quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Almas Gêmeas

No novo filme de André Téchiné, o tenente francês David Faber sofre queimaduras graves após um ataque contra seu comboio militar no Mali. De volta para França, ele passa meses em recuperação, sob os cuidados de sua irmã Jeanne. Mas David sofre de amnésia severa, e o filme acompanha esse processo que vai de um esquecimento completo até sua volta à socialização. Jeanne o leva para a casa de sua família nos Pirineus na tentativa de fazer com que seu irmão ganhe uma nova vida.

Trata-se de um filme que resvala o trágico, mas aos poucos se aprofunda num registro mais intimista dos personagens. Téchiné não poupa de mostrar a obsessão do protagonista por uma violenta maneira de esquecer o passado e ao mesmo tempo tentar entender o presente. Não deixa de ser uma opção conflituosa, já que David está constantemente no limite entre a agressividade tóxica e o desejo vindo de seus impulsos eróticos. Mérito do ator Benjamin Voisin, que traduz essa contradição de maneira muito convincente.


quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Nefarious

No dia de sua execução, o assassino em série Edward Brady tem um último compromisso: uma consulta final com um psiquiatra, atestando que ele de fato cometeu seus crimes sabendo o que fazia e, assim, não pode ter sua sanidade questionada. Porém, depois do suicídio de seu antigo médico, Edward deverá ser avaliado pelo Dr. James Martin, outro psiquiatra que entra no jogo de Brady, que diz ao médico ser um demônio chamado Nefarious.

O filme se condensa nos diálogos entre médico e monstro, numa cela. Quase não há outras locações e o elenco de apoio raramente entra em cena. Essa concisão deixa o filme mais interessante. Na questão interpretativa, entretanto, há uma lacuna entre ambos. O ator Jordan Belfi, que faz o papel do psiquiatra, não encontrou seu tom, deixando no ar uma sequência de canastrices. Portanto, o peso do filme recai em Sean Patrick Flanery, na pele de Edward, tão denso quanto exagerado. Ele dá medo, embora para isso use os excessos dramáticos em cena, como seus intermináveis cacoetes com a boca. Mas é Sean que, com suas falas rápidas e repletas de argumentos, conduz a história. Um filme acima da média, apesar dos percalços.

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Samuel e a Luz

Melhor documentário no Festival de Guadalajara, o filme acompanha a vida do menino Samuel, que vive em Ponta Negra, um vilarejo de pescadores na costa de Paraty, Brasil.

Aos poucos, surge uma realidade mais complexa e contraditória. A chegada da eletricidade e do turismo na comunidade são um elemento de choque.

Com poucos diálogos e uma direção que pouco interfere na narrativa, deixando a coisa o mais natural possível do cotidiano daquela família, o filme transpira uma notável beleza interior. Por outro lado, não traz elementos muito inovadores para que encontremos respostas sobre a relevância desse trabalho no atual cenário cinematográfico brasileiro. 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Elas por Elas

Esquece o Mário Fofoca. Este filme nada tem a ver com o remake da novela protagonizada por Lázaro Ramos. 

Elas por Elas na verdade é uma compilação de sete histórias curtas, dirigidas por diferentes diretoras do mundo inteiro, que têm em comum o protagonismo feminino em diversas frentes, como por exemplo apoio psicológico a prisioneiras viciadas em drogas e amparo a vítimas da Covid-19.

Esse compêndio que enaltece e valoriza o empoderamento tem nomes de peso, como Catherine Hardwicke e Lucia Puenzo por trás das câmeras. Atravessa diferentes matizes, indo de um realismo interpretativo que reproduz o sistema carcerário da primeira história, até uma animação fabular que traz uma espécie de extraterrestre na última.

Como a maioria das coletâneas, há pontos fortes e pontos fracos. Não existe aquela desejada uniformidade e coesão, já que cada realizador encontra a liberdade poética a seu modo. 

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Mostra de Cinema SP

A 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, vulgo Mostra, teria tudo pra me provocar as melhores sensações possíveis. Porém, como minha relação com o cinema é de amor e ódio, com ela não poderia ser diferente.

Minhas ternas lembranças vão lá pra 1995, quando ganhei minha primeira permanente integral do meu pai após ser demitido de uma agência. Naquele ano, devo ter visto mais de 100 filmes. Prometi nunca mais repetir a dose, dado o meu estado exaustivo pós-maratona. Entretanto, voltei a fazê-lo, comprando a permanente com meu próprio dinheiro, até meados dos anos 2000.

Mas minha incursão pela Mostra veio antes disso. Em plenos anos 80, quando estava na faculdade, lembro de ter visto um ou outro filme a cada ano. De cinco a 20, dependendo do período. Frequentei o festival nos extintos cine Majestic, Arouche, Paulistano, Metrópole, Vitrine. A melhor sessão pra fechar o dia começava por volta das 23h, na sala de cinema do hotel Maksoud Plaza. Meus pais me contam que meu primeiro filme de Mostra foi no cine Palmela. Você se Lembra de Dolly Bell?, do Kusturica. Que, por sinal, vai ser novamente homenageado neste ano.

Nos primórdios, eu ainda era um coadjuvante da família. Um apêndice, uma extensão, um ser sem vida própria. "Ah, você que é o filho da Anette?". Pra quem não sabe, minha mãe foi praticamente a "musa" da Mostra. Frequentou o festival desde a primeira edição, quando os filmes passavam exclusivamente no Masp. Deu entrevista pra tudo quanto é veículo de comunicação. Inclusive para o site Cinemascópio, do Kléber Mendonça Filho, quando ele ainda era "apenas" crítico. Foi convidada pelo próprio Cakoff a entregar o troféu para o diretor italiano Marco Tulio Giordana, no ano em que seu filme 100 Passos foi eleito o melhor pela votação do público. Já apareceu na TV. Em matéria da Vejinha, sua foto foi acompanhada da legenda "estoque de bifes", devido ao fato de preparar toda a comida da família e guardar no congelador pra não precisar fazer absolutamente nada durante 20 dias. Inclusive bife à milanesa. Em três semanas, seu único afazer era ver filme do meio-dia à meia-noite. 

Conheci muitos amigos da minha mãe, a D. Anette, que automaticamente se tornaram meus amigos. Pessoas do Rio que vinham pra cá durante as férias, só pra acompanhar a Mostra. Médicos, dentistas, advogados, bancários, aposentados. Pessoas 10, 20, 30 anos mais velhas do que eu. Ah, como era bom reunir esse povo aqui em casa à noite, no último dia de exibição, para fazermos uma votação paralela dos melhores e piores enquanto comíamos um sanduíche de metro que meu pai escolhia na padaria.

A partir de 95 comecei a ganhar protagonismo. Fiz meus amigos próprios. Minha programação era diferente da agenda dos meus pais. Inventava circuitos nada a ver com o roteiro deles. Entrava livremente nas sessões de abertura do Bristol, vão livre do Masp, Sala São Paulo, Credicard Hall. Sem precisar confirmar nada antecipadamente. Apesar do cansaço, e de uma coleção de filmes irremediavelmente ruins, ouso dizer que foi minha melhor época de Mostra.

No começo dos anos 2000, a coisa começou a mudar um pouco de figura. Nessa época me tornei crítico de cinema. A Mostra foi uma espécie de portfólio que usei pra adentrar esse universo. O pontapé inicial foi ser colaborador do site Contracampo. Comecei a frequentar cabines de imprensa. Imagine só. Em cada dia de festival eram duas cabines de manhã, mais a programação "normal" (cerca de cinco filmes). Chegava em casa nos primeiros minutos do dia seguinte. E ainda tinha que acompanhar as centenas de e-mails dos demais críticos da revista eletrônica citada. Análises científicas eufóricas, entusiasmadas. Tanto pra falar de Manoel de Oliveira, Kiarostami, quanto pra se debruçar sobre cada plano de um filme do nível Trolls 3. E ainda tinha que encontrar tempo para escrever sobre os filmes. Textos que não demonstrassem erudição e lugar de fala eram sumariamente descartados.

Fiz isso também nos anos seguintes. Dessa vez, como colaborador do Omelete. Os editores dos ovos mexidos não eram tão rigorosos assim. Na ocasião, eles ainda se davam ao trabalho de fazer cobertura da Mostra. E também iam às cabines. Como a gente viu juntos filmes medíocres... No Pain No Gain é um exemplo inesquecível. A gente tentou sair no meio. Mas nesse exato momento o diretor estava entrando na sala. Uma mistura de Dwayne Johnson com Henry Rollins. Não tinha como fugir. Se tentássemos, certeza que ele faria de nós uma bela galinhada.

Depois virei um dos editores do Cinequanon. E essa rotina se manteve. Havia uma obsessão muito grande do editor-chefe de fazermos a maior cobertura do Brasil. Nossa meta (mais dele do que minha) era fazer 100 críticas. Eu até tentei ajudar. Mais na qualidade do que na quantidade. Porém, por algum motivo que até hoje não sei dizer, os textos ficavam em banho-maria. Eram publicados depois que a Mostra acabava.

