quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Já vai tarde

 

É, pois é, 2020... estou aqui ao seu lado, neste hospital lotado, segurando sua mão, conversando com você, e eu só tenho uma coisa a te dizer: quero mais é que você morra.

Sei que você está inconsciente, respirando por aparelhos no seu leito de morte, mas tenho certeza que tá me ouvindo. Te desejo isso, do fundo do meu coração, pelas maldades que você fez. E você aí, intubado, merece esse castigo pelo tanto de pessoas que deixou nos corredores, tossindo, agonizando, à espera de uma vaga. Não tem vergonha na cara não? Só aqui você infectou mais de 7 milhões de pessoas. Matou quase 200 mil, deixando as famílias sofrerem enlutadas por causa desse coronavírus que trouxe da China, dos morcegos, dos tatus, sei lá de onde. Precisava ser tão cruel?

Seu pacto com o demônio começou bem antes da pandemia. Já em janeiro você começou a praticar o mal. Não deu trégua a ninguém, por um segundo sequer. Brincou de fazer chuvas, só que pegou pesado demais. Alagamentos, desmoronamentos, desabrigados em várias regiões do país, como Osasco e Baixada Santista. Resolveu botar um pouquinho de um tal de dietilenoglicol na cerveja da cervejaria mineira Backer, intoxicando várias pessoas e matando algumas delas. Não teve infância não? Parece que seu negócio é mesmo envenenar aquilo que a gente bebe. Botou um treco aí, parece que geosmina, na água do Rio de Janeiro, fazendo com que os cariocas não tivessem outra opção a não ser tomar água suja e fedida, cheirando a esgoto.

Aí depois veio aquilo que a gente já sabe. Ou melhor, não sabe. Ou não sabia. Você deixou todo mundo confuso. Até os médicos, as autoridades máximas da OMS, entraram em contradição. Fala a verdade, você só fez isso pra agradar seu ego. Quis assustar o mundo inteiro: surpresa! Era novidade todo dia, notícias contraditórias. Será que o vírus passa em contato com superfície? É contagioso como o ebola? Por que criança e cachorro não pegam? Se eu ficar com febre e dor de garganta, devo ir pro hospital ou ligar pro médico? Mas e seu eu for pro hospital, será que não corro o risco de pegar ali a doença? Que sacanagem... Até mesmo o renomado dr. Drauzio Varella no começo disse que isso era uma gripezinha. Depois pediu pra tirar esse vídeo do ar porque se arrependeu do que falou. Nem os médicos, doutores catedráticos em tudo, tinham as respostas. Sim, o Drauzio, tá lembrado? Aquele que entrevistou um travesti na prisão para o Fantástico, tomou as dores da solidão do entrevistado e depois virou meme. Bom, pelo menos isso você nos deixou de bom. Nunca se produziram tantos estudos, tantas pesquisas científicas em tão pouco tempo. Começamos a valorizar mais os médicos, os infectologistas e os profissionais de saúde que trabalham na linha de frente, salvando pacientes terminais no meio desse verme desconhecido. Quem diria que um dia o Atila Iamarino se tornaria campeão absoluto de visualizações em seu canal?

Só que eu não tô te elogiando, viu, seu safado? Muitos desses médicos e enfermeiros perderam suas vidas. Os que ficaram precisaram ser afastados por suspeita de contágio ou por estresse. Você deixou o sistema de saúde pública caótico no mundo inteiro. E junto com essa busca desenfreada pela ciência e pelo conhecimento vieram os negacionistas. Vai me dizer que não sabe o que é. São aqueles que acham que a Terra é plana. Que se recusam a tomar vacina. Que acreditam no isolamento vertical. Que desafiam autoridades e não usam máscara nem por decreto. Que vivem falando que a dengue matou mais pessoas, é tudo alarme falso da mídia esquerdopata.

Você é um sádico, 2020. Proibiu as pessoas de se abraçarem, se beijarem. Agora a gente olha cada um na rua que espirra como um suspeito, um inimigo. E não vem com esse papinho de que mesmo à distância estamos próximos um do outro. Bullshit! Você isolou todo mundo. E eu não tô falando só do fato de se ficar em casa, não. Você criou bolhas. Polarizou a sociedade que já estava polarizada. Você dividiu em vez de somar. Nunca vi tanta lacração e tanto cancelamento, na mesma proporção.

Quer que eu continue? Então... Sobre esse lance do confinamento... Você encheu nosso saco com esse papo furado de solidariedade, de se reinventar, ah, agora tá todo mundo se dedicando mais à família, fazendo ginástica em casa, todo mundo aprendeu a fazer pão, home office pra cá, home office pra lá, nhé nhé nhé... tudo conversa pra boi dormir. Você só conseguiu despertar o pior das pessoas. Nunca nos vimos tão egoístas e apavorados. Os casos de ansiedade e depressão cresceram na velocidade da luz. Você foi mais letal que seu bisavô 1918, o ano da gripe espanhola. Você fez um estrago na Economia ainda maior do que seu avô 1929, quando houve a quebradeira da Bolsa. A recessão para os próximos meses vai ser incalculável. E não sou eu que tô falando. São os especialistas do setor. Empresas de tudo quanto é tamanho fecharam suas portas para todo o sempre. A Sony se pirulitou daqui, depois de quase meio século. Vão pra falência principalmente as pequenas, que não conseguiram um bote salva-vidas dos bancos. Restaurantes tiveram que aprender na marra a fazer delivery só pra pagar as contas e manter o mínimo de funcionários. Isso pra quem conseguiu se manter no emprego. Só aqui no Brasil a gente soma 14 milhões de desempregados. Você teve a pachorra de acentuar ainda mais as desigualdades, a fome, a miséria.

2020, você é um verdadeiro filho da puta. Olha só o que você aprontou. Explodiu o porto de Beirute. Criou uma nuvem de gafanhotos. Quer trazer de volta as pragas do Egito, é isso? Tacou fogo no Hospital de Bonsucesso. Por acaso você acha que é Nero? Tenha dó! Pacientes que estavam sendo tratados de Covid morrem na transferência para outro hospital. Muito irônico, você. A pessoa escapa da morte de um jeito e morre de outro. Aliás, você não perdoou o Rio de Janeiro nem um pouco. O que tem contra a Cidade Maravilhosa? Escândalos na Saúde, compra superfaturada de respiradores e equipamentos de proteção, hospitais de campanha que não foram entregues... e as praias lotadas de Copacabana? A corrupção foi tanta que tivemos que impichar o governador Auchwitzel e enviar mandado de prisão domiciliar pro prefeito Crivella, acusado de chefiar o QG da propina. Sim, aquele que no começo da pandemia queria que todo mundo pegasse logo a doença pra criar imunidade de rebanho pra não precisar gastar um centavo com cuidados médicos com a população. Aquele que dava ordens por zapzap pros seus guardiões, para que impedissem a entrada de jornalistas nos hospitais pra fazer cobertura do estado calamitoso desses hospitais e enfermarias.

Você é um lixo, 2020. Simplesmente acabou com a nossa Cultura. Fez um desmonte geral em nome da ideologia. Botou um ministro que fez um pronunciamento com todos os requintes de um vídeo nazista. Depois botou a Regina Duarte. Pois é... a namoradinha do Brasil, lembra? Falou que tinha saudades de cantar uma música da ditadura, deu um piti numa entrevista ao vivo, parou no meio, disse que tinha tanta coisa boa pra falar... pelo jeito não tinha, né? Entre namoro, casamento e divórcio, foram menos de três meses. Se é pra colocar alguém que casa e separa em tempo recorde, seria melhor botar a Gretchen de ministra. Cê sabe quem é. Aquela que um dia foi a rainha do bumbum. E resolveu jogar toda a sua bunda pro seu rosto. Fez um monte de plástica, aplicação de botox... esse ano ela resolveu fazer uma tal de harmonização facial. Um treco aí que você colocou em moda. Até o padre Fábio de Melo você conseguiu convencer a aderir a essa porra. Mas voltando... depois da Regininha, você colocou aí no cargo um galãzinho de Malhação pra cuidar da pasta. Sim, uma pasta. Você reduziu esse ministério a pó. Acabou de vez com a Cinemateca, demitindo funcionários de carreira. Reabriu os cinemas no Dia das Crianças, exibindo uma versão final do diretor de Apocalipse Now. Quem diria... o apocalipse nas telonas... nada mais faria tão sentido nesse momento tão dramático que você promoveu. Você trouxe toda a tristeza para as artes. Esvaziou plateias. Atores de teatro tiveram que fazer suas peças olhando pra cadeiras com balões vermelhos. E quer saber de uma coisa? Eu ODEIO lives! Não aguento mais essa cantoria virtual, cada tenor ocupando 1 centímetro da tela do meu celular. Cadê a emoção? Cadê o calor humano? Você deixou tudo muito plástico, mambembe, improvisado, artificial. Eu quero é a vida de volta!

