românticas, e por aí vai. Daniela deve ter seus motivos pessoais, talvez tenha nutrido uma relação muito próxima e afetiva com Cakoff. Mas não creio que o óbito do mentor da Mostra seja argumento suficiente para um artigo tão hiperbólico, quase fanático, construído e enaltecido com a descrição de um empurra-empurra mas com a louvação monumental de um obelisco. Prefiro deixar registrado um epitáfio mais justo, passionalmente mais comedido como é de minha natureza, mais calcado na importância da Mostra para a história da Sétima Arte em São Paulo e na qualidade de seus pré-lançamentos e suas retrospectivas.

Como alguns poucos sabem, minha mãe fez uma espécie de voto de protesto e deixou de frequentar a Mostra, questão de uns 3 anos pra cá. Por mais compreensível e justificável que fosse o motivo alegado pelos organizadores, a atitude prepotente de coibir sua presença num determinado tipo de sessão, praticada por um imberbe e incompetente assecla, criou um mal-estar sem precedentes para quem tanto apoiou a causa e ajudou a divulgar o evento. Num misto de adesão ao movimento, aliada à minha falta de tempo, também diminuí consideravelmente minha presença nas sessões da Mostra. Mas não é o momento mais adequado para nos lembrarmos de coisas ruins. A Mostra foi um marco fundamental na quebra de paradigmas em relação às escolhas de filmes a ser lançados. Melhor reter na memória o autógrafo que minha mãe guarda do então garoto Quentin Tarantino, o tagarela hiperativo que carregava debaixo do braço o seu longa de estreia, Cães de Aluguel. Ou o encontro com Alexander Sokurov. Ou o momento em que ela subiu ao palco e entregou o troféu a Marco Tulio Giordana por seu filme Os Cem Passos. Coisas assim. Minha mãe cansou de dar entrevistas e aparecer em alguns veículos de comunicação, mas infelizmente a abordagem do fato, na maioria dos casos, se deu pelo aspecto sensacionalista da cisa. Um equívoco, a meu ver. O motivo da minha mãe ver os filmes da Mostra não é aquela brejeirice de escapar dos afazeres domésticos e se esconder em uma sala de cinema, como se estivesse cabulando aula. Pelo contrário. O que leva minha mãe aos filmes é o encontro. É poder ver, num único dia e em um único lugar, as culturas, as línguas, os costumes e os traços complexos e multifacetários do ser humano. E bons exemplos nunca faltaram. É justo lembrar, a Mostra nos trouxe o prazer de desvirginar Haneke, Kiarostami, Dardenne, Assayas, Gitai, entre tantos outros. Contudo, coincidência ou não, pelos fatores acima enumerados, mais a grandiosidade que o evento adquiriu, a Mostra aos poucos foi deixando de ter a minha cara. Perdi completamente aquela ansiedade, aquele frisson incontido pelos tão aguardados 20 dias de um estado simultâneo de deleite e fadiga. Quanto maior ficou, mais visível ficaram seus sinais de desgaste. No decorrer dos anos a Mostra, é notório dizer, infelizmente sofreu muito com sua desorganização, com suas falhas técnicas, atrasos, retenções na alfândega, cancelamentos, etc. Isso sem falar na péssima qualidade de exibição de alguns filmes, principalmente aqueles que rodam os festivais do mundo inteiro e nos chegam em uma tosca versão “demo”. E, quando um dia foi dito, em coletiva de imprensa, que o público pagante representava uma porcentagem mínima para arcar com os custos totais do festival, ficou claro esse distanciamento cada vez mais acirrado dos cinéfilos e uma preocupação ainda maior em agradar a interesses de patrocinadores e mecenas. A Mostra foi perdendo seu cromossomo genético da vanguarda, do garimpo, da descoberta do inédito. Deu-se a entender, com a calvície e o passar dos anos, que o contestador Leon entrou no sistema. Um sistema mais centro-esquerda, cinematograficamente falando, mas ainda assim um sistema, regido por regras e interesses próprios. O então rebelde da tirania promovida pelo AI-5 passou a ser meramente um viabilizador cultural, um encurtador de distâncias, um mediador de um debate que deixou de existir.

Quer queira quer não, a Mostra estabeleceu um pacto com a cidade, com o circuito dito alternativo, com o cinéfilo paulistano. E, como todo pacto, existe a solidariedade na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Não deu para ficar incólume ao texto do Cakoff publicado na Folha no começo do ano, um artigo com cara de despedida, uma espécie de testamento jornalístico-cultural. Ali, o organizador tornou pública sua doença, sabiamente não dissociada da Mostra. Difícil dizer se este câncer foi uma disfunção citológica, uma vontade divina ou a somatização do fardo de se carregar nas costas o maior evento cinematográfico de São Paulo.