São boas histórias de se lembrar. Mas fui percebendo que esses novos hábitos foram me tirando o prazer. Havia pouquíssimo tempo pra se fazer outra coisa a não ser assistir a filmes. Certa vez, quis almoçar algo rápido, mais rápido que Miojo. Comi um sanduíche natural naquela pocilga chamada Rei do Mate, do shopping Frei Caneca, onde hoje funciona a Riachuelo. Além do péssimo atendimento, o sanduba estava estragado. Em outra ocasião, após voltar da Cinemateca, percebi que não estava passando muito bem. Fui medir a temperatura. Mais de 40 graus de febre.

Devo admitir que a Mostra até que se renovou. Entrou o formato digital, sessões para públicos específicos foram criados, atividades paralelas implementadas e tal. Mas o espírito mostreiro sempre foi o mesmo. Aquela bipolaridade. A alegria de reencontrar pessoas que você não vê há um ano, junto com o atraso de quase uma hora para o filme começar. A profusão de ideias em conversa de bar, junto com os cancelamentos de sessões em última hora. O abraço apertado, junto com a fila na bilheteria que parece fuzuê do Rock in Rio. Os funcionários, novatos, tão simpáticos quanto inexperientes. Pouquíssimos sabem dar informações precisas.

Da minha parte, acho que o que ficou foi o inevitável envelhecimento. Sobre os amigos, tanto os adquiridos por usucapião quanto os formados por conta própria, grande parte desistiu. Alguns deles nem estão mais nesse plano espiritual. Dos que restam, uns empobreceram. Outros envelheceram mal. O terno de linho e o cabelo engomado para compor o visual de uma pré-estreia ficaram na saudade. Dentistas perderam dentes. Oftalmologistas ficaram mais cegos. Professores passaram a cabular as sessões.

Um dos feitos memoráveis que consegui realizar foi uma festa temática dos meus 37 anos. Fechei o espaço de uma loja de discos que, à noite, funcionava como baladinha alternativa. Foi lindo. O tema você já sabe qual foi. Peguei uns pôsteres de locadora da minha coleção e preguei nas paredes. As músicas, discotecadas por mim mesmo, eram de trilhas sonoras de filmes. Foi um sucesso. Mais de 60 convidados estavam presentes. A maioria do ramo cinematográfico. Amigos que fui conquistando inclusive nas Mostras. Hoje, tudo mudou. Cada um foi pro seu lado. Uns casaram. Uns optaram por outras rotinas. Encontros e desencontros. Aos poucos, fomos percebendo que um não tem mais muito a ver com o outro. Talvez as divergências políticas tenham contribuído para esse afastamento. Talvez não. Vida que segue. Ao comemorar quase quatro décadas de vida, havia ali um grupo que fazia questão de tomar cerveja comigo. Hoje, no auge dos meus 55, duvido que alguém deles aceite meu convite para um café.

Redes sociais podem ser juma boa explicação para isso. Elas vieram com o pretexto de aproximar e conectar pessoas, quando na verdade o que mais fizeram foi isolar indivíduos em seus cubículos. Mas creio que o que me fez brochar de vez da Mostra foi um episódio que nem envolveu diretamente a mim. Certa manhã, numa cabine de imprensa, o pivete do assessor comunicou, em alto e bom som, para todos os jornalistas ouvirem, que, a partir daquele dia, três pessoas estavam terminantemente proibidas de frequentar as cabines. Uma delas era minha mãe. Que, por sinal, nem estava presente. O incompetente fedelho, pouca-prática da função, nem teve tato para dar a notícia de modo mais cordial. Os outros dois expulsos, já falecidos, foram impedidos por motivos relativamente justificáveis. Um deles entrava pela porta dos fundos da sala para não ser percebido. Usava ingressos falsos. O outro via essas sessões exclusivas, em primeira mão, para depois dar spoiler ao público das filas da primeira sessão. Minha mãe, outrora rainha da Mostra, não se enquadrava nesse tipo de boca-livre. Ela jamais deixou de comprar sua permanente integral. Pelo contrário. Não se importava em sair no meio da sessão, quando solicitada, para dar entrevistas, fazer propaganda da Mostra, elogiar os organizadores, incentivar a iniciativa. Ir a alguma cabine, muito que eventualmente, era para simplesmente dar vazão a outros tantos filmes durante a extensa programação. Coincidentemente, naquele ano em que foi enxotada e tratada como uma meliante, escreveu uma crítica para o Cinequanon. Sobre um filme visto em... cabine.

Ainda sobre cabines: dia desses, um jornalista amigo meu perguntou que tipo de cobertura da Mostra eu iria fazer. Sinceramente, não soube responder. Disse que daria prioridade ao circuito alternativo, aos filmes B, exibidos em salas underground, como Olido e Centro Cultural. É uma promessa que venho fazendo há anos. E nunca cumpri de modo satisfatório. Só sei que vou fugir dos filmes mais aguardados. Não tenho mais paciência para aquele tumulto, aquele frisson, muvuca, filas intermináveis, confusão, briga por um assento para se assistir a uma obra que entrará em circuito comercial daqui a 1 mês. Por enquanto, a dúvida é minha certeza. Dizem que as cabines servem como um aperitivo da Mostra. Mas, pelo pouco que tenho visto, me deparado com filmes tão distantes do meu momento, tão desconectados da minha realidade, não sei se tenho vontade de ir ao prato principal.

Ouvi dizer que estão preparando um documentário sobre a Mostra, a ser exibido em sua 50ª edição. Fico contente em saber disso. No que puder, coloco-me à disposição para colaborar com depoimentos, descobertas, causos marcantes. Certamente ninguém sabe que, inspirado no jargão do futebol, eu é que criei o termo "repescagem". Pelo menos nunca tinha ouvido ninguém usar tal palavra nesse contexto. Soltei o neologismo para um grupo de amigos, que espalhou para outro grupo de amigos, que espalhou para outro grupo, e aí a moda pegou. Talvez seja mera coincidência. Eu duvido.

O problema é que ando fugidio. Não sou facilmente encontrado nas sessões da Mostra. Não abracei a tendência de se trocar críticos por influencers. Não vou usar hashtag pra ser localizado. Não vou abrir apps de redes sociais que usam imagens para fazer exibicionismo de egos. Por favor, não me peçam para substituir o garimpo do desconhecido pela diquinha de programa a dois. Adotei o escapismo. Passei a viver numa realidade paralela. E percebo que, no que diz respeito aos meus amigos, a recíproca é verdadeira. 

Em seu 47º ano de vida, a Mostra Internacional de Cinema tem motivos de sobra pra comemorar. Voltou a ser 100% presencial, depois de três anos chafurdada naquele conceito on-line. Arte é convívio, é existência. Não me desce muito bem a alternativa de fazer a Mostra ficar parecida com o streaming, o lanche on-demand. Além disso, ela voltou a contar com patrocinadores de peso, como Petrobras. Além do fôlego financeiro que ganha, essa retomada simboliza que estamos saindo do obscurantismo bolsonarista, que praticamente aniquilou a Cultura. Com isso, a Mostra volta a oferecer em seu cardápio quase 400 filmes. É um banquete e tanto. E só posso desejar a ela um feliz aniversário e muitos anos de vida. Pena que não fui convidado pra essa festa. Nem sei se tenho roupa pra isso.

sábado, 19 de agosto de 2023

Coisas do Amor

Dificilmente uma comédia alemã que chega ao Brasil tem os ingredientes certos para agradar. Coisas do Amor, dirigido por Anika Decker, é mais um exemplo desse fiasco. Nada parece funcionar na tela.

O filme começa com uma metalinguagem: carrinhos que percorrem um estúdio cinematográfico. Um preparativo para colocar o espectador diante de uma encenação. Tapete vermelho em Berlim, uma multidão de fãs do galã Marvin Bosch na estreia do filme. Uma espera em vão, porque Marvin desaparece depois que sua entrevista com a jornalista de tablóide Bettina Bamberger vai ao ar, com perguntas ácidas que tocam fundo o personagem. A estrela acaba se refugiando em um pequeno teatro feminista independente LGBT+ “3000”, dirigido por Frieda e está à beira da falência.

O filme até toca, bem de leve, em questões mais sensíveis e atuais, como o machismo e os preconceitos sociais. Mas tudo é feito de modo escorregadio, maniqueísta e, logicamente, previsível. Um pastiche com gosto azedo de chucrute.


As três Vidas de Frieda Wolff

Dirigido por Pedro Gorski, o filme traz a história de Frieda Wolff (1911-2008), uma pesquisadora judia alemã que escapou do nazismo e imigrou para o Brasil em 1934. 

O filme é dividido em três partes. Na primeira, fala sobre a vinda de Frieda e seu marido Egon para o país. A segunda parte narra sua dedicação ao comércio ótico por 30 anos. Já o epílogo debruça no assunto que lhe trouxe mais notoriedade: o trabalho de pesquisa sobre a presença judaica no país, que resultou na publicação de mais de 40 livros. 

A partir de uma longa entrevista gravada com Frieda em 2003, o amigo Milton Weintraub inicia uma busca para remontar a trajetória dessa sobrevivente do Holocausto. É um filme sensível, honesto, mas rígido às técnicas e dinâmicas mais convencionais. 