E na Educação, então? Você deixou os alunos sem aula por praticamente todo esse período. Você privilegiou quem tem internet boa em casa e condições de aprender todo o conteúdo sozinho no quarto. Você criou um vão enorme entre as crianças ricas e as mais pobres. Isso sim é distanciamento. As consequências desse atraso no ensino vão ser sentidas pelos jovens durante a próxima década inteira. Você nomeou para ministro um maçom evangélico que não fez absolutamente nada a não ser adiar a prova do Enem e ficar tuitando o dia inteiro. E com erros de Português! Ele era seu homem de confiança. Um cara que falou que tinha que prender aqueles vagabundos ministros do STF. Depois quis nomear um ministro que deixou de ser sem nunca ter sido, por causa de um currículo mais falsificado que whisky paraguaio. E agora botou lá outro ministro da sua ala religiosa, que acha que bater em criança serve de corretivo.

Você é um traste, 2020. Promoveu o ódio, a intolerância, o preconceito. Achei que tudo isso fosse uma página virada na história. Como fui ingênuo... você matou George Floyd por asfixia, dando início a uma série de manifestações no mundo inteiro como a gente nunca viu nesse século. Vidas negras importam, sabia? Achei que isso serviria de aprendizado. Que nada! Logo depois, na véspera de um feriadão, Dia da Consciência Negra, você me aparece no Carrefour e mata o João Alberto usando o mesmo método. Que vergonha... E ainda por cima tem a cara de pau de falar que no Brasil não existe racismo. Sim, o Carrefour. Não adianta livrar o supermercado da culpa, não. Ele não é réu primário. Já matou cachorro, já escondeu cadáver embaixo de guarda-sol, enfim...

E o que você fez com as crianças, seu bosta? Apertou o botão do elevador de um prédio de luxo lá de Recife só pra se livrar do Miguel, filho da empregada que foi passear com o SEU cachorrinho de estimação. Caiu do 9º andar, morreu na hora. Tinha só 5 anos, coitado. E o adolescente João Pedro, de 14 anos, lá em São Gonçalo? Morreu enquanto estava brincando dentro de sua própria casa. Precisava dar 70 tiros? E as meninas Emily e Rebecca, de 4 e 7 anos, que também morreram enquanto brincavam? Tiros de fuzil numa operação policial! Em Duque de Caxias, esse mesmo Rio de Janeiro que você tanto detesta. Nossa, só de lembrar me dá vontade de chorar... culpa sua, seu ignorante, que não prepara a PM pra proteger e servir a população.

E o que falar das mulheres? Cê não curte muito elas, né, seu babaca? Mais uma vez, batemos recorde de casos de feminicídio. Foram quase 700 durante o ano. Só no Natal foram meia dúzia. Inclusive uma juíza, morta a facadas na frente de suas filhas. Você veio com esse papo de ficar em casa, que é o lugar mais seguro... que nada! Você só fez aumentar o número de ocorrências policiais decorrentes da violência doméstica. Foi agressão atrás de agressão. Foi graças a você que tivemos um número maior de divórcios. Você não poupou ninguém, seu misógino do caralho. Apalpou os seios de uma deputada, em pena sessão na Assembleia! Cometeu assédio sexual com a Dani Calabresa. Você é horrendo. E ainda quis minimizar a questão. Estupro culposo, que porra é essa? Até seu amigo Robinho foi acusado de estupro e, em vez de se desculpar e criar um movimento de conscientização sobre a causa, sabe o que ele fez? Ficou tirando sarro nas redes sociais. Vergonhoso. Você expôs uma vítima ao constrangimento em plena live judicial, como se ELA fosse a culpada por ter se insinuado. Estupro é coisa grave, mas parece que você não se importa muito, não é mesmo? Lembra daquela menina de 10 anos que foi sexualmente violentada pelo próprio tio? Teve que ir escondida no porta-malas do carro até o hospital pra fazer o aborto. Isso porque você é retrógrado, cara. Vive na Idade Média. Ficou lá, na porta do hospital, fazendo protestos e tentando impedir a cirurgia. Se liga! A Argentina acabou de aprovar a lei do aborto. E você aí, continua falando sobre kit gay e mamadeira de piroca.

Bom, nem precisa falar sobre o meio ambiente, né? Você simplesmente fodeu com a natureza. Incêndios florestais na Austrália, incêndio na Flórida, que atingiu quase 4 mil carros... Foi triste ver aquelas imagens de animais mortos, ou feridos... Você esquentou ainda mais o planeta. Tivemos o verão mais quente dos últimos 70 anos. E aqui no Brasil não seria diferente, né, seu testa de catzo? Todas aquelas queimadas no Pantanal. O desmatamento recorde na Amazônia. Você foi uma verdadeira mãe para os madeireiros, posseiros, grileiros. Passou vergonha ao lado de Al Gore, dizendo que quer explorar a Amazônia junto com ele. Que ridículo... Você é motivo de piada no exterior. Vários investidores europeus vão deixar de investir aqui por causa de sua política de abrir as pernas nessa questão. Sabia que muitos estrangeiros começaram a boicotar os produtos que você fabrica? E aquele papelão na reunião ministerial? Diante de tanto desmatamento e tanto descaso com o meio ambiente, você chega e fala: passar a boiada?

Você é sórdido, 2020. Prometeu acabar com a corrupção no país.  Só que, na real, foi um dos mais corruptos da história. O escândalo das rachadinhas, com o Fabrício Queiroz operando essa grana toda. Sabe? Aquele que foi encontrado escondido nos porões da casa de Wassef, o advogado da família de Bolsonaro. Ninguém soube explicar de onde vieram os R$ 89 mil que ele depositou na conta da primeira-dama, Micheque. Teve a loja de chocolate que serviu de fachada para lavagem de dinheiro. E o Gabinete do Ódio, que foi financiado com dinheiro público para divulgar fake news nos grupos de zap? Na cara dura, numa das salas do próprio Palácio do Planalto.

Nem preciso falar muito sobre a Saúde, né, seu calhorda? Nunca tinha ouvido falar em lockdown. Comorbidade e perdigoto viraram palavras tão corriqueiras quanto puta que o pariu. Quase 1 milhão de pessoas já morreram dessa praga. E tem gente que ainda bate de frente com as autoridades. Você vive negando a gravidade da situação. Anda de cavalo no meio da multidão. Dá um rolê de Jet ski. Vai praticar tiro, seu esporte preferido, enquanto os estados e municípios abrem valas comuns para enterrar os mortos. Esquece de usar a máscara, ou faz isso de propósito. Passa a mão no nariz e depois vai cumprimentar um apoiador. Você é um porco, mesmo. Até a ema resolveu te bicar! Patético... Toda hora você arruma treta com os governadores. Boicota as vacinas. Comprou um estoque de milhões de caixas de cloroquina, mesmo que o medicamento não tem comprovação científica! Você está longe de ser um mito. Você é um genocida. Foi um dos mais omissos no combate à pandemia. Trocou de ministro três vezes. O primeiro até que era bom. Profissional da área, entendia do assunto. Mas esse último aqui... pelamor... general na ativa? Reconhecido pela sua logística, mas que não sabe planejar nada? Deixou milhares de testes estragarem nos galpões de um aeroporto. Esqueceu de comprar seringas para as vacinas. Não faz ideia do que seja o SUS. Tenha dó!

