domingo, 29 de agosto de 2021

Kairós

Cá estou eu, no recôndito suplício

A pedir um minuto do teu jeito.

Tentar a segunda chance é meu ofício,

Fazer de novo o que ontem foi perfeito.

 

Do teu hoje eterno minha alma carece.

Por tua voz melíflua meu urro se afina.

Todo o meu mundo tua vida merece

Pra cantar nosso amor, mulher menina.

 

Já não sei tirar a dor do meu peito,

Me entregar ao brilho que te aparece,

Me envolver no teu colo em nosso leito.

 

Contemos nossa história desde o início.

Tudo o que não fiz o tempo elimina

Porque és minha flor, meu calor, meu vício.

 

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O passado vai passar

 Vi ontem no noticiário que uma manada de elefantes asiáticos atravessou parte do sudoeste da China e invadiu casas e plantações. No mesmo programa, no bloco imediatamente posterior, falou-se sobre o desfile militar de carros blindados das Forças Armadas, que saíram do Rio de Janeiro e foram até o Palácio do Planalto, em Brasília, com o objetivo de se entregar a Jair Bolsonaro um convite para o treinamento dessa maquinaria pesada. Faz todo sentido. Intencional ou não, o telejornal estabeleceu uma analogia tão lógica quanto patética. Esse paquidérmico exibicionismo de tanques, lança-foguetes e outras carroças bélicas, bancado com o dinheiro público que saiu do seu bolso, mostrou o quão selvagens ainda somos diante das novas trajetórias mundiais. 

Esse ato anacrônico coincidiu precisamente com dois eventos na esfera política. Concomitantemente ao nababesco séquito estava sendo votada pela Câmara dos Deputados a PEC do sufrágio impresso auditável. Na outra ponta, generais e coronéis estavam sentados no banco dos réus e investigados para depor na CPI da Covid, na condição de intermediadores de negociatas. Por essa razão, o cortejo verde-musgo foi interpretado, além de descabido e desnecessário, como uma demonstração de força de Bolsonaro, uma ameaça, uma provocação à democracia e suas instituições. Discordo. Esse ato ridículo está mais para um retrato do que uma afronta.

É notório que Bolsonaro tem um apego exacerbado pelos costumes conservadores. Nutre uma obsessão compulsiva por fardas. Bate continência quase como um tique nervoso. Assistir a uma demonstração como essa enquanto o país se desmonta, portanto, não é nenhuma surpresa ou novidade. Essa é a prioridade de seu não-governo. Nos tempos da informática, das redes sociais, um convite poderia muito bem ser feito por e-mail ou WhatsApp. Ou, na pior das hipóteses, por meio de um impresso a ser entregue por courier ou enviado pelos Correios. Não era você que queria provar mais eficácia e agilidade da estatal após a privatização, senhor presidente? 

Como já sabemos, o Brasil é um pária universal na questão ambiental. Enquanto as nações desenvolvidas discutem em caráter de urgência, no ano em que estão ocorrendo as maiores catástrofes climáticas da história, os líderes do nosso trespassado território parecem não dar a mínima. Coloca-se em pauta a redução da emissão de gases poluentes na atmosfera, a desaceleração na fabricação de equipamentos movidos a combustíveis fósseis, o desenvolvimento de fontes de energia renovável, e por aí vai. Aqui, não. Muito pelo contrário. Vivemos no eterno retorno do retrocesso. No saudosismo de meio século atrás. Ostentar pelas ruas essas engenhocas ultrapassadas é, portanto, uma questão de coerência. Essa passarela de enfileirados répteis rastejantes, rotundos, morosos e poluentes, trouxe ao nosso imaginário o  tragicômico festival de horrores, como se o país tivesse acabado de ser convocado para batalhar na Primeira Guerra Mundial. Não vejo nenhuma prerrogativa de golpe de Estado quando nosso líder se mostrou hipnotizado e embasbacado por meros canhões de Navarone atrapalhando o trânsito do progresso. Não há uma articulação programática para isso. O que assistimos foi apenas um ritual de culto e endeusamento a um passado carcomido de ferrugem. Datado e antiquado como o voto em papel, prestes a rodar num mimeógrafo e ser enviado ao TSE por fac-símile. Bolsonaro é a selfie polaroide desse retardo, 

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A letra Y

 Ali na rua principal de um pequeno bairro da periferia, na geladeira do mercadinho do Seu Luiz, residia a letra Y da latinha de Coca-Cola. Era uma lata exatamente igual às outras, a não ser por um detalhe: ela não era tão desejada quanto suas metálicas irmãs. Quem passava perto do translúcido refrigerador optava por esticar suas mãos a fim de pegar unidades alfabéticas mais comuns. Letra A, por exemplo. Mesmo disponível em grandes quantidades, esses gêmeos invólucros logo sumiam do congelado andaime. "A" de amor. "A" de alma. "A" de Andréa. Sua agregada mais nova, a letra B, também era relativamente bem disputada. "B" de bondade. "B" de Beatriz. Até mesmo a tortuosa letra S tinha seu fã-clube que a fazia pernoitar por poucas horas no congelante domicílio. "S" de saúde, algo muito mais do que valioso nos dias de hoje. "S" de saudade. "S" de Salvador, nome e adjetivo ao mesmo tempo. Já a nossa protagonista não gozava do mesmo destino. É muito difícil ser Y no Brasil.

