segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Supermercado e balada


Sempre acreditei que os supermercados nada mais fossem do que uma balada diurna. Ou pelo menos trouxessem alguma semelhança com esse tipo de patuscada. Tanto é que alguns até funcionam 24 horas. Não é para suprir as necessidades de quem madruga, ou atender emergências de algum faminto que lá adentra. É mais pela similaridade mesmo. As baladas estão cada vez mais com cara de empório. E os super/hiper, cada vez mais com cara de locas de entretenimento. Com a vantagem de não cobrar consumação mínima.

Logo de cara, você se depara com a balada da terceira idade: as barracas de frutas e verduras. A faixa etária média do público está prestes a alcançar os três dígitos. Pessoas que foram colegas de classe do Ulisses Guimarães. Aquelas velhinhas que, quando têm força suficiente, fazem questão de apertar todos os tomates para ver se estão bons. Obviamente, eles deixam de estar depois de massacrados. É que nem testar palito de fósforo pra ver se funciona. Mas elas não estão nem aí. Naquele misto de feira livre com festa baile, o negócio é invadir todas as barracas para aproveitar as ofertas como se não houvesse amanhã. Bom, a se considerar a idade dessas frequentadoras, bem capaz do amanhã nem existir mesmo. Portanto, o que resta é aproveitar o dia, ir da laranja pra cenoura num passo de valsa que há décadas não se via. O objetivo é encher o carrinho de abobrinha e chuchu, mas nada me tira da cabeça que as reais intenções dessas octogenárias é encontrar o Agnaldo Rayol. Elas até se produzem para a ocasião: passam maquiagem, usam perfume com cheiro de velório, colocam o melhor calçado. Tudo muito fácil. Difícil mesmo é abrir o saquinho para embalar os legumes. Aquele invólucro transparente destacável que fica armazenado num rolo, sabe? E cabe a você, freguês, única e exclusivamente você, transformar aquela serpentina num recipiente em que caibam os dois quilos de cebola que está levando. Acho um pouco de maldade o supermercado fazer isso com quem está prestes a ter Mal de Parkinson. Uma vez uma senhora conseguiu abrir a embalagem. Os funcionários vieram até ela dançando cancã enquanto caíam mil moedinhas do teto.

É notório que um dos principais motivos que levam o sujeito a sair de casa à noite é encontrar bebida e mulher. Não por acaso, o corredor das cervejas é o mais disputado nos supermercados. Aquilo é uma muvuca o tempo todo. Sempre lotado. A maior concentração de solteiros por metro quadrado. Se o supermercado fosse o globo terrestre, o corredor das cervejas certamente seria o Bangladesh. Tem até um segurança que fica controlando a fila na entrada antes de revistar os consumidores. Ao transitar pela minúscula e concorrida viela, impossível não esbarrar em outro cliente. O que até pode render uma paquera. Com direito a cantadas fáceis e cafajestes, do tipo: “te conheço de algum lugar: Mambo ou Hirota?”, “ia de Heineken, mas agora passou uma Devassa na minha vida”. Esse corredor anda tão congestionado que a Prefeitura Municipal do Carrefour estuda implementar a cobrança de pedágio para quem entrar com carrinho. Ou criar rodízio em horários de pico.

Além das baladas convencionais, existem em São Paulo as festanças mais gourmet. Lugares fechados, em que só entram pessoas com nome na lista. Casas noturnas que são pura ostentação. Decoração banhada a ouro, banheiros em mármore Carrara, taças de cristal. Ao pegar o cardápio e pedir um filé de St. Peter, você não sabe se o valor cobrado é do peixe ou do Oceano Pacífico. Essa equivalência também existe nos supermercados. É o corredor dos vinhos. Se você por acaso parou neste local, pode ter certeza: você se perdeu. Entrou lá por engano. Porque em nichos como esse é onde você demonstra toda a sua vergonha de ser pobre. Seu 1,80 m se transformam em no máximo 1 metro e meio, de tanto que você encolhe. Sem perceber, você diminui o tom de sua voz e acaba travando um diálogo na base do cochicho. Esse espaço VIP é bem seletivo mesmo. Uma vez o Luciano Huck foi barrado, só pra você ter uma ideia. Lá tudo é lindo de morrer. As prateleiras são de mogno. No lugar do cartaz de preço existe um quadro do Miró. E, diferentemente das demais repartições, em que você tem que perguntar pro serviçal dos congelados onde fica a seção de café, aqui existe um profissional qualificado pra te oferecer um atendimento personalizado: o sommelier. Uma figura que você torce pra não estar no Tinder, de tão desleal que seria a concorrência. Pessoa bonita e culta ao mesmo tempo. Uma mistura de Érick Jacquin com Reynaldo Gianecchini. Não é desses que acham que pra ser embaixador do Brasil basta fritar hambúrguer. O dito cujo fez Doutorado em Sorbonne. Durante seu período de estágio, ele mesmo ia catar as ostras no Mar Mediterrâneo. Seu currículo é de fazer inveja ao Hélio Bicudo. E este ilustre sujeito vem até você, somente você, para explicar que o Merlot chileno reserva 2013 harmoniza melhor que o Cabernet Sauvignon na hora de você degustar seu risoto de aspargos e queijo brie. Sinceramente, as únicas coisas que lembro de 2013 são a morte do meu pai e as manifestações pelos 20 centavos. Este último certamente não faz parte das preocupações do público-alvo do corredor de vinhos. Lá eles só aceitam três formas de pagamento: cartão Black, bitcoins e diamantes da África do Sul. Pra você levar um espumante pra casa, precisa deixar seu Palio. E pagar o restante em 12 suaves prestações.