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Além do Tempo

Baseado numa história real, esse drama começa mostrando o casal Lucas e Johanna, perdidamente apaixonados, acompanhados pelo seu filho, durante uma viagem de barco pelo Oceano Atlântico. Num certo momento, Lucas fala que que aquele é o melhor dia da vida dele. Estamos entre os anos 1970 e 80. Porém, a criança misteriosamente desaparece do barco e é considerada morta após fracassadas tentativas de busca pelas equipes de resgate.

Dirigido por Theu Boermans, esse filme holandês teria tudo para ser um dramalhão. Mas o diretor evita a construção narrativa com saídas fáceis e apelativas para não deixar seu produto açucarado demais. Pula para 35 anos depois, os dois se reencontram após terem se separado e nunca mais entrarem em contato um com o outro. Ao contrário do prólogo, predomina aqui um clima de amargura. A secura dos diálogos, o modo conciso como os atores interpretam seus personagens servem de contraponto ao momento em que o casal era feliz. Mais do que discutir a relação tardiamente, Além do Tempo abre um generoso espaço para seus personagens refletirem sobre o rumo de suas vidas e provarem ao espectador que as diferenças entre eles são maiores do que as afinidades. 

Águas do Pastaza

Documentário dirigido pela cineasta portuguesa Inês T. Alves, que viajou pelo rio Pastaza do Equador ao Peru, e encontrou no caminho crianças nativas, fluentes na prática da pesca, cozinha e artesanato.

Isolada na floresta amazônica, essa comunidade tem uma profunda intimidade com a natureza. Entre as águas do rio Pastaza e as copas das árvores, as crianças vivem de forma quase autônoma e com forte senso de colaboração.

A diretora procura fazer poucas interferências no registro desse estilo de vida. Quase não há diálogos, o som da natureza é que predomina. Existe uma preocupação em deixar fluir ao invés de se impregnar algum tipo de mensagem ou ideologia.

Entretanto, apesar da beleza das imagens, esse modo de captar o universo soa meio aleatório. Deixar de impor um ritmo ao filme pode significar que a diretora respeita a preservação da cultura nativa em extinção, ainda mais nos tempos atuais. Como resultado, contudo, perde-se um pouco da potência narrativa. Fica mais como um belo álbum de fotografia.


sexta-feira, 23 de junho de 2023

Ao Seu Lado

Um jogador lesionado de rúgbi do time da liga principal é selecionado para jogar num time da liga secundária como parte de sua recuperação. Em determinado momento, ele se apaixona por um outro jogador da mesma equipe. Porém, ambos são casados e tentam esconder essa relação, não só de seus próprios parceiros, mas também dos companheiros do time. 

Apesar de ser lançado no mês do Orgulho LGBTQIA+, o filme não coloca a homossexualidade como uma questão. Diferentemente de outros filmes lançados comercialmente, esse tema não é tratado como um tabu. Todos os demais jogadores apresentados na tela (ou pelo menos a maioria deles) também são gays. Convivem em ambientes liberais, bares e boates temáticas. Nesse aspecto, não existem conflitos.

O que o filme coloca em xeque é a traição, a infidelidade conjugal e suas consequências. Valores que poderiam ser retratados, inclusive, em relações heterossexuais. 

Apresentar ou vender esse longa como "filme de nicho" pode até despertar  uma curiosidade no espectador, que eventualmente tende a criar expectativas sobre assuntos específicos ligados ao tema. Por outro lado, corre o risco de cair no ostracismo e ser ignorado pelo grande público, já que nada mais é do que "mais um filme de amor proibido".

E sim, o filme não avança em maiores dilemas a não ser o que está descrito na sinopse. A cena inicial, uma disputa acirrada pela bola durante um jogo, atletas se sujando de lama do gramado, escorregando, caindo, pode até ter em si uma força bruta. Mas essa força não se sustenta. Ao Seu Lado é um filme melodramático, que exagera um pouco nas tintas e deixa essa potência para segundo plano.

quinta-feira, 8 de junho de 2023

Três Mulheres: Uma Esperança

Nos dias finais da Segunda Guerra Mundial, soldados alemães abandonam um trem de deportação. Os judeus dentro do comboio serviriam de moeda de troca para serem negociados com o exército russo. A partir dessa realidade, o filme traça o improvável encontro de três frentes da guerra, sob o protagonismo feminino. A judia holandesa Simone, que precisa cuidar do seu marido que contraiu febre tifoide; a desconfiada alemã Winnie, que viu sua mãe ser morta pelos soldados russos; e a atiradora russa Vera.

Trata-se de um filme denso, que aborda um tema árido, embora batido nas telonas. O que ele traz de novo é o foco: os personagens masculinos ocupam papeis secundários. E o que torna o filme ainda mais interessante é que a relação entre as mulheres se dá de forma circunstancial. Não há, em princípio, nenhuma afinidade que as faz se unirem.

Sob o olhar frio e meticuloso da diretora e roteirista holandesa Saskia Diesing, Três Mulheres busca o tempo todo encontrar na tela algum refúgio, alguma brecha para a escapatória diante de um cenário de morte. Embora a guerra esteja prestes a acabar, existe um resíduo moribundo que a diretora faz questão de estampar. É um ato de sobrevivência pós-finale. Nesse sentido, o filme faz diversas trocas de ambiente, como se colocasse na pele do espectador a sensação de fuga e de reencontro.


Meu Vizinho Adolf

Segunda Guerra Mundial. Uma família judia, aparentemente feliz, se agrupa para tirar uma foto. Um deles gosta de jogar xadrez. A cena mostra a boa relação familiar, em contraponto às dificuldades mecânicas de se tirar fotografia naquela época.

Corta para os anos 60, Chile. O enxadrista, que parece ser o único sobrevivente da família durante o Holocausto, mora sozinho numa casa vazia. É recluso e mal-humorado. De repente, começa a desconfiar que o vizinho recém-chegado é Adolf Hitler e recorre ao consulado de Israel para fazer a denúncia. Não sendo levado a sério, inicia uma investigação independente para provar sua teoria. Quando as evidências ainda parecem inconclusivas, ele é forçado a se relacionar com o suposto inimigo, igualmente fechado e ranzinza, para obter novas provas.

Até este momento, em que o relacionamento entre ambos parece inóspito, Meu Vizinho Adolf tenta trazer um tom de comédia. Talvez até demais. Não fosse a bela atuação de David Hayman e Udo Kier, o filme correria sérios riscos de se tornar caricato.

Aos poucos, a habilidade do diretor e roteirista Leon Prudovsky transforma o cômico registro desses atritos num material um pouco mais sensível. O atrito e a animosidade de ambos vai derretendo, e o tratamento dado ao filme valoriza a construção dessa improvável amizade. 

sábado, 29 de abril de 2023

O Pastor e o Guerrilheiro

Em seu novo filme, o diretor José Eduardo Belmonte traz de forma mais direta o tema da ditadura militar. Sem manter uma ordem cronológica, vai até a década de 1970, quando um guerrilheiro comunista se encontra na mesma cela que um cristão evangélico, preso por engano. Em meio a torturas e conflitos ideológicos, eles se ajudam e marcam um encontro para o réveillon de 2000. Nos últimos dias do milênio, Juliana, ativista estudantil e filha ilegítima de um coronel que acabara de se suicidar, é surpreendida com uma herança deixada para ela. Por meio de um livro encontrado na casa do coronel, ela descobre que seu pai foi o torturador dos dois presos.

Apesar da contundência do tema, os anos de chumbo servem como pano de fundo para permear esses caminhos dos protagonistas. O filme, claro, tem substância. Mostra a união de dois prisioneiros, marcada justamente por suas diferenças políticas e religiosas. Traz o sentimento de culpa de quem fez parte do regime militar. Mesmo assim, O Pastor e o Guerrilheiro não carrega em si um traço meramente político. A condução da trama, com histórias paralelas, encontros e desencontros, faz a obra se aproximar de um romance. Belmonte mantém sua postura crítica em relação ao país, mas conclui um filme menos orgânico em comparação com seus primeiros longas. 


Morte a Pinochet

Com o sucesso do oscarizável Argentina, 1985, chega ao streaming a versão chilena sobre o período da ditadura militar. Em setembro de 1986, um grupo de jovens criou um plano para matar o ditador Augusto Pinochet. O professor de educação física e integrante da luta armada Ramiro, a psicóloga Tamara, que abandonou a família para viver na clandestinidade, tornando-se comandante da Frente Patriótica, e Sasha, nascida na favela de Santiago, marcam o ataque armado para uma tarde de domingo. 

Baseado na história real de um ataque fracassado por um braço armado do Partido Comunista Chileno, o filme acompanha o clima tenso de todo o planejamento da ação. Diferentemente do filme argentino, que insere alguns diálogos cômicos para dar um ritmo mais leve, aqui temos a seriedade como norte do começo ao fim. O diretor Juan Ignacio Sabatini não dá trégua, trazendo uma sensação quase de tempo real. Embora trate de um assunto importante e pouco explorado, o filme exagera no tom sisudo. Opta pela secura e objetividade, o que é um bem para a arte. Mas corre o risco de deixar seu trabalho um pouco cansativo.


sexta-feira, 14 de abril de 2023

Desaprendendo

A partir da próxima segunda-feira a gente comemora a Semana do Índio. Mas não podemos mais chamar índio de índio. Índio é quem nasce na Índia. Devemos trocar por indígena. Ou povos originários.