Eu ainda queria falar um monte de coisa, seu crápula. Mas sei lá, você já tá morrendo mesmo... Aquela vexatória reunião ministerial, com um monte de baixaria... e eu nem tô me referindo aos palavrões! A demissão do Moro, seu ministro mais forte, por causa das provas que ele tem sobre sua nomeação para a Polícia Federal. Imposto zero para importação de armas... aquela desafinada sanfoneira de Ave Maria... aquele cercadinho de minions, que vinha te aplaudir e bater em jornalista... aquele bando de ultra-reacionários, que vieram vestidos de Ku-Klux-Klan pra atirar fogos de artifício em direção ao prédio do STF... Sara Winter, putz... aliás, o que não faltou foram reaças vestidos de verde-amarelo, né? Querendo o fechamento do Congresso, pedindo a volta do AI5... e você aí, rindo de tudo isso, adorando o movimento... você não presta.

É, tô vendo aqui o monitor do seu leito... seus batimentos cardíacos aumentaram, né? Sabia que você não estava totalmente inconsciente. Mas calma que eu ainda não acabei. Não posso deixar de mencionar as asneiras que você falou, meu caro repugnante 2020. Quase todo dia você ia pro seu curralzinho ou pras redes sociais falar uma merda diferente. Nem consigo me lembrar de todas, porque meu ouvido não é penico. Mas algumas ficaram ecoando aqui na minha cabeça. Gripezinha... e daí?... não sou coveiro... cala a boca... vontade de encher sua boca de porrada... quem é de esquerda toma Tubaína... quem toma refrigerante cor-de-rosa vira boiola... aliás, que fixação essa por refri, hein? Mas, continuando: país de maricas... brasileiro pula em esgoto e não acontece nada... pandemia no finalzinho... tem muito mais, viu?

Bom, sei que falei demais e você não vai conseguir acordar pra consertar todas essas cagadas. Mas não posso deixar de fazer uma homenagem a todos que você levou embora. Logo no comecinho do ano você matou o Neil Peart, o maior baterista do mundo. Aliás, você foi implacável com os bateristas de rock. O que você tem contra eles? Frankie Banali, Lee Kerslake... você também matou o guitarrista Eddie Van Halen, lembra? Ennio Morricone! A lista é grande, seu sádico do caralho. Moraes Moreira, Aldir Blanc, Flávio Migliaccio, Fernando Vanucci, Orlando Duarte, Daniel Azulay, o rei do basquete Kobe Bryant, Pierre Cardin, o pantera-negra Chadwick Boseman, coitado... teve também a Vanusa, Nicette Bruno, Sean Connery, Tom Veiga, mais conhecido como Louro José, Paulinho, vocalista do Roupa Nova, Zé do Caixão, o cartunista Quino, que criou a Mafalda... até o ídolo Maradona você assassinou! Tá certo que ele vinha tendo problemas de saúde, mas enfim, continuando... Cecil Thiré, Rui Chapéu do bilhar, Little Richard, Kirk Douglas, Eduardo Galvão, Paolo Rossi, Rubem Fonseca, o ministro Bebianno, Gilberto Dimenstein, Kenny Rogers, Maria Alice Vergueiro, Rodrigo Rodrigues, aquele simpático jornalista... Terry Jones, do Monty Python, Joel Schumacher, que dirigiu o mais cafona dos Batmans, Ciro Pessoa, ex-Titãs, Leonardo Villar, Sérgio Sant’Anna, Zora Yonara... nem pra Astrologia você deu folga... Tunai, Nelson Leirner, Peter Green, Johnny Nash... I can see clearly now, lembra? Teve o ex-Menudo Anthony Galindo... to vendo aqui, Fábio Guimarães, idealizador de um aplicativo que monitora a Covid-19... sério, cara? Jura que você teve a coragem de fazer isso? Teve Max Von Sydow, juiz Nicolau... bom, esse não vai deixar saudades... Alan Parker, Kelly Preston, enfim, a lista é gigantesca. E isso só mostra o quão mau-caráter você foi.

Pois é, 2020. Seu tempo de vida aqui na Terra foram 366 dias. Mas parece que você viveu uns 107 anos. Isso mesmo, 366. Ainda por cima você foi um ano bissexto, era só o que me faltava! Se pelo menos ainda houvesse o horário de verão, pra você partir pra longe uma hora a menos... mas não! Sua jornada aqui foi longa e interminável. Pelo menos agora posso me despedir de você. Então eu encerro meu longo discurso dizendo: apodreça no Inferno! Saia logo desse leito e vá repousar eternamente no seu túmulo de mármore. Eu não te quero mais! Nem vou festejar a sua passagem com fogos de artifício porque você nos proibiu de comemorar o réveillon. Desencarna logo e dê lugar para seu filho 2021, que certamente vai nos reger com muito mais amor e leveza.

 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Burger King

 

Como publicitário e consumidor de fast-food, não posso deixar de admitir: as campanhas da rede Buger King são do caralho.

 Nos meus mais de 30 anos de profissão, confesso que minha relação com a profissão nunca esteve tão desgostosa. A Propaganda perdeu seu brilho, seu charme, sua irreverência. Tá tudo muito genérico, muito padronizado, muito parecido. 2020 escancarou uma tendência que já vinha se notando nos anos imediatamente anteriores. Parece que todos os clientes estão falando a mesma coisa. O discurso é o mesmo. Começamos a prestar atenção nos anúncios, comerciais e postagens no modo soneca. A gente se esqueceu das marcas, pois todas elas parecem fazer parte de um mesmo pacote. Reparou nas campanhas de banco? Tudo igual. É aquele mesmo tom emocional, milimetricamente calculado para fazer chorar. E para vender a imagem solidária de um dos segmentos de mercado mais perversos durante a pandemia. E as operadoras de celular? Minorias raciais fazendo exatamente as mesmas poses, só pras empresas ficarem bem na fita no que diz respeito à diversidade. O consumidor ficou chato. Eu fiquei mais chato. E a Propaganda deveria trazer aquele frescor. Mas não. Ficou tão chata quanto a gente.

 A Propaganda ficou sem graça, em boa parte pela mudança de processos. Hoje você não consegue vender uma proposta se ela não vier embalada numa apresentação em Power Point com 100 slides. A parte boa, gostosa e divertida de se assistir não ocupa mais do que 20% desse projeto. Tá lá, embutida, tímida, seguida de uma defesa criativa. A Publicidade brasileira virou isso. A necessidade de defender e o medo de atacar. Tudo agora é conceito. Um brinde de fim de festa não pode ser só um brinde se não tiver um conceito. Tudo tem que estar amarrado, linkado e outras palavras que os neomarqueteiros adoram usar. A criatividade cedeu lugar à viralização. Não basta ser um gênio. Tem que ter seguidores, tem que promover o buzz, tem que ter uma historinha por trás. Storytelling, debriefing, benchmark, live marketing, social media, user experience. Novos nomes, novos modos de operar, uma nova realidade que camufla, acoberta e ofusca cada vez mais a essência e a alma do negócio: a boa ideia.

 É por isso que eu vejo o Burger King como um oásis no deserto. Me faz lembrar os áureos anos 70, 80 e parte dos anos 90. Quando a Publicidade brasileira era mundialmente premiada com louvor. Quando o comercial de 30” ficava retido na memória pelo seu aspecto inusitado e não pela insistência de veiculação. Quando a gente ligava a TV só pra ver esses filminhos. Folheava uma revista só pra ver os anúncios. Naquela época eu entendia o sentido da frase que diz que o ótimo é inimigo do bom. Que saudades, que delícia lembrar do embate ideológico e publicitário das campanhas da Folha e do Estadão. Aquilo sim era polarização de verdade, de bom gosto.