Dada a importância deste evento, seus realizadores foram se tornando não menos importantes. Natural, até. Negociar com investidores, posar ao lado de autoridades civis, dar entrevistas, tudo isso ajudou a inflar egos na proporção de suas responsabilidades. Em situações públicas, por exemplo as coletivas de imprensa, a aparição midiática do casal era o reflaxo do brilho e do glamour que o cinema proporciona. Leon e Renata surgiam minutos antes da cerimônia se iniciar, algo que tomava as mesmas dimensões do tapete vermelho do Oscar. Entretanto, por uma obra do destino, na última coletiva, a esposa de Leon e coorganizadora da Mostra, Renata de Almeida, esteve ali, próxima aos jornalistas, durante quase todo o receptivo. Naquele dia, Leon já estava internado e, por conta desse infortúnio, a Renata estava visivelmente abalada, ameaçando o tempo todo despejar sua primeira lágrima em virtude de sua aflição e ansiedade. É a primeira vez em que ela, depois de muitos anos, comanda sozinha este barco. Bem no ano em que o Brasil tem uma mulher à sua frente de governo. E, talvez por uma soma de fatores, senti a Renata muito mais próxima, mais descalça, mais orgânica. Os agradecimentos a toda a equipe foram sinceros e não protocolares. E, provavelmente devido a toda essa vulnerabilidade, a essa fragilidade humana, ouso arriscar um palpite de que a Mostra tem tudo pra ser uma das melhores dos últimos anos. Foi falado que, por uma decisão ainda do Cakoff, que a Mostra iria abandonar um pouco seu gigantismo megalomaníaco. Isso, em termos práticos, diz muita coisa. Afinal, é mais fácil domar 300 leões do que quase meio milhar deles. O risco da coisa fugir do controle cai um pouco. Com um número mais restrito e a opção de se exibir somente filmes inéditos (tirando as retrospectivas), o cinéfilo pode encontrar mais tempo para ver, digerir, depurar e reter os filmes. Que é a principal característica de um festival. Este ano, a Mostra tá mais para um menu degustação do que para um rodízio, o que é melhor e mais saboroso para todos. Mas não é só por isso. Retraindo-se a quantidade de películas e estipulando-se uma seleção mais criteriosa de seus títulos, a Mostra encontra maiores condições de resgatar seus valores mais antigos e mais intrínsecos, preteridos por essa pressa efêmera de correr atrás do próprio rabo. Seria um saudável paradoxo ver nessa Mostra o diálogo com o mundo atual, em sintonia com a reciclagem retrô de posturas das edições passadas. Talvez tenha sido esse o maior legado do Cakoff: fazer com que voltemos a experimentar os filmes na tentativa de descobrirmos a nós mesmos, como fazíamos no começo. O resto é grandiloquência panfletária.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Estupro à democracia

“Sabe qual é o cúmulo da mira? Transar com uma grávida e acertar o ânus do feto”. Essa piada eu conheço faz muito tempo. E já ouvi algumas vezes, sem qualquer tipo de represália ou algum esboço de reação adversa. É uma anedota típica de roda de amigos. Um pouco indecente e de gosto duvidoso talvez, mas não se trata de um texto imoral ou proveniente de uma visão de mundo torpe e abjeta. Pra você ter uma ideia, foi MINHA MÃE quem me contou essa piada pela primeira vez. Ou seja, não é propriedade restrita e limitada dos comediantes mais, por assim dizer, transgressores, malditos ou simplesmente boca-suja.

Recentemente, o comediante e apresentador Rafinha Bastos fez uma piada nessa linha ao vivo, durante o programa CQC, e o alvo foi a cantora Wanessa Camargo. Embora com palavras mais polidas do que a piada original existente, o tom “irreverente” foi mais ou menos o mesmo. Mal sabia a pessoa mais influente do Twitter que estaria mexendo num vespeiro. A cantora se ofendeu. Seu marido, empresário de uma agência, e Ronaldo Fenômeno, amigo do empresário e garoto-propaganda de uma operadora de telefonia móvel, também se ofenderam. Marco Luque, companheiro de Rafinha no programa e também garoto-propaganda da mesma operadora do jogador, repudiou o comentário infeliz. Resultado: cedendo às pressões, a Rede Bandeirantes de televisão, numa atitude hipócrita e covarde, decidiu afastar o apresentador por tempo indeterminado. Bastou uma ligação telefônica (de Claro para Claro?). Ele está de molho, está de quarentena, aguardando um parecer de uma escala maior do poder.