Também não podemos mais falar sobre morador de rua. Rua não é moradia. O correto é, em 2023, pessoa em situação de rua.

Já nem sei mais como devo me referir aos indivíduos de raça negra. Antigamente, chamá-los de preto era ofensivo, quase um palavrão. Hoje me parece que é um termo mais aceito. Assim como, creio eu, não deve pegar mal citar africanos ou afrodescendentes. O problema é quando queremos nos referir ao povo miscigenado, ou seja, a maioria da população brasileira. Antes a gente recorria a eufemismos, vocábulos mais brandos. "Moreninho" hoje, nem pensar. Mulato, embora aceito pelo vernáculo nesse sentido, vem sendo proibido pois faz uma analogia aos negros escravos que conduziam as mulas dos patrões. Ou traz a semelhança dessa palavra como um cruzamento de espécie animal. Sei lá. E não dá pra chamar um mestiço de mula. Nem de vira-lata. Se não me engano, pardo parece ser um termo aceito e não ofensivo. Isso hoje. Amanhã é capaz da Associação Internacional dos Gastronomistas vetar seu uso por fazer lembrar o molho pardo, rebaixando o indivíduo de tom azeviche a um mero ornato ao paladar.

Também não podemos mais usar as simbologias da nossa língua que evocam outros campos semânticos. Mesmo que a cor negra possa servir de metáfora para a noite, as trevas, a escuridão. "A situação está preta", por exemplo. Esquece. Proibidíssimo. O lado negro da força foi substituído pelo lado obscuro da força quando a Princesa Léia ainda era viva.

Pouco tempo atrás, uma integrante de uma comunidade de redes sociais trouxe um texto falando sobre os perigos de se aplicar, hoje em dia, o uso da locução criado-mudo. Isso trazia os tempos da escravidão, em que os negros serviçais trabalhavam nas casas dos senhores de engenho desde que ficassem absolutamente calados. Caso contrário, seriam severamente castigados e forçados a voltar a trabalhar na lavoura. Era mais ou menos isso. Esse texto sugere que troquemos por mesa de cabeceira ou algo que o valha. Até aí, tudo bem. Mas estamos no inóspito ambiente das mídias sociais, lembra? Nossa amiga foi rechaçada, avacalhada. (Avacalhada pode? Não faz lembrar o ruminante bovino leiteiro?). Comentaram que isso é tudo mimimi. Ou mumumu, sei lá. Os mais exaltados trouxeram verbetes ainda piores. A tal ponto de deixar a Dercy Gonçalves ruborizada. Claro que nossa amiga, que apenas quis repassar uma linha de pensamento sem tomar partido disso, se sentiu ofendida e preferiu sair da insolente comunidade.

Também não sei como me posicionar diante de um homossexual. Bicha antigamente era quase como "bom dia", de tão leve. Hoje não é mais. Veado então, é crime inafiançável. Só os veados podem chamar veado de veado. Gay me parece um termo isentão. Mas a Língua Portuguesa é muito rica. Se ficarmos apenas em dois ou três palavras é como se estivéssemos jogando dinheiro fora. Eu queria muito continuar usando fanchono, boiola, baitola, fresco, enrustido, sodomita, pederasta, maricas. Definitivamente, não posso. Além de darem um tom pejorativo ao discurso, generalizam demais essa orientação sexual. Com tantas variantes e subvariantes, que quase ocupam o teclado inteiro, precisamos ser mais específicos ao nos dirigirmos a uma pessoa que, por exemplo, supostamente, hipoteticamente, nasceu homem, se veste de mulher, está na fila de cirurgia do SUS, mas odeia fazer sexo. E orientação sexual também me deixa um pouco confuso. Um homossexual não é "orientado" a ser gay. Isso é meio coisa de coach. Também não é uma opção sexual, pelo contrário. Ninguém "opta" por seguir uma determinada linha sexual, como se isso fosse um partido político. Ou clica na opção "correta" dentre várias alternativas possíveis, como se fosse um exame de vestibular. A sexualidade de cada um está diretamente ligada aos impulsos, aos desejos. Taí... desejo sexual. Acho que doravante vou começar a usar essa terminologia.

Puta. Outra palavra a ser banida do meu repertório vocabular. É um dos termos que mais tem sinônimos no dicionário Aurélio, junto com cachaça. E praticamente todos foram vetados, a não ser que você queira ganhar uma legião de haters. Difícil imaginar, na nossa linguagem binária do futuro quase presente, como devemos evocar as prostitutas. Mulher de vida fácil, com certeza não. Não deve ser nada fácil ficar trepando por vários minutos debaixo de um gordo peludo, suado e fedido.

Por falar nisso, gordo é outra palavra que atravessou o sinal amarelo. Se por acaso alguém fizer uma leitura apressada deste meu opúsculo, coisa que mais acontece nas eras do read fast, die young, é provável que eu seja denunciado por gordofobia. Obeso talvez seja o substituto mais testado e aprovado pela Liga das Senhoras Católicas. Pelas comissões, tribunais e juízes do Facebook. Mas então, o que fazer com opulento? Anafado? Adiposo? Rotundo? Chorudo? Gorducho, leitoado, balofo? Joga-se tudo no lixo, bem como embalagem de bacon em tiras?

No começo do ano, tive sérias dificuldades no diálogo com uma atendente de banco. Recebi uma carta (sim, carta impressa, coisa que também deve cair em desuso, junto com quase todos os nossos alfarrábios linguísticos) sobre meu plano de previdência privada. A boa notícia: eu já posso começar a receber os dividendos dessa longeva contribuição. A má notícia: isso denota o quão estou velho, desgastado, caquético, senil, aposentado, tão inútil pra sociedade quanto os verbetes supracitados. Deduzi que o que deveria fazer é resgatar os valores para ter direito ao benefício. Só depois de muita conversa truncada entendi que resgate é uma coisa, migração é outra. O correto seria transformar o plano em renda. Daí fiquei me lembrando da época em que trabalhava numa agência de Propaganda com foco em criação de programas de fidelização. O que a gente mais falava era resgate de pontos. Coisa que todo mundo entende. Desde um sócio do programa Smiles até o juntador de Stix do Pão de Açúcar. Até que num belo e formoso dia um dos clientes entendeu que a gente devia mudar tudo. Resgate é uma palavra que remete a socorro, emergência, SOS, gente ferida, gente morrendo.

É deveras complicado pra mim cancelar lexemas para não ser cancelado. Eles sempre foram meus melhores amigos. Não consigo escrever por subterfúgios. Por abreviações consonantais. Por emojis. Não sei mais como me dirigir às pessoas, já que entramos na era do index palabrorum proibitorum. Perdemos completamente nossa identidade como indivíduo e como sociedade. Já que esse compêndio foi condenado e julgado à prisão perpétua, rogo para que ao menos recebam um funeral digno antes de agonizarem no calabouço do ostracismo e do desprezo.


quarta-feira, 29 de março de 2023

Skinamarink: Canção de Ninar

Vendido como filme de terror, e viralizado nas redes sociais, o primeiro longa do diretor canadense Kyle Edward Ball mais promete do que cumpre. Tudo é muito sugerido, não há cenas explícitas. Pelo contrário. Analisado friamente, mais parece uma colagem de imagens aleatórias.

Tudo se passa no interior de uma casa, à noite. Dois irmãos pequenos cochicham entre si porque acham que existe uma ameaça maligna em busca deles. Objetos da casa somem de repente. O único contato com o mundo real, perceptível ao espectador, é uma TV ligada passando desenhos animados antigos. 

Se por um lado o diretor escapa das fórmulas prontas do gênero, que traz à exaustão rostos deformados e muito barulho repentino pra criar o susto, por outro ele derrapa na falta de consistência e coalisão entre as cenas. Parece meio que um compêndio aleatório, um flerte com o cinema mais experimental. Mas falta medo. Embora transite no universo onírico, o longa não tem elementos suficientes para fazer essa transição entre o real e o imaginário. Portanto, fica meio com cara de filme-enganação, estratégia fortemente propagada nos tempos de Bruxa de Blair.


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Tudo errado

Não, não é a Gisele Bündchen. Ela pode fazer a propaganda que quiser, para o anunciante que bem entender. Tem o direito de cobrar o cachê que merece.

Não, não é a Gisele Bündchen. Ela chegou aonde chegou por méritos próprios, muito profissionalismo e uma rara beleza. Não puxou o tapete de ninguém, não dormiu com executivos do alto escalão, não usou em causa própria sua fama e sua notoriedade.

Não, não é a Gisele Bündchen. O sucesso de sua carreira internacional deve ser é aplaudido. Não consigo escutar uma sílaba das músicas da Anitta, mas jamais boicotei seu êxito no exterior. Minha dor-de-cotovelo com celebridades para exportação não chega a tanto.