 O Burger King trouxe de volta essa ousadia esquecida. Deixou de lado a fobia do erro. Não tem pudor algum em mostrar o anti-appetite appeal. Aprendi na faculdade que, de um modo geral, via de regra, o segundo lugar no ranking de consumo costuma se valer de uma comunicação mais agressiva em comparação com o líder. Faz um certo sentido. As campanhas da Pepsi são mais memoráveis que as da Coca-Cola. A gente quase não guardou nada muito marcante da Nestlé, Unilever, Samsung. O Mc Donald’s, por exemplo, faz belas campanhas eletrônicas e digitais. Assistindo ao preparo de um sanduíche, dá vontade de salivar. Nas redes sociais, usa uma linguagem engraçadinha. Até aportuguesou o nome de suas lojas. Mas nada que fique pra história. Do ponto de vista ético e estético, tudo muito convencional. Já o Burger King foi além. Entrou de cabeça na política ao veicular uma campanha contratando o elenco rejeitado por Bolsonaro nos filmes do Banco do Brasil. Pode ter sido uma estratégia oportunista, mas ao menos serviu para cutucar o estado das coisas e trazer um pouco mais de calor a essa publicidade tão branda, tão morna e tão politicamente correta. Publicou a foto de um sanduíche mofado, esverdeado, que despertou nojo ao invés de fome. Mas ali havia uma grande ideia. Aquilo foi uma provocação, um ataque frontal ao seu principal concorrente e arqui-inimigo de vendas, que usa uma série de conservantes e ingredientes químicos para que seus produtos não envelheçam. E eis que ontem, no intervalo da Retrospectiva 2020, me deparo com a mais recente boa-nova da rede. Vi na TV, aquela geringonça que enfeita a sala. TV aberta, Rede Globo, antigo canal 5. Porque, quando a ideia é genuinamente boa, não importa onde seja transmitida. Na pausa em que se recapitulou esse horrendo 2020, o filme do Burger King mostrou pessoas deglutindo um lanche igualmente horrível, composto por gororobas como jiló, pé de galinha, jaca, miojo e outras descombinações. Foi a melhor comparação simbólica do ano. A degustação desse lixo gastronômico causou ânsia de vômito aos participantes, assim como a pandemia, o uso de máscaras e o “e daí?” causaram essa mesma vontade a nós, telespectadores. Parabéns aos envolvidos. Vocês trouxeram de volta o humor a um segmento de mercado tão anódino ultimamente. É isso que de fato nos chama a atenção: uma ideia ótima no meio de um ano péssimo.

 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Aspirador de pó

 

Natal é época de realizar sonhos, fazer pedidos e correr atrás dos objetos de desejo. Sonhos, pedidos e desejos, isso é o que resume a festividade. Se Papai Noel fosse psiquiatra, estaria com seu consultório lotado até a próxima década. Durante os últimos dias do ano, marcado por restrições e contenções de despesas, a gente faz questão de sonhar alto. Pede logo uma TV Ultra HD 8K tamanho Espaço Itaú de Cinema. Ou gasta todo o 13º dando entrada nela. Pede um ar-condicionado, logo agora que faz um calor da porra, que obedece ao dono por comandos de voz. Solicita ao velho barbudinho uma casa conectada, em que todos os aparelhos parecem fazer parte de um grupo de WhatsApp, e com um controle remoto universal você consegue ao mesmo tempo ver o que tem na geladeira, selecionar a função gratinar do micro-ondas e escolher um filme na Netflix.

 

Eu também queria sonhar com uma Ferrari doméstica. Mas estamos em 2020, lembra? Qualquer coisa que vier do saco do Polo Norte já tá de bom tamanho. E tem outra: com os péssimos serviços de delivery observados recentemente, não é bom contar muito com a sorte. Vai que as renas confundem as chaminés e seu pedido vai parar numa fábrica desativada da Mooca. É que nem os especialistas em Economia falam: em época de pandemia, não existe almoço nem frete grátis.

 

Por isso, optei por uma escolha mais módica. Fui até uma loja física e comprei um aspirador de pó. Não quero ter uma casa igual à do Luciano Huck nem acabar com a fome do planeta. Se eu conseguir acabar com minha lordose já fico satisfeito.

 

O aspirador de pó aqui de casa está mais quebrado do que eu após a faxina. Tudo se desmonta. Parece que foi fabricado pela Lego. A alça para transporte manual se soltou da base e está amarrada por um barbante. O tubo plástico se solta a cada arrastada. De tanto ser pressionado em superfícies, o orifício de sucção do cano (esse é o termo técnico; não vá pensar bobagem) se comprimiu. Antes dava pra passar uma bola de tênis por ele. Agora, mal e mal uma bolinha de gude. A vassourinha que se acopla ao cano tem uma quantidade de fios de cabelo igual ao véio de Havan. Descobri que meu aspirador sofre de asma, coitado. Não consegue inalar a poeira por muito tempo sem tossir. Não é um aparelho propriamente pesado. Mas é um inútil. Largado. Não dá a mínima vontade de carregar esse encosto. Numa relação proporcional entre a massa atômica de um corpo que ocupa lugar no espaço e os serviços que ele presta à Humanidade, poderia dizer que adotei o cantor Péricles. Talvez ele até tenha lutado bravamente no combate à sujeira. Logo depois da Segunda Guerra. Acredito que ele tenha sido entregue à nossa casa, lacrado e autografado pelo próprio inventor do aspirador de pó. Ou não. Talvez essa geringonça tenha sido comprada no Mappin, em 10 parcelas de 2,5 milhões de cruzados novos. Não sei. Procurei o manual de instruções para saber sobre a assistência técnica. Estava escrito em aramaico. Fui ver na garantia. Venceu no dia do milésimo gol do Pelé.

 

 

Quero deixar registrado que odeio, com todas as letras, fazer faxina e tirar o pó da casa. Isso me remete aos tempos mais traumáticos da minha adolescência. Não consigo atenuar o desgaste que isso me causa ou minimizar a chatice da tarefa. Não vejo essa função como um substituto ao exercício em academia. Lá na Smart Fit você tem a chance de paquerar as meninas com seus corpos esculturais. Na faxina, o máximo que vai acontecer é você exibir suas banhas e sua camiseta velha do Iron Maiden pros vizinhos. Na academia você se transforma num Vin Diesel. Limpando a casa, você vira um Corcunda de Notre Dame. Na malhação você libera endorfina. No suadouro doméstico você implora por um Dorflex.

 

Mas, já que esse afazer é obrigatório, necessário e inevitável, e durante o isolamento social não tem ninguém que faça por você, o jeito então é sonhar. Com um aspirador prático, potente, fabricado neste milênio. Que limpa, que funciona, que te faz feliz por meia hora. Esse é meu desejo freudiano. Passar o Natal livre do coronavírus, dos ácaros e da escoliose.

 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Geração 68

Nasci em 1968. Tenho, portanto, 52 anos. E o conselho que posso dar a vocês, meus amigos, do fundo do meu coração, é: excluam, bloqueiem, deletem, eliminem de todas as formas possíveis as pessoas nascidas nessa data.

 

Sei que pode parecer cruel agir dessa forma com quem fez parte de um período de grandes transformações mundiais. Que nasceu junto com a revolução. Nada disso. Talvez você até tenha trazido no seu imaginário a figura de Godard ou Bertolucci, ícones de uma geração contestadora. Mas, no fundo, é bom lembrar que meu prelúdio de vida coincide com o Ato Institucional número 5.