Junto com outras notícias que enfatizam a desgraça, como as rebeliões na Síria, a crise na Europa, a alta do dólar, a soltura do atropelador assassino e seu carro de luxo e as contínuas greves, essa também foi uma das mais comentadas. Rafinha, de ídolo dos nerds, passou para o banco dos réus deste mesmo eleitorado. De capa da Info, da RG ou da Rolling Stone, que enalteceram seus atributos físicos e intelectuais, passou a figurar, em questão de semanas, na capa da Vejinha, sob a alcunha de “O rei da baixaria”. Sua piada até pode ter sido um soco no estômago, um chute no ventre da famosa prenha. Mas é certo dizer que Rafinha foi nocauteado, sem nenhuma chance de se defender. Quem saiu perdendo? Ora, todos nós. Esse comentário apressado teria sido uma ótima oportunidade para a sociedade promover debates sobre a ética do humor e sobre seus limites e critérios. O apresentador deveria, no mínimo, ter um espaço condizente com seu maldizer para se retratar publicamente. Que nada. Vivemos no país da censura velada. A atitude da emissora, evidentemente, reflete muito mais a obediência servil a um jogo de interesses de quem tem influências na mídia do que a punição por uma falta de decoro propriamente dita.

Assim que soube da notícia do afastamento dele, no domingo à noite, publiquei a matéria no meu perfil do Facebook. As primeiras reações, talvez as mais imediatas e menos elaboradas, foram de amigos meus (prefiro não cometer a indelicadeza de citar nomes) pelos quais exerço uma profunda e sincera admiração. Pessoas com uma invejável erudição, clareza de raciocínio e capacidade de organizar ideias. Amigos de longa data, que me concedem a liberdade e me deixam suficientemente confortável para eu manifestar opiniões contrárias quando for o caso, se for o caso. Não quero fazer generalizações precipitadas, mas, coincidentemente, ambos regem uma preferência ideológica mais de acordo com o pensamento de esquerda, se é que isso ainda existe com a mesma coerência dos tempos de liberdade e luta. Talvez numa resposta movida mais pela urgência e pela emoção do que pela razão (talvez!), a primeira reação que vejo é a de que, na opinião deste cordial colega, todos os integrantes do CQC poderiam ser expulsos para o programa acabar de vez, e que ele (o CQC) não faria a mínima falta. Não foram exatamente essas as palavras, mas o sentido foi algo assim. Bom, é notória a precária qualidade dos programas de TV, isso ocorre faz muito tempo. Mesmo eu sendo assinante de TV a cabo, a quantidade de programas que vejo não passa de meia dúzia. Da mesma maneira que meu amigo se expressa, eu também não sinto a mínima falta dos humorísticos rasos, dos reality shows, das novelas açucaradas, das mesas-redondas, dos programas matinais, dos noticiários sensacionalistas, dos seriados enlatados. Mas, no meu entender, não vejo que a solução seja a eliminação pura, simples e rápida dessas porcarias que emanam dos eletrodos dos tubos magnéticos e empesteiam nossos indefesos neurônios. Aniquilar a televisão atual com um tiro letal de bazuca pode até erradicar seus efeitos nocivos, mas dificilmente irá chegar à causa do problema. E, mesmo que as intenções do inofensivo comentário madrugal de um post sejam apenas fazer rir ou polemizar sem um grande contexto, elas revelam no fundo uma súbita vontade tirana. Outro comentário que recebi, de uma amiga pela qual nutro uma admiração maior do que nossas afinidades, dizia que, dada a quantidade de merda que o Rafinha fala, a conta até que saiu barato. Algo nessa linha. Ou seja, seu temporário período de carceragem até que é um castigo justo pelo mal que ele faz à humanidade. Respeito ambas as opiniões e tenho certeza de que existe um embasamento lógico e elaborado por trás delas. Mas não posso deixar de ficar indignado ao perceber que o confinamento, a reclusão, a iconoclastia pura e simples, tenham vindo de pessoas com posições ideológicas que, historicamente, derramaram sangue pela democracia e pela liberdade de expressão.