A culpa não é da Gisele Bündchen. Mesmo nascendo loira e rica num país preto e pobre. Mesmo ostentando um trema em seu sobrenome, o que lhe confere a carga elitista de uma nobreza que já não existe mais. Mesmo permanecendo no Brasil só de vez em quando, como se aqui estivesse de férias, a passeio, como turista. De tanto desfilar nas passarelas estrangeiras, das marcas de roupas de grife do mundo inteiro, até vem aos poucos desaprendendo a falar o Português. E daí que namorou o papa-anjo do Leonardo di Caprio? E daí que tentou ser atriz em Hollywood?

Talvez os culpados sejam os empresários brasileiros. Que não medem esforços nem poupam dinheiro para que suas marcas estejam numa evidência gritante, a tal ponto de poderem ser vistas em Marte. Que pagam R$ 10 milhões para a garota-propaganda ficar no camarote por algumas horas bebendo água, e R$ 200 para a atendente servir durante a noite inteira o lúpulo patrocinador aos convidados nesse mesmo evento. Que não enxergam os limites éticos entre sustentar uma boa imagem e promover o desperdício. Que esbanjam fortunas, como aqueles engravatados que lançam cédulas de dinheiro com os dedos num puteiro, mas pagam merreca a toda a sua cadeia produtiva pejotizada, do entregador de engradados de boteco aos marqueteiros de escritório com ar-condicionado. 

Talvez os culpados sejam essa elite brasileira, especificamente os clãs bolsonaristas de meia-dúzia de famílias. Que se metem em enrascadas comerciais, mas são vistos pela sociedade como empreendedores. Que abrem um monte de CNPJ e criam sociedades espúrias, ganhando o bônus de participação nos lucros. De Ambev a Americanas. Hordas de novos-ricos, com sobrenome de cidade criada nas ficções de Dias Gomes. Conseguiram a proeza de trazer o coronel Odorico Paraguaçu de volta à nossa realidade.

Talvez o culpado seja o Governo, que sempre foi uma mãe para essa corja toda. Vem como um salva-vidas socorrer dívidas bilionárias. Acalentar os prejuízos astronômicos, oferecer soluções amigáveis para que esses empresários continuem usufruindo de todas as regalias possíveis. Pessoas que nunca entraram, e jamais precisarão entrar, na fila do seguro-desemprego. Não vão precisar baixar o aplicativo do Auxílio Brasil. Porque a ajuda emergencial para essas operações fraudulentas não vem a conta-gotas, mas traz junto toda uma rede envolvendo bancos, acionistas, linhas de crédito, suporte internacional. Não, esses novos Eikes Batistas nunca vão perder uma noite de sono.

Talvez o culpado seja o foco. O Brasil de ontem colocou os miseráveis como manchete. Hoje, quem ocupa a mídia são os bilionários. E, enquanto não houver alguma retaliação para suas práticas nocivas, eles vão continuar distribuindo cachês estratosféricos para celebridades, em campanhas de produtos que matam a sede mas não acabam com a fome dos 33 milhões de brasileiros.

Talvez o culpado seja o marketing. Que precisa investir muito para que sua marca continue na mente do consumidor e seja amada pelo país. Uma empresa que começa com "Br" de Brasil, mas pouco faz pelos brasileiros. Vende um líquido insípido, com gosto de mijo, feito de restos de plantação de milho, perde feio para as cervejas artesanais, causa dor de cabeça e ainda culmina com a mentira de uma cremosidade que não existe. 

Talvez a culpada seja a boa e velha Propaganda. Que permanece velha, mas já não é tão boa assim. Usando as mesmas fórmulas batidas do fim do século passado. Que dá de ombros para iniciativas de responsabilidade social. Que continua patrocinando apenas gente bonita. Publicidade gasta, financiada por clientes que não aprovam ideias mais criativas. Não enxergam ousadia a um palmo de distância de seu nariz. E fazem mais do mesmo. Necessitando de verbas vultosas para que seu conteúdo medíocre seja minimamente lembrado pelo apreciador de cerveja.

Tá tudo errado. Muita gente tem culpa no cartório desse fiasco que foi o camarote Brahma no Carnaval. Menos a Gisele Bündchen.


O bom marketing

Ultimamente, a gente vem sendo atacado por notícias de empresas, megaempresas e conglomerados passando por situações vexatórias resultantes de uma péssima administração. Livraria Cultura, Lojas Americanas, Lojas Marisa, e a contagem só tende a subir. Pedidos de falência ou recuperação judicial decorrentes de fatores que só mostram que o nosso sistema capitalista predatório naufragou. De inconsistências contábeis a calote em fornecedores. De fusões e aquisições mal sucedidas a processos trabalhistas em curso. De manipulação de dados a assédio moral.

Mais ultimamente ainda, em pleno Carnaval, pudemos assistir ao espetáculo do paradoxo que culminou com uma mistura de sensações entre a alegria e a tristeza. No meio de uma das piores catástrofes históricas provocadas pelas chuvas torrenciais em parte do nosso país, o principal anunciante da mais famosa bebida gelada que serve pra nos refrescar do calor desembolsou R$ 10 milhões para uma beldade aparecer por algumas horas em seu camarote. A iniciativa em si não foi nada proibitiva ou criminosa. Mas fica aqui a indagação da pertinência do gesto. Seria uma verba mal aplicada? Seria o cúmulo da ostentação e do desperdício? Até que ponto podemos considerar ético um cachê milionário diante de notícias diárias de pessoas passando fome? Cifras incalculáveis no mundinho da Propaganda servem pra mostrar quem é que manda nos negócios deste país?

Em meio ao lodaçal de escândalos, com empresas chafurdando na lama de falcatruas, surge um gritinho de esperança nos escombros de todo esse desastre. Viralizou ontem nas redes sociais uma postagem elogiando a atitude corajosa e benfeitora dos proprietários do restaurante Pimenta Rosa, na Barra do Sahy, litoral norte de São Paulo, uma das regiões mais afetadas pelas enchentes. De acordo com o relato, os donos ofereceram comida (almoço e jantar) de graça aos frequentadores. Também disponibilizaram sinal de wi-fi gratuita pois, como sabemos, foi muito difícil a comunicação entre parentes durante o período mais crítico.

A reação de quem leu, me parece, foi quase de um choro tímido, igual a resposta às notícias de pessoas encontradas com vida no meio de tantas outras soterradas. Foi como um brilho de luz que se acendeu na sociedade. Enquanto soubemos que tinha comerciantes vendendo o litro de água por cerca de R$ 100, o casal do restaurante optou pelo diletantismo nesse momento de terras tão úmidas e sentimentos tão áridos. A solidariedade invadiu a ganância. 

O Pimenta Rosa nada mais fez do que usar na divulgação o seu próprio produto. Não apelou às grandes mídias para se passar por empresa inclusiva. Não usou atores globais ou modelos internacionais em sua comunicação. Não fez promoção-relâmpago. Não usou a tragédia como oportunidade para alavancar os negócios. Ninguém produziu posts, cards e carrosseis usando a linguagem dos participantes do BBB. Muito menos coreografaram as dancinhas ridículas do Tik Tok. Apenas fizeram - e muito bem - aquilo que estão acostumados a fazer: servir os clientes. Isso gerou mídia espontânea, coisa disputada a tapas pelas grandes marcas.

Parece que o Pimenta Rosa, nesse momento tão trágico, mandou o capitalismo à merda. Ignorou seu princípio básico - a lei da oferta e da procura - para tentar oferecer um pouco mais de bondade a quem realmente precisou dela. Sem essa tralha de pagamento por aproximação, pix, leitura por QR Code, parcelamento da compra, empréstimo consignado, utilização de pontos de programa de fidelidade, nada. Simplesmente abriram mão da moeda que faz nossa economia girar.

Parabéns aos envolvidos. Pela quantidade de novos simpatizantes e futuros fregueses, o retorno financeiro está garantido. Agora, o que mais conta é o retorno emocional. Longe de mim passar a acreditar na Humanidade. Mas a aparição generosa do Pimenta Rosa no meio da turbulência foi um ponto fora da curva e dos raios.


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Desescrever

Percebi hoje que o Facebook mudou o nome da função "desfazer amizade" para "desamigar". Fico aqui imaginando o que motivou tal decisão: a tendência de se encurtar textos de botões, a necessidade da plataforma ser pioneira na criação de neologismos ou simplesmente a vontade de se justificar salários de profissionais que não têm o que fazer e precisam inventar algo pra ocupar seu dia e fazer valer seu holerite.

Seja na forma antiga e extensa, com verbo transitivo direto e objeto direto, ou na forma nova e enxuta, com apenas um verbo novo, a funcionalidade me soa simpática. É uma maneira de apagarmos parte do nosso passado, atitude movida por um senso de arrependimento ou porque precisamos mostrar ao mundo que, agora, somos totalmente diferentes do que éramos 24 horas atrás.

Claro que seria bom demais que a função "undo" estivesse presente em todos os momentos da nossa vida. Já pensou poder apertar os botões Ctrl + Z a cada cagada que a gente faz? Fez uma compra errada, Ctrl + Z. Sem precisar apelar pro Reclame Aqui. Xingou o vizinho e não sabia que ele era policial, Ctrl + Z. Respondeu um SMS pedindo pra você atualizar senha de banco, Ctrl + Z. Eu quase caí nesse golpe na semana passada.