Outro corredor dedicado às bebidas é aquele mais colorido, mais luminoso. Lá onde tem as águas com sabores, os chás, isotônicos, energéticos e, não sei por que, os saquinhos de Tang. Acredite, essa purpurina comestível ainda existe. Esse corredor mais parece uma rave. Pessoas rindo à toa, pulando sem parar, dançando uma dança imaginária, querendo abraçar o repositor de estoque. Elas pegam uma latinha de Red Bull com uma empolgação tão grande, como se estivessem pedindo um autógrafo pro David Guetta. No quesito alegria, eles só perdem pros frequentadores do corredor fitness. Gôndolas e mais gôndolas recheadas de whey protein, saquinhos de quinoa, caixas de aveia, barrinhas de cereais. Esses clientes são saudáveis, excessivamente saudáveis. Musculosos, marombados. Não sei se estão ali para comprar um bolo de linhaça ou para fazer uma série de supino. Pode estar um frio da porra, eles sempre estão de shortinho e com uma camiseta regata e metade dos mamilos à mostra. Ali a felicidade é natural e vem em pó. Se você reparar, vai ver que metade dos nomes dos produtos começa com Nutri. Tudo muito orgânico, muito equilibrado e, por que não dizer, tudo muito chato.

Outro corredor bastante movimentado é o das comidas rápidas. É aqui que bate a larica nos frequentadores. Vontade desesperada de colocar algo sólido na boca pra dispersar o efeito do álcool. Repare que sempre tem uma embalagem aberta de biscoito, ou um queijo carcomido nas pontas. O pessoal olha aquelas barraquinhas de degustação e acha que é um food truck. Aquilo é uma verdadeira zumbilândia. Notívagos balbuciando frases indecifráveis e hipnotizados ao ver carne crua. Por falar em carne, existem duas coisas que me deixam confuso: samba-rock e hambúrguer vegano. O samba-rock não é samba, muito menos rock. Quando começa a tocar um Jorge Benjor na pista, eu não sei se devo chamar pra dançar aquela moça que estou paquerando desde que cheguei, ou cochilar no sofá em sinal de desistência. Porque eu adoro rock, mas odeio samba. E não faço ideia de como seria bailar (I Can’t Get No) Satisfaction na versão dois-pra-lá-dois-pra-cá. Por outro lado, o hambúrguer vegano não me deixa nem um pouco confuso. Já não se pode dizer o mesmo em relação aos funcionários. Eles devem ficar perdidinhos com essa invenção. Não sabem se colocam a embalagem ao lado das almôndegas ou da chicória.

O corredor que mais me agrada é o mais vazio. Onde tem os produtos que ninguém compra: vassouras, rodos, velas de aniversário, cola plástica, embalixo, inseticida. Esse corredor parece as Lojas Mel. Tem de tudo o que você não precisa. É um lugar ótimo pra você fazer o que quiser, pois ninguém está vendo. A última pessoa que por ali transitou foi dada como desaparecida. Essa via é tipo o nerd das baladas: surge do nada e depois você nunca mais o vê. Um excelente lugar pra você usar como o ficódromo da noite. Faz assim: começa a chavecar a moça que você acabou de conhecer no corredor das cervejas. Assim que o clima esquentar e começar a faltar assunto, fala pra ela: “a gente podia ir prum lugar mais tranquilo”. Ela vai fazer cara feia pela sua ousadia, mas tudo bem. Você a conduz para esse corredor das naftalinas e lasca um beijo entre uma escumadeira e outra. E aqui vai um conselho. Se você estiver com bafo, se seu hálito tiver prazo de vencimento em outubro de 2016, sugiro antes do beijo fazer um enxágue de Pinho Sol, que está na prateleira bem abaixo do jogo americano de toalhas.

Por último, a hora de dar tchau. E de pagar. Repare que os caixas abrem filas pra tudo quanto é tipo de habitué. Tem os caixas-rápidos, para as pessoas decididas e pragmáticas. Consumiram muito pouco, sabem de cabeça o valor total da conta e já tiram do bolso a quantia trocada exata. Já o inverso do anverso do anteverso do oposto do contrário são todos os outros caixas. O resto. Filas quilométricas, das quais você só vai conseguir sair quando estiver amanhecendo. Pessoas que passam os produtos, devolvem os produtos, esquecem o cartão, metade débito, metade crédito, metade vale-refeição, esquece a senha do vale-refeição, cupom de desconto, chama o gerente pra validar o cupom, pega um maço de cigarros, faz recarga de celular, não sabe o valor que quer fazer a recarga, cartão inválido. Se sóbrio já seria difícil completar essa operação, imagine bêbado. Parece que essas filas são compostas por vários Rubinho Barrichello. Enquanto um está passando, na fila ao lado já passaram dezesseis. O sujeito que acabou de chegar na balada consegue pagar antes. Enquanto você espera, dá tempo de tomar café da manhã. E chamar o Uber. E saber da vida inteira da moça que conheceu tomando uma Stella.