 

Quem é de 68 ocupa espaço num limbo histórico. Preenche um vácuo tardio demais para a geração hippie e precoce demais para a geração Z. Teve sim a Tropicália, o Jimi Hendrix, a pop art de Andy Warhol, o Cinema Novo, os guerrilheiros e muito mais representações simbólicas e ferozes de uma sociedade inquieta. Mas eu estava cagando nas fraldas, e minha única preocupação era não tropeçar nos fios da Telefunken enquanto engatinhava. Ou engasgar com os gordos farelos da farinha láctea Neston. Meu pipi era subdesenvolvido demais para que eu pudesse participar das orgias, esbórnias e bacanais promovidos pelos ripongas e seu estilo de vida flower power. Morria de inveja. Sei apenas de ouvir falar que o sexo era algo corriqueiro e, para se conseguir, nem era necessário postar selfie de biquinho no Tinder. Vivi tardiamente essa experiência louvatória a Jim Morrison. A viagem delirante enquanto se ouvia a voz rouca de Janis Joplin. Hoje a rouquidão com a qual temos de nos conformar é do MC Guime. Ouvia relatos e mais relatos de como era bom tudo aquilo. Maconha, incenso e Deep Purple, tudo junto e misturado. Dava pra ver no semblante dos adeptos à dieta macrobiótica (os pais do vegetarianismo, portanto, avós do veganismo) como eles foram felizes. Hoje é meio difícil perguntar a eles. Qualquer coisa. Sua memória se esfacelou com os chás de cogumelo. Outros fizeram viagem de ácido e nunca mais voltaram. Talvez ainda haja algum remanescente razoavelmente sóbrio, frequentador assíduo do Café Piu Piu no Bexiga, que possa nos rechear de mais histórias bacanas. Aquela reunião de amigos na casa do mais endinheirado, que acabou de voltar dos Estados Unidos e trouxe o Paranoid, do Black Sabbath. Nos anos 70, não dava pra ouvir disco nacional. Eram lançados com dois anos de atraso, o vinil era flácido, a capa molenga, faltavam encartes e as fotos eram trocadas por causa da censura. O jeito era então botar a bolacha pra tocar na Pioneer enquanto se bebia um copo de cuba libre e se beijava a sósia da Rita Lee. Quem viveu, viveu. Viagens a lugares desérticos, todo mundo hospedado na casa de todo mundo por vários dias, luaus intermináveis, pedir carona na estrada rumo a algum canto em que estava rolando um festival. Woodstock pra mim era só o nome de personagem de desenho animado.

 

Também já era maduro demais pra me deleitar com o que veio depois. Entrei na fase de precisar estudar, trabalhar, ganhar dinheiro. Confesso que nunca na vida assisti a um episódio de Chaves. Conheço a figura por causa das camisetas, dos memes e da coleção de bonecos do Mc Donald’s que se esgotou em questão de horas. Mas não faço ideia de quais sejam seus bordões. Uma vez quase briguei com um amigo porque não entendi uma frase que ele comentou, fazendo uma apologia ao seriado. Não sei do que se trata os Cavaleiros do Zodíaco, embora identifique uma música irritante de fundo. Devo ter assistido, em toda a minha vida, no máximo meia hora de Castelo Rá Tim Bum. Jamais assisti a Malhação. Quando frequentava os shows de stand up com mais regularidade, sempre tinha um momento de branco total pra mim. Praticamente todos os comediantes, em algum momento de seu show, falam em hadouken. Não sei o que isso significa. A maioria da plateia ri. Menos eu.

 

Em compensação, eu também jorro informações baseadas no meu referencial que não dizem respeito a ninguém. Nas poucas vezes em que me apresentei contando piadas, falava sobre um tiozinho que ficava numa banqueta nas ruas do Centro da cidade, em frente à porta de algum puteiro, anunciando que o show de strip tease estava começando exatamente naquele horário. Durante praticamente 24 horas por dia. Como seria possível uma performance de nudez começar ininterruptamente? Ou nunca acabar? Seria ali o palco do Dia da Marmota? Haveria a presença do Bill Murray na plateia? E o que dizer de outros performáticos da região, que ficavam eternamente anunciando seus shows sem nunca apresentarem o espetáculo ao público? Prometiam engolir facas, atravessar argolas pegando fogo, e o máximo que nos presenteavam era com a imitação de um miado esganiçado. Nesse mesmo núcleo do burgo em que vivo, passou batida a referência aos cabeleireiros, que colavam em suas vitrines as fotos de artistas e galãs impressos em alguma revista da editora Manchete, onde exibiam seus exuberantes penteados feitos à base de laquê. Por falar em cabeleiras esvoaçantes, sou de um período vazio em que era legal curtir metal-farofa. Aquelas bandas misóginas, cujos integrantes vestiam botas com salto plataforma e uma calça listrada bem apertada, parecendo uma zebra. Lá nesse mesmo Centro eu ia ao Mappin. Mas não era pra tomar o chá das cinco na cobertura (hoje chamada de rooftop), pois na minha época isso já não existia mais. Quando eu subia de elevador, não era pra saborear as iguarias paulistanas. Era pra pagar conta mesmo. Tinha um andar inteiro, talvez chamado de ala dos pobres, dedicado exclusivamente à abertura de crediários para que os clientes pudessem parcelar seu Velotrol comprado em 12 suaves prestações. Nem tão suaves assim. Existia no primeiro andar o sonho de consumo, que se confrontava no quinto pavilhão com o choque de realidade. Os fregueses eram mal tratados, vistos como caloteiros (hoje, inadimplentes). Eu ficava horas ali esperando minha mãe receber o carnê da dívida recém-adquirida. Daria tempo de comprar todos os faqueiros e jogos de toalha Santista expostos na loja.

 

Havia também outras lojas de departamento sobre as quais nunca a geração iPhone ouviu falar, como Sears, Mesbla, Dillard’s, Arapuã, Ducal, JumboEletro (joint venture dos supermercados Jumbo com a Eletroradiobraz). Mas a que mais me chamava a atenção eram as Lojas Americanas, que sobrevive até hoje. Lá se vendia a melhor batata frita do país, feita num quiosque e oferecida dentro de um saquinho branco igual ao de pipoca de cinema de rua. Essa rede de lojas também era conhecida pelo seu atrativo em não oferecer um esquema máximo de segurança. Era muito fácil furtar nas Americanas. Nunca fiz isso. Mas tenho conhecidos do clube do qual era sócio, alguns deles também nascidos em 68, que eram craques nisso. Indivíduos bem endinheirados, por sinal. Tinham apartamento no Guarujá, iam todo ano pra Disney, entretanto, batiam uma punheta quando conseguiam embolsar um tablete de Kri. Essa loja era um convite aberto ao crime. Pena que, na pirâmide social, quem o cometia era justamente quem menos precisava cometer.

 

domingo, 27 de setembro de 2020

Flash Power

 

Por que os produtos ficaram com gostos tão piores em comparação a épocas remotas? Por que as opções mais saborosas são sempre as que saem de linha? Por que a gente é obrigado a repetir o jargão “já não se fazem mais como antigamente”? Tá certo que parte das respostas se deve mais à nossa memória afetiva do que ao gosto propriamente dito. Com o tempo, nosso paladar vai mudando.

Antes de continuar, um parêntesis. Entendo, respeito e até concordo que produto bom é produto in natura. Que nada se compara a uma boa salada, ou a qualquer preparo feito somente com ingredientes naturais, longe e livres de conservantes e acidulantes. Mas o assunto aqui é cultura pop. E, nesse intervalo, permito-me fazer um arrazoado sobre gororobas industrializadas. Se você adota uma postura mais radical, ou se não gosta, ou simplesmente pouco conhece essas mercadorias com gosto de plástico, melhor nem ler o texto.

Voltando. Conforme mencionei, parte dessa saturação se deve à transformação das nossas papilas gustativas. Parte. É bem verdade que vários produtos de sabor insuperável ficaram na saudade. Quer ver? Paçoca Amor, por exemplo. Aquilo lembrava infância. Qualquer infância. Não importa a idade, região ou classe econômica. Voltou a ser fabricada por alguma dessas empresas que fabricam também outras marcas de alimentos. Ficou um lixo. Quer mais? Diamante Negro. Por que resolveram tacar açúcar numa relíquia que outrora já era suficientemente adocicada? Aliás, por que todo chocolate da Lacta hoje é intragavelmente dulcíssimo? Acho que o mestre culinário joga um açucareiro pra dar o toque final. Aquilo é um convite rápido pro diabetes. Junto com a embalagem, deveria vir de amostra grátis um frasco de insulina.

