quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Palavras

Era um vez o Joãozinho. Assim mesmo. Um nome comum, idêntico a tantos outros Joãos, campeão absoluto de registros em cartório. Tratado dessa forma, no diminutivo, para deixar bem clara sua simplicidade, sua idade baixa e sua pequenez.

Joãozinho foi sempre o protagonista de histórias tão comuns quanto ele. Narradas em terceira pessoa, ordem cronológica, com substantivos próprios fáceis de se escrever, adjetivos puros e paroxítonos, tempos verbais nada complexos: ora presente do indicativo, ora pretérito perfeito.

Até que um dia... até que um dia... a trajetória de Joãozinho foi invadida por palavras estranhas. Desconhecidas. Importadas. Inóspitas para o lugar-comum em que ele morava.

Vocábulos feios, sujos e malvados. Verbetes horríveis, que mal conseguiam olhar a si mesmos no espelho. Elementos cheios de ódio, de raiva, de rancor Nascidos para matar.

De onde teriam saído esses vermes, esses ratos de papel? Como puderam se proliferar com tanta pressa e facilidade? Qual vitamina tomaram para se transformar em maioria absoluta das letras? Por que tanta cegueira diante da beleza lírica dos contos e das fábulas?

De repente, não mais que de repente, o livro de Joãozinho foi acometido pela lactose, pela neurose, pela overdose. A namorada de escola, Maria, foi misteriosamente sequestrada. Colocaram no lugar a isonomia, a leucemia, a pandemia. Junto com elas vieram a masculinidade tóxica, o feminicídio, o cisgênero. O bullying, o storytelling, o burnout, o crossfit, o mindset, o podcast, o coach, o copydesk, o overview, o feedback, o jackpot, o lookalike, o setlist, o mood, o cashback, o turnover, o compliance. A selfie, prima da vibe, tímidas, recatadas e insossas. Como um obediente gado de rebanho, estacionaram nas páginas do opúsculo de Joãozinho a criptomoeda, a meritocracia, a bioimpedância. A clusterização, a harmonização, a gamificação. A comorbidade. a rentabilidade, a navegabilidade. A polarização, do bolsonarismo à venezuelização. Neologismos se criaram e se reproduziram feito girinos em poça d'água: recência, crocância, atingimento. 

Solitárias, essas isoladas palavras ganharam força. Uniram-se, como um exército missionário. Uma milícia secreta. Treinaram pesado para vencer o inimigo. Tornaram-se faixas pretas em artes marciais. Compraram armas. Rasgaram bandeiras. Quebraram placas de avenida e antigos logradouros que estampavam incontáveis Josés, Marias e independências. Barricadas de frases feitas fecharam atalhos, impedindo o livre trânsito das onomatopeias. Clichês compostos e enfileirados ocuparam o lugar dos monossílabos tônicos. A cidade de Joãozinho se viu tomada por valor agregado. Menos é mais. Fome de dono. Margem de erro. Superar desafios. Estratégia 360. 

As linhas de caderno que serviam de estrada para Joãozinho se transformaram em commodity. O parque de brincar com as letras virou shopping center. Apesar de não haver nenhum grau de parentesco, o pobre Joãozinho tornou-se uma réplica de tantos outros engravatados desconhecidos que, com seus diplomas, passaram a brilhar em noticiários. Apresentações de campanha. Críticas literárias. Redes sociais. Relatórios de conglomerados. Balanços financeiros. Análises algorítmicas. Defesas de tese. Sessões neurolinguísticas. 

E aí, deu em Joãozinho uma saudade enorme e doída da aurora de sua vida. Das palmeiras e dos sabiás. Da pipoca de canjica, pipoca de panela, pipoca de cinema. Do futebol de botão. Das ruas com pedrinhas de brilhantes. Do amor que arde sem se ver.

Não por acaso, Joãozinho entrou em coma. Foi parar no hospital. Disse para ele mesmo, em pensamento, que sofria de tristeza. De falta de esperança. De uma dor esquisita sem nome, mais ou menos na região do peito e do coração. Não foi isso que os atestados médicos apresentaram. Nesses laudos, constava esquizofrenia aguda. Transtorno do humor bipolar. Transtorno do déficit de atenção. Esclerose múltipla. Síndrome de Asperger. Síndrome de Estocolmo. Síndrome de Aarskog. 

E foi assim que, nascidos e criados sob o mesmo teto, eles - Joãozinho e as palavras - desapareceram dessa história e morreram infelizes para sempre.