Os dias foram se passando. As latas do mais famoso refrigerante mundial foram desaparecendo do estoque, o que deixou o Seu Luiz ainda mais rico e mais contente. Várias correligionárias contribuíram para o constante tilintar de moedas na caixa registradora da mercearia: R, E, T, C, M, D... menos Y. A penúltima espécie da linhagem do abecedário se sentiu tão órfã quanto um pet de feira de exposições, preterido em última instância no momento da adoção.

Essa sensação de abandono foi crescendo no coração de Y. As baixíssimas temperaturas do inóspito frigorífico que se perpetuavam ao longo das datas deixaram a personagem ainda mais gélida e frígida. A cada hora, Y ia perdendo um amigo que se via acolhido por algum sedento consumidor. À medida que novos companheiros de cela chegavam, Y ia sendo colocada ao fundo do reservatório, num ambiente ainda mais congelante. Era praticamente impossível enxergar Y debaixo de uma espessa camada de névoa, atrás de tantos novatos pescoços.

Em certa ocasião, um desastrado movimento de mãos desconhecidas fez com que Y voltasse à primeira fileira de exibição e ganhasse novamente os holofotes Ali restava uma nesga de esperança. Y poderia ser o prólogo de "you". De "young". Ou, ainda, a representação iconográfica de braços levantados ao alto, comemorando a alegria da vitória, num derradeiro e emocionado gesto de superação. Esse repentino contentamento fez com que Y perdesse o equilíbrio e se tombasse na prateleira, permanecendo deitada por alguns instantes. Foi nessa visão horizontal de mundo que a renovada protagonista conheceu K e W, seus mais novos amigos igualmente estrangeiros. Era o que bastava para Y acreditar que a união das minorias faz a força. Achou que, juntos, o inseparável trio poderia despertar mais a atenção dos transeuntes. Enfim, a diversidade. Y ganhou colegas, outrora rejeitados, e passou a crer que a língua é tão universal quanto a vontade de matar a sede.

Dias depois, porém, o trágico aconteceu. Numa tacada só, seus amigos foram simultaneamente acolhidos por mãos quentes e apaixonadas. A poucos centímetros de distância Y viu a liberdade, muito longe dela. Wesley ofereceu a lata K para sua namorada Karen. Em troca, recebeu a lata W de seu eterno amor. 

Ao ouvir o borbulhante chiado do refresco gaseificado após o curto estampido da tampinha que se abriu, Y se deu conta de que o que rege o nosso planeta é a sorte. Por que, meu Deus? A latinha estava lá, o tempo todo, à espera de ser abusada pela Yvone ou pelo Ygor. 

E foi assim que Y permaneceu reclusa em seu canto. Sem vontade de olhar sequer para o estonteante colorido das vizinhas Fantas e Guaranás. Nossa rejeitada Coca-Cola foi envelhecendo. Perdeu o brilho ofuscante nos olhos de alumínio. Perdeu o gás de viver. Estava prestes a perder o prazo de validade. Só queria desaparecer, no meio do novo lote de latas sem letra alguma que acabaram de chegar. Cada abre-e-fecha da emborrachada porta da geladeira provocava nela uma avalanche de lágrimas que escorriam pelo seu corpo vermelho.

Essa foi a história da nossa latinha. Tentou ao máximo seduzir os fregueses do mercadinho do Seu Luiz, exibindo seu corpo estonteante na vitrine transparente, como se estivesse do lado de dentro de uma cabine de peep show. Demonstrou a todo custo sua vontade de ser tragada, de ser lentamente sorvida por ávidos atletas ou até mesmo obesos em estado de diabetes. Não se importou em saber que seu funeral poderia ser num depósito de recicláveis, e que seu cortejo seria realizado por catadores de lixo. Não baixou a guarda quando descobriu que poderia servir de cinzeiro, que sua boca poderia ser obstruída por um chiclete, e que poderia sofrer sérios acidentes em colisões que danificassem sua cintilante lataria. Mesmo assim, nessas condições ainda haveria vida. Nossa coitada Coca, entretanto, nasceu e cresceu cheia, completamente cheia, transbordando até a medula o vazio de sua existência.