Outro texto que me chamou a atenção, nesse mesmo grupo de comentários do post em questão, foi o link do blog da professora-doutora Lola Aronovich, Escreva Lola Escreva, intitulado “Politicamente incorreto não é transgressor, Rafinha”. No texto, a professora defende o uso do politicamente correto, algo condenado por quem se diz subversivo. A professora tem razão em alguns aspectos do artigo. Não podemos tratar o estupro, por exemplo, um assunto sério e traumático, um crime hediondo, com a leviandade e a expiação de culpa de quem simplesmente conta uma piada e sai andando. Lola cutuca na ferida ao apontar um paradoxo: se o humorista diz que fala “as verdades do cotidiano”, como é que ele pode rapidamente se justificar de uma polêmica saia-justa alegando que o que falou “é apenas uma brincadeira”, encerrando a questão e colocando o assunto no nível utópico e intangível da inverossimilhança? E mais: se a professora optou por trocar o “aleijado” pelo “portador de deficiência física”, o problema é dela. Ou o “mongolóide” pelo “possuidor de síndrome congênita da Trissomia do Par 21”. Ou, ainda, o “burro” pelo “cidadão dotado de reduzidas e obtusas faculdades mentais”. A professora tem plena consciência de que, ao substituir palavras que venham a ter uma conotação pejorativa, possa se distanciar do repertório popular. Não vejo problema algum, é um direito soberano e irrevogável. E se ela acha mais conveniente substituir o “humor negro” pelo “humor afro-descendente”, fique à vontade. Entretanto, como ela bem sabe, o humor ácido, corrosivo e sarcástico não vive às custas dessa boa educação no palavreado. E o que me incomodou no artigo foi a maneira como ela ataca alguns comediantes do CQC, principalmente os mais atingidos pelo mal-estar que geram com seus comentários. De cara, a blogueira confessa que pouco conhece esses personagens. E, ao que me parece, não faz questão alguma de conhecê-los, embora sustente suas críticas a eles mesmo navegando nesse perigoso vazio. No decorrer do texto, ela trata essas figuras públicas como “um tal de Danilo” e, mais pra frente, “Rafinhas e afins”. Não é a ironia do desprezo que dará sustentação ao seu ponto de vista. Eles não são pessoas quaisquer, surgidas no meio de diversos caça-talentos cuja razão social é a falcatrua. Embora o CQC vem demonstrando sinais de desgaste, isso é notório, é bom lembrar que o programa foi um dos pioneiros a invadir gabinetes de deputados, a exigir satisfações dos representantes do povo que ignoram o povo. Num determinado contexto histórico, político e televisivo, o CQC inovou. E recrutou comediantes da melhor espécie. Hoje o programa estampa um tipo de humor osteoporótico, visivelmente corroído, que trocou a irreverência pela caricatura de si próprio. Mas não é por isso que Lola pode afirmar que o humor stand-up é tudo uma coisa só, um balaio de gatos oriundos de uma geração espontânea, como se os “afins” do Rafinha fossem um bando de cordeiros seguindo seu pastor. A única “afinidade” que tenho com o Rafinha é a de subir aos palcos e dar a cara para bater. Entre outras coisas, estou me iniciando no stand-up, nem sei ainda se por hobby, vocação ou como um plano de previdência. Estou para o stand-up, metaforicamente falando, assim como o feto da Wanessa Camergo está para o mundo. E não pretendo, em hipótese alguma, acomodar minha comédia na zona de conforto do clichê ou das saídas fáceis e situações genéricas. Quero, e vou lutar pra isso, me destacar no mercado pela diferenciação. E ficaria muito ofendido se alguém me tratasse como um “afim” a mais de outro comediante, quem quer que seja. Claro que existem tácnicas comuns e estilos que inspiram gerações. Mas Lola dá a entender que os humoristas se reúnem periodicamente, como se estivessem num Concílio de Trento, e lá decidem as piadas que todos vão contar, com os mesmos recursos e as mesmas doses de preconceito.

O Brasil é um país emergente. Sediar uma Copa do Mundo, emprestar dinheiro pra Europa, fazem do Brasil um país emergente. E, da mesma forma, o povo brasileiro também é emergente. O Brasil hoje é um país que “se acha”, e isso, embora refresque nossa auto-estima, cria um problema sério para o desenvolvimento. Somos relativamente estáveis no bolso, mas continuamos pobres de espírito. Ainda temos muito o que aprender no que diz respeito à liberdade de expressão, à luta por direitos, ao debate, ao esclarecimento. O humor stand-up não deixa de ser, ainda em última instância, a nossa forma orgânica de dialogar com o mundo e com esse caos, nem que seja ¡à base do riso. É por meio das mais absurdas mentiras que chegamos às mais contundentes verdades. E quem conhece o Danilo (Gentili) sabe que ele já fez stand-up falando sobre o Sarney e a censura. E quem conhece o Rafinha sabe também que ele não é um moleque intempestivo e inconsequente. Ele já gravou uma série de episódios em que testa piadas novas e pede conselhos aos amigos de profissão. Como se fosse um raio-X, ele mostra no vídeo os bastidores da comédia, um constante exercício de tentativa e erro. É essa a verdadeira função do comediante. Socar, socar, socar. Cair, levantar-se. Pedir desculpas pro adversário? Quem sabe. Mas eu tô meio cansado das lutas mornas, das piadas voláteis, das generalizações. E fico muito triste com a resolução que deram ao caso Rafinha. Já que o Brasil pode virar um credor em relação aos países europeus, poderia pelo menos pegar como moeda de troca a ousadia da Holanda, um país que coloca em prática questões avançadas pra ver depois a reação da sociedade e, se for o caso, retrair um pouco. É desse tipo de irreverência, de preparo e de amadurecimento que precisamos. Podemos até ser a bola da vez mas, em relação à comédia stand-up, ainda somos da época e dos costumes dos talibãs.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Cutucada inútil

