domingo, 16 de maio de 2021

Encontro

 

- Oi Samantha, tudo bem? Victor aqui. A gente deu match no Tinder agora há pouco e você me passou esse número do zap.

- Boa noite, Victor. Tudo bem, e você?

- Então, queria te conhecer melhor. Vamos marcar um dia?

- Excelente ideia! Eu topo.

- Tava pensando nuns lugares bacanas, bem descolados, cheios de gente bonita. Até dei uma pesquisada e queria passar pra você algumas opções pra ver se você curte.

- Opa! Que homem prestativo. Vamos lá, diga quais lugares.

- Eu tava entre Drogaria São Paulo, Droga Raia e Drogasil.

- Hã??

- É. Esses lugares estão bom-ban-do!

- Victor, você me chama pra te conhecer numa farmácia? Pensei que você ia me chamar prum bar, restaurante... sei lá, topo qualquer coisa. Do jeito que ta difícil encontrar homem interessante, até a falta de criatividade de um Sí Señor eu to aceitando. Eu queria mesmo é conhecer aquele hypado do casal... do porco... sabe? Não sei, se você tá meio sem grana até o Baixo Augusta eu tô dentro. Mas... farmácia?

- Samantha, em que mundo você vive? A gente tá numa pandemia, cara! Hello! Bar e restaurante fechou tudo com essa segunda onda aí.

- Que nada! Outro dia eu passei no Bar do Pedrão e tava mó lotado. Tinha até gente na calçada.

- Aquele da Zona Norte, né? Conheço, ia direto. Quando você passou por lá?

- Ah, sei lá. Tipo umas duas semanas atrás. Não lembro, tava com minhas amigas.

- Então, deixa eu te dizer... passei por lá ontem à noite. Tudo fechado. Aí hoje de manhã fui fazer uns negócios lá perto, e quando desci do carro vi que até tinha um papel colado na porta. Aquela porta de garagem, toda onduladinha, sabe? Tava escrito assim: “Contas de água e luz, favor entregar no 167”.

- Puxa, que triste...

- Então, a gente pode conhecer aquela Droga Raia nova, gigantesca, fica aberta 24 horas. Nem vai ter blitz porque é serviço essencial. E olha... dá pra se divertir bastante... cair na night... escolher uns drinks... vi que lá eles têm álcool gel 70%, pra quem não quer ficar chapadão, mas também servem spray antisséptico. E se quiser algo mais elaborado, lá também tem enxaguante bucal que só de colocar na boca e fazer bochecho já dá barato.

- Eu não tomo álcool.

- Não tem importância! Lá eles vendem também acetona, água oxigenada e merthiolate. Que, vamos combinar... já teve dias melhores, né?

- Victor, eu tava pensando num primeiro encontro diferente. Uma noite especial.

- Ah, então eu sei do que você ta precisando...

- Jura?

- Na Drogasil da rua de cima, se você levar duas caixas de Dorflex recebe na hora um cupom que dá 10% de desconto nas tinturas de cabelo. TODAS! Quer coisa mais especial que isso?

- Ah, não sei... tá muito estranho isso...

- Estranho? Pensa: no bar, qualquer bar... e olha que eu já fui muito do bar... pra você ser atendido precisa esticar a mão até o teto. O garçom sempre finge que não te vê. Ou faz sinal que vai te atender e simplesmente some. Na farmácia não. Assim que você bota os pés vem alguém, em questão de segundos, já perguntando: “Posso te ajudar?”.

- Ainda não me convenceu.

- No bar, ou na balada, geralmente toca música ruim. E sempre tem aquele momento do aniversário coletivo, em que a banda para tudo pra tocar a versão da Xuxa cantando parabéns. Meio ridículo, né? É tudo num som tão alto que você até sai meio surdo. Na farmácia não. É aquele silêncio sepulcral. Questão de respeito. Reparou que quando entramos numa farmácia a gente até fala mais baixo?

- É verdade. Mas sei lá...

- Samantha, Samantha... o bar é tudo meio escurinho, aquela penumbra toda. Eles acham que é moderno essa coisa de Idade das Trevas. Eles acham chique ninguém enxergar nada. Quando vem a conta você acha que deu R$ 80 quando na verdade tá marcado R$ 300. Qual a graça disso? Aí você tem que ficar ligando a lanterna do seu celular, que parece um farolete no meio do breu noturno do Oceano Báltico, e ainda paga mico praquele bando de universitário bebaço da mesa ao lado. Na farmácia é tudo muito claro. Branco total. Transparência total.

- Ah, Victor, tô confusa...

- E quando você passa mal no boteco? É cada um por si e Deus pra todos, certo? Cê tem que ficar torcendo pra não ter fila no banheiro. Caso contrário, chama o Hugo lá mesmo debaixo da mesa. E ainda corre o risco de respingar um pouco do seu vômito no tênis novo do seu crush. Puta roubada, né? Farmácia é outro esquema. Por acaso cê já viu alguém mijando na parede da Ultrafarma? Se por um acaso, Deus me livre, você não se sentir muito bem dentro de uma farmácia, tem uma gôndola inteira de Alka Seltzer que vai te curar pras próximas três gerações.

- Putz...