Um dos prováveis motivos para esse decréscimo de qualidade é econômico. Pequenas empresas, cujos produtos eram mais artesanais, autorais e tinham um certo tom de autenticidade foram compradas por grandes empresas. Hoje o parque industrial alimentício se resume a não mais do que meia-dúzia de magnatas do setor. Tudo virou commodities, com valor de mercado, para agradar mais aos acionistas do que satisfazer o paladar das crianças. Tudo ficou muito genérico, muito parecido. Assim como o mercado de roupas, de perfumes, de celulares. Em boa parte, esses conglomerados da indústria alimentícia também fabricam produtos de outros segmentos, como os voltados a higiene e limpeza. É o caso da Unilever, por exemplo. Tenho a impressão de que tudo passa pela mesma linha de montagem. É por isso que a ideia de que os supermercados nos oferecem uma infinita variedade de cores e sabores é ilusória. É por isso que todas as comidas produzidas em escala têm gosto de sabonete e cheiro de fralda. E se você por acaso ainda se encanta com o capricho das relíquias fabricadas em pequena escala, tipo o queijinho canastra de Camanducaia, pode tirar o cavalinho da chuva. Mais cedo ou mais tarde a Coca-Cola vai pagar uma fortuna por essa empresa só pra poder dominar o mundo. E aí, meu caro, a única coisa que você vai encontrar é um saquinho de meia-cura processado sabor uvas silvestres.

Paradoxalmente, no meio de tantas coisas que se parecem uma só, existe uma brecha criada por esses mesmos oligopólios que permite invencionices um pouco mais ousadas. São as famosas edições limitadas. Pensadas para diversificar a mesmice, ou checar o nível de adesão de um mercado-teste, ou somente alavancar as vendas num determinado período reduzido. De um modo geral, eu curto essas séries especiais com prazo de validade reduzido. Tinha um Guaraná Antarctica que no final deixava um geladinho na garganta. Era excelente. Só que acabou. Tinha uma Pepsi de sabor acentuado que era interessante. Outra com um toque de gengibre. Acabaram. O que ficou foi essa tal de Pepsi Twist Zero, de gosto horrível. Tem mercado pra isso? Ou os marqueteiros lançam e tiram produtos de linha na base do chutômetro? É por essas razões, decisões estratégicas tomadas por marqueteiros e não por gastronomistas, que somos obrigados a repetir “o que é bom dura pouco”. E o que é ruim sobrevive uma eternidade.

Só pra você ter uma noção da bizarrice que é o mercado de alimentos, tempos atrás a Ruffles resolveu criar um concurso. Os consumidores deveriam enviar receitas (!!!) para a Elma Chips, sugerindo e indicando novos sabores da batatinha. Os três sabores mais bem avaliados seriam comercializados por um curto período e submetidos a uma votação de público. Em seguida, o sabor campeão passaria a fazer parte da linha. Nessa brincadeira, a galera degustou batata sabor strogonoff e sabor feijoada. É sério! O que se passa na cabeça desses executivos? Cadê o bom senso? Nesse caso específico, o fato dessa estranheza sair logo de linha foi mais do que bem-vindo.

Eu gosto bastante de energético. Sim, cada um na sua. Me respeita. Tenho o paladar um pouco mais doce, fazer o quê? Você toma sua cerveja, que tem sabor amargo, cheiro de mijo e quando ingerida junto com a comida parece que você tá comendo fermento. E eu não falo nada, fico na minha. Energético é tipo um upgrade do refrigerante. Que, por sinal, adoro também. Tomo desde o começo do século, quando sua venda era restritiva e a polícia vivia invadindo a Galeria Pajé para apreender os estoques contrabandeados. Na época, era tipo um rebite da classe alta. O combustível das raves. Existia todo um mito sobre o energético. Que causava taquicardia, que tinha alucinógenos em sua composição. Tanto é que só era vendido em bares e baladas. Uma latinha custava o equivalente a uma dose de Ballantine’s. Hoje não. Você encontra energético em tudo quanto é supermercado. É uma pequena seção ao lado dos refrigerantes. Com pouquíssimas opções de marca. O apelo publicitário é sempre o mesmo: nomes e imagens associados a fenômenos meteorológicos, reações elétricas, animais selvagens, grifes esportivas e, em alguns casos, evocações ao Satanás. Marcas produzidas por esse conglomerado que faz cartel. Se quiser experimentar algo diferente, você precisa ir a um atacado de bebidas ou a algum boteco mocozado.

Apesar do meu apreço pelo líquido, admito que são poucas as marcas de fato gostosas. A maioria erra na composição gasosa. Ou na combinação do xarope. Alguns amigos meus não veem diferença nenhuma, acham que é tudo tubaína misturada com anfetamina. Até entendo essa colocação. Várias marcas realmente fazem substâncias muito parecidas. Mas o bom entendedor sabe a diferença. E eu sempre gostei do Flash Power, desde os primórdios. Red Bull é bom, muito bom. Mas Flash Power é imbatível, disparado o melhor. Tem um gosto um pouco mais sutil. O problema é que é pouco encontrado. Tem uma péssima distribuição. O que faz aumentar meu apego sentimental por ele. De tão difícil achar, outro dia tive que fazer uma compra on-line. O pedido foi cancelado porque não havia produto no estoque. Soube que mudou o fabricante, o distribuidor, o que deve ter piorado a situação.

Ontem encontrei o energético numa loja física. Louvado seja. Percebi que a embalagem tá um pouco diferente. O rótulo não é mais impresso diretamente no alumínio. Existe uma fina película adesiva sobre a lata. Isso me preocupou um pouco. É uma característica comum a produtos de segunda linha. Achei que fosse um pormenor, um modo de fabricação mais em conta do ponto de vista econômico. Só que não. O gosto também mudou. Ficou meio parecido com a edição limitada do Red Bull sabor coco com açaí. Que, a meu ver, tem gosto de sabonete. Não achei exatamente ruim. Mas bateu saudade do sabor original. Que, pra variar, vai ficar apenas na memória.

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Na loja

 

(Vendedora Sidneia): Olá, bom dia. Posso ajudar? Procurando alguma coisa específica?

(Cliente Márcio): Bom dia. Não, só tô dando uma olhada. Na verdade eu preciso de uma calça e uma camiseta.

(Sidneia): Qual tamanho? Eu vou procurar no estoque. Fique à vontade. Me chamo Sidneia, qualquer coisa é só me chamar.

...

(Sidneia): Prontinho, tá aqui. Calça e camiseta, do jeito que você pediu. Pode usar o provador se quiser.

(Márcio, na boca do caixa): Antes de pagar, eu queria fazer uma observação. Não acho que fui bem atendido.

(Caixa Aurora): Algum problema, senhor?

(Márcio): Não é exatamente um probleeeema, problema... Mas acho que faltou um pouco de iniciativa, sabe? A loja é tão grande, vocês têm tanta coisa pra vender... Eu só tô levando uma calça e uma camiseta. Cês podiam sair fora da caixa (sic). Me mostrar outras coisas. Imagine o potencial de compra de cada cliente que entra, como isso não iria aumentar o faturamento de vocês. Acho que faltou um pouco de proatividade. Só isso.

(Minutos depois...)

(Supervisor Clayton): Sidneia, vem cá um minutinho, por favor.

(Sidneia): Pois não?

(Clayton): Acabei de receber uma reclamação do setor 22. O cliente alegou que não foi bem atendido. Da próxima vez, vamos oferecer O MÁXIMO de produtos que puder. A gente precisa bater a meta do mês. Isso pode aumentar nosso ticket médio, com certeza vai aumentar sua comissão e o cliente vai ficar mais satisfeito. Tem um monte de roupa encalhada, vamos desovar isso! A diretoria tá me enchendo o saco. A gente não pode mais ficar nessa passividade em tempos de crise. Precisamos ser menos REATIVOS e mais PROATIVOS. Tá OK? Semana que vem começa um novo treinamento, gostaria muito que você participasse pra colaborar com a gente.