Mas, dentro do seu âmbito de ação, apesar de suas limitações para salvar nossas vidas, o Face ao menos nos oferece esse alívio imediato. E, ainda por cima, de uma forma mais concisa em relação ao longínquo ontem. Como é bom desamigar bolsonaristas. Que leveza nos traz desamigar pessoas que só publicam slides de bom dia feitos em Power Point. Xô, mendigos de Pix. Desamigá-los-ei para dar lugar a indivíduos mais interessantes.

É assim, destruindo nosso passado, que as ferramentas digitais estão nos ensinando a construir nosso futuro. Despagando uma compra feita por impulso pela internet de um massageador de pés que você só vai usar uma vez na vida. Descomparecendo a uma reunião de amigos cada um leva o que vai beber ao lembrar o mico que foi esse encontro antes da pandemia. Desvendo um nudes que alguém te enviou por engano. Desviajando aquele porre que foi o último feriado prolongado com chuva todo dia, com reserva de resort em quarto sem ar-condicionado feita pelo Airbnb. Desestudando os quatro anos de faculdade para exercer uma profissão que não tem nada a ver com você. Desdando aquele presente de aniversário comprado com tanto carinho para o amigo que nunca se lembra do seu. Desnamorando aquela vaca que te traiu. Desescolhendo o Brasil como o melhor país pra se viver. E, em última análise, deslendo este texto que não fecha com um final feliz. 


quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Pagode

 - Senha número 384. Três oito quatro!

- Boa tarde. A gente queria registrar nosso filho.

- Pois não. Trouxeram todos os documentos?

- Sim, claro! Tá aqui: RG, CPF, certidão de casamento...

- E qual vai ser o nome dele?

- Pagode Nascimento dos Santos.

- Ah, senhor... aí não vai dar. Não posso registrar esse nome.

- Como não? Nascimento por parte de mãe, Santos por parte de pai. Como assim, não pode?

- Estou me referindo ao primeiro nome. Pagode. É lei. Artigo 2678, parágrafo 36, inciso quarto: fica terminantemente proibido registrar, para pessoas nascidas em território nacional, do sexo masculino ou feminino, nomes e/ou substantivos próprios alusivos, direta ou indiretamente, a palavras e/ou verbetes que façam qualquer tipo de correlação formal e informal a símbolos pátrios da arte e da cultura de nosso país.

- Mas... isso é um absurdo! A gente não tem o Rock? Aquele famoso assistente de palco daquele famoso apresentador de TV? Tem também o Rock lutador de boxe, mas esse é gringo. Não importa, a gente adotou como se fosse nosso. Ah, e tem também a Valsa.

- Valsa?

- Valsirene, na verdade. Lá do bairro. Mas a vizinhança toda chama ela de Valsa.

- Meus senhores... pensem no sofrimento dessa criança quando for maior de idade. O bullying que ela vai sofrer na escola. Na hora da chamada. Quando for servir o Exército...

- Olha, por mim esse país estaria todo dominado por Pagode, Axé, Rock, Punk, Funk, Reggae, Jazz, Xaxado, Rumba, Bolero, Tango, Merengue, Rap, mil Macarenas de mãe solteira... e viva a diversidade! Só não curto muito o Blues. Dá uma tristeza...

- Vocês não estão entendendo. Artigo 4266, parágrafo único: é terminantemente proibido registrar substantivos próprios que, porventura, possam eventualmente acarretar algum dano ou mal à criança recém-nascida, de ordem moral ou social, em seu futuro próximo ou distante, que tragam como consequência direta ou indireta qualquer tipo de trauma ou abalo psicológico em decorrência do significado e definição vocabular de tal verbete.

- Dane-se o verbete!

- Calma, minha senhora. Sabe aquele último dia do mês, quando os funcionários de uma empresa não veem a hora de receber o pagamento? Como é informalmente conhecida essa data?

- Dia de pagode!

- Tá vendo? Vocês gostariam que o nome de seu filho fosse atrelado a uma prática mercantilista exploratória, que pouco valoriza a classe trabalhadora? Vocês gostariam que seu filho fosse lembrado uma única vez por mês?

- É, faz sentido... mas e a nossa liberdade de escolha?

- Senhores... pagode lembra feijoada. Já imaginou o filho de vocês ser obcecado por esse monte de comida, feijão que não acaba mais, carne de porco... pensem na obesidade dele!

- Tem razão. Mas a gente ainda quer que nosso filho seja registrado com um traço de brasilidade.

- Mas, pagode? Senhores... pagode é aquele som alto, que não acaba nunca, incomoda os vizinhos. Já pensou um dia o filho da senhora deixar cair a pipa no quintal da vizinha, ir lá tocar a campainha, e ela sai enfurecida, com toalha amarrada na cabeça porque acabou de sair do banho, olha pro rapaz e diz: quem é que veio atrapalhar a essa hora o que eu tô fazendo? Ah, tinha que ser o Pagode!

- É que...

- Pensem na educação do seu filho. Ele certamente vai frequentar uma escola de alto nível. Garotos e garotas estudando pra balé clássico, música erudita. Aí vem a professora fazer a chamada: João Pedro, Anthony, Clarice, Victoria e... Pagode!

- Tá bom, tá bom. Você nos convenceu. Então qual seria a sua sugestão?

- Bom... se eu fosse vocês, iria de Charleston.


Metáfora

- Doutor, é grave?
- Calma, fica tranquilo. Tomando todos os cuidados necessários e os medicamentos que eu recomendar, isso aí logo, logo vai passar.
- Mas... o que eu tenho, doutor?
- Você foi acometido por um quadro de metáfora aguda. 
- Ai, meu Deus... e agora... é como se... os ponteiros do relógio da minha vida estivessem se movimentando mais rápido... é como se o badalo final estivesse mais próximo!
- Não se preocupe. O que você anda sentindo?
- Sei lá, doutor. Meu coração pulsa com a força de um touro e a velocidade de um cavalo. Meu peito dilacerado inspira e expira os ventos gelados da desilusão. O sangue que jorra em minhas veias se transformou num fluido espesso de lubrificante de segunda categoria. Minhas pernas cansadas parecem levitar sobre a aridez cáustica do nosso solo de esperança.
- Mas e a cabeça, como está?
- O que dizer desse globo espelhado de uma discoteca decadente? Essa bola de cristal rotunda e cintilante já não consegue mais prever o futuro. Só se alimenta do ódio e do desgosto do passado. Frequentemente ela é acometida por flechadas certeiras de um guerreiro medieval em plena batalha.
- Estou me referindo ao psicológico. Como estão suas emoções?
- Ai, doutor... é como se as páginas viradas da minha história estivessem voando para os céus e se esvaindo nas estrelas. Difícil conviver com essa bagunça de quarto de criança. Já não consigo mais controlar as intempéries e as tempestades que nascem sem avisar. Momentos de calmaria, raros como uma joia antiga, têm a duração de um contido aplauso de espetáculo, de tão efêmeros e fugazes. O que reina em minha ignóbil existência é a tormenta dos pássaros, a fúria do cárcere, a ira dos deuses.
- OK, anotado... agora me conte um pouco mais das suas relações. Tá tudo bem com sua família? Fale um pouco do seu relacionamento com sua esposa nos últimos dias.
- Doutor, doutor... o que dizer daquela víbora endiabrada? Todo dia, desde que acordo, ela me despreza tal e qual um cachorro faz com um pé de alface. Ignora tudo o que falo, assim como um advogado de acusação diante das declarações de inocência do réu. O negócio dela é me agredir com os açoites dos seus palavrões. Ela me provoca num tom de voz à altura de uma sirene de fábrica. E na hora de dormir? Eu, procurando o aconchego do ninho, com minha volúpia noturna de um gavião, me aproximo de sua pele macia como algodão, para dar o bote de uma serpente. Enquanto ela, na frigidez de sua nevasca, vira de lado, recusa a oferenda libertina, coisa que nem um mendigo faz diante de uma mísera esmola, e põe-se a dormir. Um sono rápido de coelho escapando da armadilha, porém, acompanhado do ronco de uma orquestra sinfônica dos ursos.
- E seus filhos? Me conta um pouco mais.
- Tenho uma filha, doutor. Uma única filha, o número 1 cravado no centro da moeda de real. Ela é tudo pra mim, do zero ao infinito. O problema é que no fim do ano passado foi morar no exterior. A cria decidiu abandonar o conforto do lar que seus algozes proporcionaram durante dezenas de giros da Terra em torno do Sol. Foi estudar Música. Foi aprender com os maestros da vida as duras partituras de crescer e se tornar mulher. De vez em quando a gente se fala. De vez em quando eu vejo de perto seu rosto tão longe quanto a colina de um reino das fadas.
- Perfeito. Só pra concluir: como está seu cocô?
- Desculpa, doutor... preciso responder essa pergunta íntima e secreta de um ritual maçônico? Olha, os pedaços terminais do alimento do meu corpo e da minha alma vão bem, obrigado. Sólidos e maciços como uma rocha, escuros como o azeviche do ébano.
- Então, tá. Vou prescrever essa receita aqui. Tomar duas vezes ao dia, até sentir que os sintomas estão diminuindo. Depois a gente marca uma nova consulta pra eu te avaliar. Ah, e não esqueça: alimentos saudáveis, com pouca gordura, beba bastante água durante o dia, exercícios físicos e boas horas de sono é fundamental.
- Perfeito, doutor. Muito obrigado. Ah, a saída: fica pro lado do comunismo ou do capitalismo?
 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Como fazer um filme pra ganhar Oscar

- Segunda Guerra Mundial. Ótimo tema pra levar a estatueta. Esse assunto sempre comove os velhinhos da Academia. Pode ser um documentários sobre as vítimas e sobreviventes do Holocausto, ou um filme de ficção sobre os campos de concentração, ou sobre os países aliados, refugiados de guerra que ajudaram os judeus, enfim... Vale lembrar que metade dos produtores executivos de Hollywood é semita e a outra metade é de italianos convertidos ao judaísmo.