- Vamos lá, Samantha. É o que temos para o momento. Veja o lado bom das coisas. Na porta da farmácia não tem fila quilométrica com segurança selecionando quem entra pelo tipo de carro que deixou com o manobrista. Não tem aqueles grandalhões te revistando, te apalpando, fazendo cócegas no seu saco e ainda passando aquele detector de metais que mais parece uma lixa de sola do pé. E ainda pede pra você tirar as chaves do seu bolso. Porque, né? Vai que é uma bomba. Vai que eles pensam que no meio da noite você vai levantar seu iPhone pro alto e gritar: “Todo mundo parado! Isso aqui é uma palhaçada! Tô há mais de meia hora esperando! Se o meu cheddar burger e minha Heineken não chegarem em cinco minutos, prometo jogar esse XR no chão e acabar com a festa!”.

- Tá certo, Victor... tá certo. Te entendo perfeitamente. Mas eu queria assim, um lugar mais reservado, pra gente poder conversar à vontade, se conhecer melhor.

- Ótimo! A gente vai direto pra seção de cosméticos da Lancôme. Lá é tudo tão caro que nunca chega uma viva alma. Ainda mais com o dólar agora. A última vez que vi alguém procurando batom naquela seção foi na época em que o Neymar gozava de boa popularidade. A pessoa ficou indignada com o preço absurdo que a atendente falou pra ela. Se não me engano era a Bia Dória, não tenho certeza. Lá é tão vazio que até a Interpol tem dificuldades pra encontrar o local. Vamos lá que vai ser sucesso. Ninguém vai nos incomodar. Sábado que vem, reserva pra dois?

 

domingo, 2 de maio de 2021

Forrest Gump

 

Estou cada vez mais convicto de que a vida nada mais é do que um banco da praça. Ali você se senta como porto seguro para contar todas as suas histórias. Igual ao Forrest Gump. Não importa se são verídicas, se cada detalhe de fato aconteceu. São verdades para o personagem de Tom Hanks.

Quem se senta ao seu lado são a família, os amigos, os colegas, conhecidos e todo o círculo humano que você construiu. Ouvem atentamente seus flashbacks trazidos da memória. Comentam, aconselham, participam. São coadjuvantes da sua existência. Mas, é bom que se diga, muitos deles não estão nem aí para a sua trajetória protagonista. Estão lá para ler um jornal em paz, dar milho aos pombos, esperar o cachorro fazer cocô, aguardar a pessoa de um encontro marcado no Tinder. Ou simplesmente pousaram para descansar. O fato de vocês estarem lado a lado não significa necessariamente uma proximidade. Apenas era naquele momento o único lugar vago.

Durante a pandemia, nossas interações têm se tornado cada vez mais virtuais. É normal. Ou melhor, novo normal. Quem se encontra presencialmente é visto como um criminoso ou, no mínimo, irresponsável. E nas redes sociais tenho observado que esse comportamento fugaz é ainda mais frequente, fazendo com que a analogia seja ainda mais verdadeira. No começo disso tudo, dessa nova era tecnológica, acreditávamos que tínhamos muito o que dizer para centenas de milhares de pessoas. Que poderíamos chegar aos ouvidos do Presidente em apenas seis graus de separação. Ou, metaforicamente falando, que precisaríamos de um coreto e de um megafone para falar com a multidão que criamos ao redor de nós mesmos. Bobagem. Não é nada disso. Talvez no filme até haja essa passagem de um profeta conduzindo seu turbilhão. Na realidade distante das redes sociais, um banquinho de madeira para você expor suas ideias e seus sentimentos é mais do que o suficiente.

E essas pessoas, seus interlocutores, vão e vêm de modo tão natural quanto o voo de um canário. São seus comparsas por questão de efêmeros minutos. Te admiram e te ignoram solenemente na mesma proporção. Alguns vão embora sem sequer se despedir. Lembra daquele seu amigo de infância, com quem você se dava muito bem? Trocava suas íntimas e secretas confidências e, passado o cronômetro da vida, se dá conta de que hoje vocês não têm mais nada a ver? Ou aquele revolucionário colega de faculdade que, com o tempo e a necessidade de ganhar dinheiro, virou casaca? São eles os figurantes passageiros de sua história. Sentam-se e levantam-se para dar lugar ao outro.

Em épocas tão voláteis, líquidas e gasosas como a de hoje, basta uma fagulha para esse vínculo se esvair. Você pode até compreender esse afastamento por causa de divergências e incompatibilidades políticas e ideológicas. Só que esse banquinho da era digital é capaz de promover o distanciamento social até por questões de afinidade. Se as gerações X, Y, Z ou qualquer letra de um alfabeto vindouro mal conseguem ver um vídeo ou ouvir uma música até o final, o que dizer então em relação a suas histórias? Você se tornou chato, obsoleto, cansativo. É hora de elas procuraram outro lugar pra passar seus próximos 15 minutos.

Em compensação, é muito gratificante encontrar indivíduos dados como personagens mortos que reaparecem no banco da sua vida. Pessoas que lá atrás jamais seriam seus coadjuvantes. Ou nem estavam previstas pra entrar nesse roteiro. E de repente, não mais que de repente, chegam chegando e ocupam um lugar de destaque. Te indicam uma vaga de emprego sem você pedir. Te curtem não apenas para fazer número com o joinha. Te curtem de verdade. E daí surge, quem sabe, uma relação bem mais estreita que o espaço do banco.