(Um mês depois...)

(Sidneia): Bom dia, senhor Márcio. Tudo bem com o senhor? Lembro perfeitamente do senhor pela sua cara. Eu sou uma boa fisionomista. Fui eu que te atendi da outra vez. O que vamos levar hoje, senhor Márcio?

(Márcio): Tô precisando de uma camisa.

(Sidneia): Mais alguma coisa? Quer aproveitar e levar uma calça também? Vem comigo, lá naquela seção temos bermudas que vão ficar ótimas no senhor. Tá precisando de cuecas, meias? Tem aqui camisetas que entraram hoje em promoção. Aproveita! Já deu uma olhada na nossa coleção de verão que acabou de chegar? Essas peças iam ficar lindas no senhor. Cintos, gravatas, tá precisando? Quer aproveitar e levar um presente pra sua namorada, ou esposa? O senhor sabia que a gente também tem relógios e perfumes? Vem aqui dar uma olhada!

(Márcio): Não, obrigado. Esse mês estamos em contenção de despesas.

(Sidneia): Jura, senhor Márcio? Mas a gente pode parcelar em até 3 vezes sem juros. O senhor já tem o nosso cartão?

(Márcio): Sabe o que é? Hoje eu tô com um pouco de pressa, então vai ser uma compra mais urgente. Só uma camisa mesmo.

 

domingo, 20 de setembro de 2020

Bateria

Durante um bom tempo da minha vida fui muito apegado à bateria. Gostava da riqueza sonora que se pode extrair daquele monte de pratos e tambores. Um verdadeiro aparato de objetos alinhados (acho que é por isso que se chama “cozinha” da banda), um pouco mais recuados da linha de frente do grupo, mas que produz uma barulheira sem precisar de microfones. Sempre admirei a versatilidade de quem toca. Primeiro, porque um bom baterista precisa ter braços e pernas funcionando de modo independente. É como se uma parte do cérebro comandasse cada um desses membros, para que um possa funcionar de modo emancipado em relação ao outro. Segundo, nota-se que um baterista tem a mão leve, quase uma mão boba, e segura as baquetas como se estivesse empunhando uma pena.

Eu até tentei tocar bateria. Cheguei inclusive a comprar uma Pinguim básica. Só que, por mais que me esforçasse pra aprender, percebi que aquilo não era pra mim. Não só por exigir horas e horas de estudo. Isso serve pra qualquer coisa que se queira aprender, até mesmo bordado. Mas a as aulas de bateria pressupõem o dom inato da coordenação motora, algo que não tenho. Então, o aprendizado ficou muito mais árduo pra mim. Minhas primeiras aulas foram num conservatório perto de casa. Pra se ter uma ideia, em menos de seis meses houve a troca de três professores. O primeiro vinha da escola do jazz, e queria que eu fosse um Gene Krupa já nos primeiros ensaios. Caiu fora. O segundo era exatamente o contrário. Era baterista de igreja, alto, vozeirão, vestia-se de preto. Parecia o Tropeço, da Família Addams. E ficava aulas e aulas no primordial beabá dos tambores. Caiu fora também. Já o terceiro era mais rock and roll. Mais gente boa. Só que suas aulas deixavam um pouco a desejar. Logo depois quem caiu fora do conservatório fui eu. Fui ter aulas particulares com um professor que mora em apartamento. Ou seja, eu batia as baquetas em pedaços redondos de madeira forrados com uma borracha pra abafar o som. Tipo ver filme pornô no modo mute. Perde-se o tesão. Falando em tesão, logo nas primeiras aulas percebemos que não havia química alguma entre professor e aluno. O local era meio fora de mão, os horários eram péssimos, eu chegava cansado no apê do mestre e, como se não bastasse, não havia aquela descontração. Quando falei pro cara que pretendia largar o curso, a cara de alívio dele foi notória. Enfim, juntando a minha dificuldade de ganhar destreza, mais os métodos não muito estimulantes dessa sequência breve de instrutores, a bateria passou a ser um fardo pra mim.

Mas isso não vem ao caso. OK que uma vez me mandaram providenciar pedaços de ferro e uma borracha pra que eu pudesse treinar meus punhos a ficar mais soltos, e não adiantou nada. Me via como o Karatê Kid nas aulas do Professor Myiagi. OK que eu comecei a ler partituras por conta própria, mas não conseguia executar as colcheias e semicolcheias escritas. OK que eu só fui aprender nos tutoriais do Google, anos e anos mais tarde, de graça, aquilo que deveria ser a primeira aula (paga) ensinada pelos professores presenciais: os jeitos corretos de segurar as baquetas. Ainda assim, a bateria despertava em mim por vários anos um encantamento indescritível. Hoje eu me identifico mais com outros instrumentos e outras formas de se produzir sons.

E é por causa desse remoto momento da minha vida que eu quero homenagear os bateristas. 2020 não está sendo fácil pra ninguém, fato. Mas, especialmente para os bateristas, é um ano pra lá de horrível. Não sei se, por causa da quarentena, a gente acaba prestando mais atenção aos fatos fúnebres. E, estatisticamente, esse ano está sendo absolutamente igual aos outros. Ou, por uma infeliz coincidência, esse ano foi mais cruel com os mestres das caixas e dos bumbos. Mas é bom deixar registrado que, logo de cara, no começo de janeiro, o mundo perdeu o mago Neil Peart, do Rush. Ele era o rei. Não dá pra deixar de notar o quanto influenciou toda uma geração, até mesmo o fodástico Mike Portnoy. Vinha tendo problemas de saúde já faz um tempo. Tanto é que a banda chegou a dar um tempo por conta disso. E, estranhamente, foi vítima de boatos inúmeras vezes noticiando em fake news sua morte. Só que, em 7 de janeiro, infelizmente o acontecimento foi verdadeiro.

No mês passado foi a vez do competente Frankie Banali. Ex-integrante do WASP, ficou mais conhecido por sua participação duradoura no Quiet Riot. Chegou a produzir alguns álbuns da banda. Banali mandava muito bem no hard rock, um gênero que supostamente não exige tanto desse tipo de profissional.

E ontem perdemos Lee Kerslake, ex-Uriah Heep, que chegou a gravar originalmente os dois primeiros discos do Ozzy Osbourne. Nem tão notório e criativo quanto Peart, Kerslake foi um senhor baterista. Seu estilo lembrava vagamente algo do professor Ian Paice.

Três lendas que se partem. Vítimas de câncer. Torço para que esse número não aumente. O mundo ainda precisa de música para alimentar nossos ânimos e acalmar nossos nervos.

 

domingo, 13 de setembro de 2020

Pernilongos

 

Em algumas situações, sou totalmente a favor da pena de morte. Ácaros, bactérias, baratas, pulgas, marimbondos, todos eles devem queimar nas labaredas do Inferno. O Aedes aegypti, então, merece passar a Eternidade sendo torturado pelo próprio demo, pelo fato de ter cometido triplo homicídio doloso.

Entre milhões e milhões de insetos, queria falar um pouco mais dos pernilongos. Estou acompanhando relatos de amigos e percebendo que eles de fato invadiram a cidade. Em pleno inverno. Não sei se é por causa das inversões climáticas causadas pelo aquecimento global, ou eles simplesmente estão vendo que a imprensa está voltada para o coronavírus para poderem passar a picada. Eu, por exemplo, compartilho a angústia dos meus amigos e confesso que estou sob constantes ataques.

Você, leitor precavido, prudente e consciencioso, deve achar que não é necessário nenhum textão pra falar sobre isso. Basta passar um inseticida pela casa e ta tudo resolvido. NÃO. Já borrifei latas e latas de spray pelo ambiente. Se acender um fósforo, pega fogo. Quase causei um curto-circuito na residência, de tantos refis de tomada que instalei. Mesmo assim, eles continuam incólumes, prontos para abater a próxima vítima. Que, no caso, sempre sou eu.