- Achou o assunto pesado ou batido? Tudo bem. Faz um filme sobre as lembranças de um judeu adolescente nos bairros suburbanos de Nova York que tá valendo.

- Ainda sobre o tema: dê preferência a ator goy para o papel principal. Presta atenção, a concorrência já saiu na frente. Anthony Hopkins, Paul Dano, Stanley Tucci, Mark Strong... Nada de me escalar Michael Rappaport ou Rob Schneider. Se conseguir fazer o Jackie Chan parecer um rabino convincente, o prêmio é seu.

- Temas relacionados aos negros também é uma boa opção. O cinema vem fazendo uma retratação histórica a fim de se tentar corrigir o racismo estrutural. A escolha é livre. Pode ser um filme sobre a Guerra de Secessão, ataques da KKK em grupos de coral gospel ou até mesmo a biografia de um jogador de basquete que sofreu preconceitos.

- Nem pense em gastar muito dinheiro com orquestra. O Oscar de Melhor Trilha já é do John Williams. Mantenha o foco em outras categorias.

- Categorias secundárias, como figurino ou maquiagem, podem ser uma boa estratégia pra se sair vencedor da cerimônia. Mas nada de usar as mesmas táticas do passado, como deixar o Brendan Fraser gordo ou a Charlize Theron feia. A academia já percebeu os truques dessa armadilha. Fique esperto. Próteses de silicone tem em qualquer filme B de terror. Isso você encontra até na 25 de Março, ainda mais que estamos perto do Carnaval. O lance aqui é deixar um ator MUITO parecido com o personagem real do filme. A tal ponto de até ele mesmo se confundir. Escalar o Will Ferrell pro papel do Chad Smith (batera do Red Hot Chili Peppers) seria muita preguiça de sua parte. Se o seu negócio é encarar desafios, faça o Dwayne Johnson ficar idêntico ao Woody Allen.

- Nunca, jamais, em hipótese alguma cogite escalar atores que já receberam precocemente o Oscar e tiveram suas carreiras enterradas por causa disso. Cuba Gooding Jr., Marisa Tomei, Hillary Swank, nem pensar,. Dá um azar da porra.

- Escolha sempre um ator da modinha, que daqui a alguns anos (ou meses) passará a ser tendência. E logo depois será esquecido, não importa seu talento. Jack Nicholson estava sempre na primeira fileira em todas as celebrações, estampando seus óculos escuros e seu sorriso sarcástico. Mas quem se lembra dele na era digital? Leonardo Di Caprio também já era. Bradley Cooper também já teve sua chance. Pense em algo como Timothée Chalamet um sorvete coloret ou a pseudoesquisitaça Millie Bobby Brown.

- Esportes. Taí um outro tema que não é garantia de ganho, mas com certeza entra na lista dos indicados. Aqui é vale-tudo. E não estou me referindo à modalidade de socos e pontapés. Pode ser uma biografia de algum atleta famosíssimo, como Pelé, Maradona ou Serginho Chulapa. Mas pode ser também uma ficção sobre algum sujeito do qual ninguém ouviu falar. Um ex-drogado que vira lutador de boxe, uma tenista pobre e humilde que vai a pé pra escola durante sua infância, ou um jogador de beisebol que cai na bebedeira depois de virar figurinha rara. Só pra lembrar: Bolsonaro nunca foi atleta, tá? Se quiser ser mais criativo, dá uma pesquisada sobre personalidades do curling ou sobre a corrida de mula no Arkansas. Não importa. Mas uma coisa é certa: ao final do filme, durante a exibição dos créditos, é obrigatória a presença de fotos, imagens e som de rádio antigo do verdadeiro atleta.

- Roteiro é outra coisa muito importante. Dê bastante atenção e um cuidado especial aos diálogos. Ultimamente a Academia tem preferido falas densas, cheias de conteúdo. Nem ouse trazer de volta a nouvelle vague e suas conversas do dia a dia. Ou aquele olhar contemplativo e mudo de um Louis Garrel da vida. Esqueça de uma vez por todas o silêncio dos planos do Sokurov ou do Béla Tarr. Aqui o negócio é sério. Nada de frases vazias como "tá tarde, vou dormir" ou "tem cigarro?". Até porque cigarro virou um palavrão tão feio quanto Weinstein na indústria da Sétima Arte. Aqui você vai precisar contratar um roteirista que ganha por letra. Cada fala dos protagonistas deve conter um resumo da história dos Estados Unidos. Faça as associações mais complexas possíveis. Se o tema for um vazamento de informações do jornalismo, despeje toda sua verve mencionando Watergate e vacinas feitas à base de prótons. Não existe vacina de prótons, mas essa é a ideia. Ninguém vai ficar entrando no Google dentro do cinema a cada discurso rebuscado da Jennifer Lawrence. Se o assunto for os escândalos nos bastidores de Hollywood, faça uma correlação entre pedofilia e extinção das abelhas nos países de clima equatorial. De preferência, com falas na velocidade Tatá Werneck, que é pro público não entender porra nenhuma e acreditar em tudo o que está ouvindo.

- Procure, sempre que possível, priorizar temas universais ao invés de assuntos mais regionais ou específicos. Fale sobre aquilo que todo mundo conhece ou entende, como amor, bullying ou vontade súbita de comer chocolate antes de dormir. Isso pode gerar mais empatia. Se houver mesmo uma intenção de tratar de assuntos mais herméticos, atente-se a fatos que foram mundialmente divulgados ou ganharam um destaque na mídia internacional, como a Guerra de Ruanda, os ataques terroristas em Brasília ou a traição do namorado da Shakira.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Amazon

Odeio marketplace. Começo assim esta pequena dissertação para encantar ou afugentar meus leitores. Quem está comigo nessa jornada ou quer simplesmente entender melhor os fatores, siga em frente. Quem acha o novo modelo de compras um universo lindo e maravilhoso, pode parar por aqui e pular para a próxima postagem.

Levar produtinhos pra casa de modo on-line, utilizando as ferramentas de e-commerce disponíveis, nunca foi um dos meus grandes prazeres. Só que, desde que os grandes conglomerados virtuais passaram a adotar tal modalidade, tudo (ou quase tudo) ficou ainda um pouco pior. Tá certo que, de um lado, esse megapólio se esforçou pra trazer um tiquinho a mais de segurança. Durante a viagem da sua mesinha de escritório, do seu par de tênis importado ou de suas cápsulas de emagrecimento com fórmula exclusiva, você fica sabendo todo o trajeto por tudo quanto é meio: SMS, e-mail, notificações push no aplicativo, e por aí vai. Se o entregador ficou parado no semáforo fechado ou parou pra abastecer o tanque, lá vem mensagem pra você. 

Só que, na balança, o contrapeso dos dissabores é maior. Não existe mais o famigerado "estoque". O cartel que domina o mercado simplesmente criou uma rede de parceiros fornecedores. Tudo é terceirizado: do fabricante ao serviço de entrega. Essas empresas cuidam apenas da logística de distribuição. Repare que, ao fazer uma busca num desses portais, o mesmo produto pode aparecer anunciado em duplicidade. E com preços diferentes. Se você fizer a mesma pesquisa em outro portal comparativo, como Submarino ou Buscapé, vai encontrar esses mesmos anúncios. Tudo não passa de um copia-e-cola. Essas empresas são, em última análise, nada mais do que agentes intermediários. Cambistas da Geração Z. Não produzem nada. Não guardam nada. E mal sabem o que estão vendendo. Mas onde elas ganham, se não é no lucro com a venda do produto? Criando um sistema próprio de distribuição, com custos de frete determinados por elas mesmas. Se você acha que elas entraram no mercado para cobrir as lacunas das falidas Mesbla ou Mappin, engana-se. Elas estão aí para ocupar o nicho deixado pelos Correios ou pela FedEx, por exemplo, que vêm acumulando prejuízos operacionais nos últimos tempos.

E o resultado disso? Bom, você sabe. Compra um produto que não sabe se existe, confia na descrição das características sobre as quais ninguém tem certeza, e ainda faz reza brava pra chegar direitinho em sua casa nos prazos e condições prometidos. Tudo na base do achismo.

