sábado, 30 de julho de 2022

Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída

Não são poucos os filmes que se aproveitam oportunisticamente de transcrever para as telas best-sellers literários e provam ser verdadeiros fiascos, como é o caso da saga Crepúsculo e da trilogia 50 Tons de Cinza. Eu, Christiane F., está um pouco acima dessa régua. O que não quer dizer muita coisa. Fez até um certo burburinho à época de seu lançamento mas, revisto 40 anos depois, em cópia remasterizada para marcar essa edição comemorativa, deixa claro por que caiu no ostracismo. 

O longa, que retrata uma juventude sem rumos, até poderia ser elencado como um dos ícones da década, não fosse outro problema: a eclosão de cineastas magistrais como Herzog, Wenders e Fassbinder. Não tem como competir.

O filme se passa na virada dos anos 70 para os anos 80. Um constatado limbo histórico. O movimento hippie já não tinha mais o poder de mobilizar multidões de jovens egressos de Woodstock. E a era disco, junto com o punk e o new wave, ainda sibilavam notas embrionárias do que viriam a ser anos mais tarde. Não é à toa que o personagem mais representativo do filme não é a drogada adolescente, mas o camaleônico David Bowie, interpretando a si mesmo, durante um show que ocorreu de verdade em Berlim. 

Eu, Christiane F., situa-se perfeitamente nesse vácuo social. Traz à tona famílias desestruturadas e uma horda de jovens que trocaram a revolução estudantil por um tipo de experimentação mais efêmera e individual: a heroína. Moleques que, atordoados pelos efeitos alucinógenos, não sabem exatamente qual seu papel na sociedade: onde estão e para onde vão. Tanto é que boa parte é filmada dentro de estações de trem, em que aparecem vagões em trânsito, indo e vindo sem que o espectador saiba seu destino.

Do ponto de vista estético, o diretor Uli Edel mergulha fundo no universo das drogas. Algumas cenas de jovens se picando podem até ser chocantes para um público mais sensível e menos iniciado, mesmo nos dias atuais. É agulha, seringa e sangue pra tudo quanto é lado. Talvez essa provocação, que resulta numa possível sensação mais aflitiva, seja uma maneira de Edel mostrar seu viés ideológico contrário a esse modus vivendi. Mas isso é apenas uma hipótese.

Se por um lado o diretor se aprofunda na primeira metade do subtítulo, por outro deixa muito a desejar na segunda fatia. Quase não há cenas de prostituição. A parte em que Christiane F. masturba um cliente dentro do carro é filmada do lado de fora do para-brisa, a metros e metros de distância. A cena do casal de namorados se despindo é feita de modo apressado, sem nenhum tipo de nuance e com um apelo sexual muito mais sugerido do que explícito. Sugere-se que o filme foi feito pra incomodar mas, na realidade, traz significantes muito mais presbiterianos, dando a entender que, na alma, Eu, Christiane F. é um produto pudico e recatado. Ou essa solução serviu de artifício para encobrir a falta de intimidade do diretor em filmar a sexualidade dos personagens.

Não foram poucos os diretores que se debruçaram nessa temática lost boys, cada um à sua forma autoral. Em Kids, Larry Clark explora suas crias quase de modo ejaculatório, como se fosse um voyeur querendo ser o protagonista de todo aquele bacanal regado a psicotrópicos. Já Gus Van Sant praticamente abençoa e venera seus rebentos da era grunge em Paranoid Park, mostrando que o ser humano é bom e desencanado por natureza. Bruno Dumont faz exatamente o contrário. Em seu longa de estreia, A Vida de Jesus, planta a sementinha de um olhar menos generoso (e posteriormente mais caricato), trazendo analogias concretas para defender sua tese de que o indivíduo é, literalmente, fruto de uma deformidade social. Comparado a eles, Uli Edel concretiza um registro meramente morno e apático da juventude alemã. 

Eu, Christiane F., enquadra-se na tríade sexo, drogas e rock and roll das festas e dos rolês. Mas parece ser meio que um convidado deslocado dessa patuscada. Sobre as drogas, enfia a agulha mas não atinge a veia. Lança um olhar apenas epidérmico. Na questão do sexo, parece usar preservativo duplo, de tão asséptico e distante que se posiciona. Já o rock and roll parece surgir de modo mais orgânico. A cena dos jovens roubando uma loja ao som de Heroes é o momento mais genuíno e emblemático. Afinal, quem são os heróis dessa sociedade letárgica e moribunda?