Tem muita coisa que não entendo, mas também nem sei se quero entender. A velocidade das informações hoje em dia, por exemplo, tá mais com cara de pressa do que rapidez. Pensar que essa agilidade e efemeridade de conteúdo pode gerar transformações sociais e culturais, no entanto, é dar um passo maior do que a perna. Terrível engano. Eu me vejo num contexto social muito mais estanque do que, por exemplo, de 20 anos atrás. A capacidade de proliferação da mensagem é ilimitada, fato. Mas a capacidade de retenção é limítrofe. E não param de espocar paradigmas que desafiam nossa inteligência, nesse sentido. O Youtube, por exemplo, é uma ferramenta dinâmica para compartilhar imagens. Teria tudo para ser, em princípio, uma gigantesca biblioteca de registros do cotidiano ou uma compilação das mais variadas vertentes de exploração das artes visuais. Mas a realidade webcameragráfica não mostra exatamente isso. Até tem um vasto acervo de videoclips, programas de TV, etc. Entretanto, o que se sobressai é algo tão fútil que foge à minha razoável compreensão. Apenas para citar alguns exemplos do que foi recentemente considerado “fenômeno” do Youtube, temos a Banda Mais Chata da Cidade. Temos o travesti Luisa Marilac em uma piscina de hotel, tomando “uns bons drink” e falando que deu a volta por cima. Temos um moleque que se diz “polêmico” ao mostrar seus mamilos. Sim, ele só faz isso. E, ainda mais recentemente, temos uma pérola saindo do forno que já virou febre no que se refere à quantidade de acessos: um bêbado, travado de tão alto seu grau de alcoolismo, tentando achar a chave do carro. Segurando uma latinha de cerveja Cristal, o ébrio motorista fala pro amigo que está filmando a cena que não tem ninguém que o “tucuta” no Facebook. Nada demais nesse vídeo. Nada demais mesmo. Esse moço é apenas um em um milhão, um caso típico de um bêbado chato, que troca algumas letras e entra naquela fase deprê quando toma umas a mais. E o Youtube parece que virou isso mesmo. Não sei por qual motivo, elege como se fosse um sorteio de loteria aqueles vídeos que entram pra história ou amargam o fracasso do esquecimento, sem critério algum de diferenciação. Como sintoma sociológico, merece até uma certa atenção, mas sem muito interesse. Saiu da moda a grande produção do videoclipe, bem como as trapalhadas flagrantes tipo videocassetadas. O que funciona nessa rede é o registro das coisas mais banais do planeta. Culturalmente falando, trata-se de um fenômeno nulo, irrelevante. É deprimente acompanhar esses rumos culturais. Depois do pós-Modernismo, assistimos à sociedade caminhando pra era pré-Antiga. Compartilhar esses vídeos que propagam o niilismo cibernético é alimentar um paradoxo: quanto maior o acesso à tecnologia de gravar e de filmar, pior é a peneira que filtra a baixa qualidade. Esses vídeos-coqueluche até promovem um ou outro gracejo, mas são infames demais no quesito comicidade. A maioria já nasce com o intuito de se tornar celebridade virtual, pois mostra o protagonista olhando pra câmera, tratando o interlocutor desconhecido como se fosse um amigo íntimo. Já o último, o do bêbado solitário, é feito de uma maneira bem cruel e que fere a ética: o personagem pergunta se está sendo filmado e o iphoneman diz que não. Se as redes sociais nada mais são do que glorificar a mediocridade, fico então com a desaceleração que não leva a lugar algum, na espera e na inerte espreita de que daqui a alguns anos iremos encontrar o verdadeiro sentido do maior site de imagens do mundo.