Como vocês já devem imaginar, não nasci com o ânus virado para o satélite natural da Terra. Já tive alguns probleminhas com o comércio eletrônico. Assim como vocês provavelmente também. Na proporção compras efetuadas x satisfação garantida, a equação foi desastrosa. Tive que reclamar, e brigar, e chamar o Papa em diversas ocasiões. Só pra citar alguns casos: Editora Perspectiva, Americanas, Livraria Cultura e, recentemente, Amazon.

Vou trazer um pouco mais de detalhes sobre a última experiência. A norte-americana com nome de floresta brasileira. Após fazer uma pequena pesquisa, inclusive em lojas físicas, vi que a Amazon oferecia o melhor preço. Eu, particularmente, sempre preferi as lojas de verdade. Você entra, escolhe o que quer, toca na mercadoria, sente seu cheiro, sente seu peso, sente seu gosto. Se informa sobre o que precisa saber. Se tiver dúvidas, chama um vendedor de carne e osso ao invés de entrar num chat e conversar com um bot que não entende nada do que você escreve. Abre a carteira, paga com dinheiro vivo ou cartão, escolhe se é débito ou crédito e sai da loja com uma sacola e duas coisas dentro dela: o produto e a certeza de que a compra foi um sucesso. Já na compra on-line, não. Você acessa a loja virtual, escolhe o que quer, confia nas informações, paga somente com a opção crédito, deixa lá no site registrados todos os dados do seu cartão, tornando isso um ponto vulnerável para eventuais hackers, recebe um e-mail, valida as informações do e-mail como um verificador de segurança, continua o processo, aguarda o recebimento de outro e-mail avisando que sua compra foi aprovada, paga o olho da cara pelo frete, acompanha o trajeto por um código de rastreamento e, mesmo já tendo pago, chama todas as divindades nórdicas para que sua compra chegue no prazo prometido (de 2 dias a uma eternidade, de acordo com disponibilidade do produto) e que você não esteja no banho durante os 5 segundos que o entregador te espera pra atender a campainha que ele tocou.

A compra em questão se tratava do lançamento do livro do indigenista Ailton Krenak, Futuro Ancestral. Era pra ser um presente de aniversário da minha mãe. Infelizmente, o livro não chegou em casa no tempo hábil. O aniversário dela passou, e nada de presente. No site, o aviso de um novo prazo de envio, sem mais especificações. No dia do aniversário dela, recebo um e-mail da Amazon pedindo minha avaliação sobre a experiência de compra. Tipo uma pesquisa de satisfação. Pra falar a verdade, nunca acreditei muito nisso não. "De 0 a 10, qual a sua probabilidade de recomendar...". às vezes até participo, na esperança de poder botar a boca no trombone ou, quem sabe, ganhar um vale-compras. Mas, de um modo geral, sou muito cético em relação a isso. Duvido que o Mc Donald's vá mudar a formulação do seu Big Mac ao ouvir de mim que não gosto de picles. Em todo caso, respondi a pesquisa e fiz uma avaliação insatisfatória, visto que não recebi aquilo que já paguei,.

Coincidência ou não, a encomenda chegou em casa no dia seguinte. E, um dia depois, recebo no meu WhatsApp uma mensagem da LT2 Transportadora pedindo breves desculpas pelo ocorrido e solicitando que eu "apague" minha avaliação negativa ou faça uma nova. Em troca, ofereceriam como cortesia um voucher de desconto na próxima compra ou um box do George Orwell. Num primeiro momento, pensei em recusar. Não sou corruptível. Acho muito importante que os demais consumidores fiquem a par da qualidade dos serviços prestados por esse truste e seus parceiros. Seria essa a forma educada de me calarem a boca? Estariam comprando meu silêncio? Ou será que esse canal de comunicação funciona de verdade, a tal ponto da empresa terceirizada ficar com o rabeto na mão sob o risco de ter seu contrato rompido com a Amazon?

Outra possibilidade de se enxergar a situação seria o reconhecimento de uma falha, seguido de uma recompensa por perdas e danos. Afinal, eles admitiram o erro. Pior seria simplesmente ignorar meu descontentamento. E, como tudo na vida tem seu preço, optei por ser agraciado com um mimo pelo aborrecimento ao invés de sair de mãos vazias. Continuo odiando o marketplace. Mas o box é lindo. Um pack com os livros 1984 + A Revolução dos Bichos + cards temáticos. Agradeço a gentileza.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Bárbaros

Na primeira noite eles se acampam nos quarteis

Vestem-se com a bandeira da pátria

Cantam o hino para os pneus

Bloqueiam ruas e estradas

Insultam as instituições debaixo da chuva fina

E nós não fazemos nada.


Na segunda noite eles invadem o Congresso

Sobem a rampa da democracia com paus e pedras

Destroem a moralidade

Esfaqueiam o Di Cavalcanti

Cortam a cabeça do Brecheret

Dão um golpe fatal no Krajcberg e no Estado

Sangram um cavalo

Mostram suas caras

Mostram suas bundas

E a Polícia não faz nada.


Até que na última noite

O mais frágil deles

Em nome de todos os fracos e covardes

Fala em liberdade

Chora suas doenças

Grita em nome das mães, dos velhos e das crianças

Esconde sua vergonha

Apaga seu rosto das notícias

Aniquila seu caráter

Enterra sua dignidade

E, com as algemas nos punhos e a vacina no braço,

Já não pode fazer mais nada.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Arrombado

Não quero estragar a alegria de vocês. Estamos passando por um processo de reconstrução do país e, ao que tudo indica, as coisas prometem ser menos piores do que no quadriênio anterior. Aliás, feliz 2023 a todos.

Mas, ao passar pelas postagens do meu feed, eis que me deparo com o primeiro anúncio de vaga de emprego do ano na minha área profissional. E não posso deixar de compartilhar minha estupefação. Para o cargo de redator de conteúdo bilíngue, o contratante listou nada menos do que 29 responsabilidades necessárias para o dia a dia. VINTE E FUCKING NOVE. Além, é claro, de dois itens que a empresa considera desejáveis (o famoso "será um diferencial"). Em contrapartida, a descrição da vaga foi muito breve e evasiva ao enunciar o que de fato irá oferecer em troca. Não cita salários ou honorários, apenas esclarece que o modelo de trabalho é híbrido e o regime de contratação é PJ. Ou seja, aquele em que o empregado é patrão de si mesmo, deve se virar e abrir empresa, pagando por conta própria todos os tributos e encargos com serviços de contabilidade. Tudo pra fugir dos esquemas de contratação das antigas leis trabalhistas. E finaliza a postagem prometendo benefícios, mas sequer mencionando quantos e quais são.

Dentre a infinidade de critérios seletivos, não posso deixar de mencionar, para um vulgo redator de conteúdo, "criar plano e táticas para gestão de crise digital" (!!) e (pasme!) "analisar dados, métricas e tirar insights". Ora, ora, vejam só. Não curto muito requentar piadas velhas, mas isso me lembra muito o tipo de resposta que os internautas (outro nome antigo) davam a esse tipo de anúncio: "precisa também ganhar um Prêmio Nobel". O que mais uma vez prova que qualificações absurdas como essa só se encaixam em dois cenários: memes publicitários ou postagens na cômica e fictícia comunidade virtual Vagas Arrombadas.

Não quero aqui menosprezar a competência e as qualificações dos candidatos à vaga em questão. A gente sabe que não tá fácil pra ninguém. Eu mesmo já trabalhei com profissionais altamente capacitados em atributos mais técnicos, matemáticos. Mas o que me chama a atenção é a amplitude do escopo. Talvez a empresa entenda que, quanto maior a lista de exigências, menor a quantidade de pleiteantes. E mais assertivo será o processo de contratação. Na prática, isso tudo me soa como papo furado. É como se estivessem admitindo um cineasta que escreva o roteiro do filme, faça a direção, montagem e ainda atue nele. Profissional assim completo e ao mesmo tempo brilhante, no momento só me vem um nome à cabeça: Orson Welles.

Tá certo que a Propaganda como a conhecemos morreu faz tempo. Não é de hoje que venho dizendo isso. Sou redator publicitário raiz. Daqueles que mostravam o portfólio impresso dentro da pasta do Omar. E não vou dizer que tudo era mais fácil. A gente ficava horas na recepção da agência. Éramos atendidos muitas vezes de modo lacônico e protocolar. Antes mesmo de terminar a rápida entrevista, o premiado profissional nos entregava uma lista-padrão com outros tantos nomes de outros tantos publicitários premiados pra gente procurar. Mas foi nessas condições adversas que aprendi muita coisa. Frases e ensinamentos de algum low profile que se dedicava um pouco mais a ensinar quem estava começando na área ou procurando um lugar melhor. Devo ter visitado quase uma centena desses. E não me recordo de nenhum deles ter me perguntado sobre minha experiência com plataformas de metodologias digitais. Ali, na gigantesca sala de reuniões debaixo de um ar-condicionado em temperatura mínima, eu era elogiado e ao mesmo tempo espinafrado sob um critério único e não menos rigoroso: a criatividade.

Hoje, ao ver minha profissão respirando por aparelhos em seu leito sepulcral, me bate uma certa tristeza. Não pelo seu trágico epílogo em si. Mas por observar os critérios e requisitos da dita modernidade para um posto de trabalho análogo à escravidão.