A minha raiva dos pernilongos se justifica. Tudo bem querer chupar meu sangue. É um direito da natureza. Faz parte da cadeia alimentar, do ciclo biológico. Tenho mais de um galão de sangue correndo pelo meu corpo, umas gotículas da substância não vão me fazer falta. Além disso, estarei ajudando na distribuição de hemoglobinas pelo país, que sofre tanto com as desigualdades. O problema é que, para o filho-da-puta do inseto, não basta pousar para se abastecer. Ele antes precisa emitir seu arauto do ataque. Um aviso sonoro, um irritante zumbido que não deixa ninguém dormir. Como se não bastasse, após sorver nosso líquido vermelho o bichano deixa como legado uma horrível protuberância na nossa pele. Uma disforme e arredondada cicatriz efêmera, acompanhada por um prurido incômodo e incessante como gorjeta de sua refeição. Portanto, desejar a morte súbita a esse verme é o mínimo que eu posso fazer.

Existem dois tipos de inseticida: o raiz e o nutella. SBP é um produto nutella. Você vê lá na propaganda que ele é TERRÍVEL contra os insetos, mas o máximo que ele faz pro bicho é “buu”. Pode passar na casa inteira, não adianta nada. O máximo que você vai conseguir é uma tosse. Certeza que sua química deve chegar pro pernilongo e falar “desculpa atrapalhar a atenção de vocês, eu poderia estar empesteando lavouras, eu poderia estar causando um mal terrível à camada de ozônio, mas vim aqui pedir a colaboração de vocês para que, por obséquio, tenha a bondade de se retirar”. Não tem como um himenóptero se amedrontar diante de um composto tão emo. O tal terrível deve só fazer cócegas, e olhe lá. Costumo despejar o líquido em todas as cantoneiras dos quartos, teto, janelas. Parece que estou fazendo uma dedetização em casa. Mesmo assim, eles escapam. Quando encontro um pernilongo voando e lanço um jato de SBP diretamente sobre ele, o bichinho até ri da minha cara. Na cabeça dele, é a mesma coisa que anunciar um assalto com um revólver de plástico.

Já o inseticida raiz é diferente. Esse sim tem meu total apoio e respeito. Mortein, por exemplo. O próprio nome já assunta. Diz a que ele veio. Pra mim inseto bom é inseto morto. E o inseticida verdadeiramente eficaz tem que ser um serial killer. Missão dada, missão cumprida. Tem que ter uma embalagem horrível, com estampa de caveira, imagem de óbito de barata e funeral da dengue com aquele X vermelho circunscrito. Só de olhar esse troço o voador já desmaia. Inseticida bom tem que ser eleitor do Bolsonaro. A favor do porte de armas, da agressão e da truculência. Nada de mimimi, de proteção dos direitos entomológicos.

Bom mesmo era o Flit. Saudades desse matador de aluguel. Quem é da geração millennial nunca deve ter ouvido falar. Parecia um avião da Segunda Guerra. Era nada mais do que uma bomba de encher pneu de bicicleta, acoplada a uma lata de ervilhas que servia como tanque de combustível. Sua fumaça deixava um rastro tão denso que era possível até coletar com as mãos as gotículas que iam pro chão. Aquilo fazia um estrago da porra na vítima. O Flit executava seus alvos sem deixar vestígios dos cadáveres. Quando a gente borrifava o ambiente com essa substância assassina não podia adentrar o recinto por questão de dias. Acho que o Flit é responsável por metade da poluição do Rio Tietê, de tão tóxica que era sua composição química. Mas aquilo sim funcionava. O morteiro aéreo das gerações passadas, enterrado como indigente nos anuários de propaganda velha.

 

sábado, 29 de agosto de 2020

País gramatical

 

Brasil. Terra de muitas orações e pouca sabedoria. Sujeitos que roubam, que matam, que lavam dinheiro em álcool gel e são afastados de seus cargos. Gastam o verbo em campanhas – e gastam a verba onde não deviam quando são eleitos. Desmatam as nossas florestas, mas as provas são inexistentes e os locais, indeterminados. Agentes subordinados que racham seus salários para sustentar seus partidos, enquanto seus chefes racham o bico. Presidente diminutivo que governa em primeira pessoa do singular, no modo imperativo, cercado de adjuntos adnominais sem valor sintático. Usa o pronome possessivo para se perpetuar. Vontade de tacar um objeto direto na boca de quem pergunta. Ministra que fala por metáforas, ministro que enxuga hipérboles. Equipe dos predicados mais sórdidos. Estatísticas pospostas, criando a silepse perfeita de uma dor aguda e uma situação grave. Denúncias de verbos irregulares. Decretos à revelia, com crase e com crise. Cheques pronominais depositados para a esposa. Verbos de ligação que conectam um esquema oblíquo entre uma família, a milícia e as falsas notícias. Planos de governo no modo gerúndio e o saudosismo no pretérito mais que perfeito de uma época das forças ocultas. A população agoniza na voz passiva. A corrupção deveria ser transitiva, mas não é. O país do futuro do presente é este, com todas as regalias garantidas pelos artigos definidos da lei.

 

domingo, 9 de agosto de 2020

Antítese

Definitivamente o Brasil é um país barroco. Reúne em si características tão contrárias e tão distantes e, por incrível que pareça, é essa a distância que compõe seu conjunto. Do clima muito quente ao muito frio. Da fala cantada ao jeito rápido de comer letras no final da frase. Esse país é tão diferente por dentro, que parece que é justamente essa síntese de oposições que melhor o define. Durante a pandemia, essa dualidade se acentuou ainda mais. Acompanhamos por meses e meses as filas nos bancos pelo auxílio emergencial. As dificuldades burocráticas implementadas pelo Governo para se ter direito ao saque mensal de 3 notas de R$ 200. E soubemos, recentemente, que os bilionários se tornaram ainda mais bilionários. Sim, durante a quarentena. Ricos cada vez mais ricos, na saúde e na doença. Moradores de rua morrendo de fome porque as doações acabaram. E os porta-vozes do Facebook compartilhando receitas de pão, ou reclamando que não param de engordar. Enquanto uns se deslocam em trens lotados, outros postam suas lives com um fundo de tela de fazer inveja à Biblioteca Mário de Andrade. Cabines de desinfecção e leitura infravermelha da temperatura corpórea no país campeão dos baixos índices de saneamento básico. Bastou um trimestre para entrarmos na pior recessão da história, com uma população dividida entre as palafitas e a Netflix.

Na política, o Brasil é igualmente barroco. Tão esquerdista e tão extrema-direita, sem a necessidade de um Muro de Berlim para separá-lo. É, em seu paradoxo, o convívio bipolar dos polarizados que torna o Brasil um país possível. Já não há mais espaço para se discutir a presença do Estado na Economia um pouco mais pra lá ou pra cá. Ou se defende os Estados Unidos, ou a China. E ponto final.

Até a Medicina entrou como pano de fundo para essa cisão ideológica. Fomos nos excluindo de nossos antigos grupos para dar lugar à criação de novos guetos. Afinal, estamos em guerra. De um lado do front, os cloroquiners. Do outro, os isolados aguardando a chagada da vacina, com a pouca paciência que lhe resta.

Nesse sentido, o Brasil só se faz cada vez mais transparente em suas contradições. Mesmo que se orgulhe da redução progressiva dos investimentos nas áreas técnicas da saúde, da pesquisa e do conhecimento, conseguiu num esforço hercúleo entrar na reta final para o ranking dos melhores. Em parceria com um laboratório chinês e alguns pesquisadores do mundo inteiro, vem desenvolvendo aquilo que daqui a uns meses pode ser considerado um milagre. É o Brasil brasileiro, pioneiro, líder, ainda que em sua ínfima minoria. Porque, em sua maioria absoluta, reina o Brasil que acredita em outro tipo de milagre. Na terra do em se plantando tudo dá, andam de mãos dadas a ciência e a ignorância. As escolas permanecem fechadas; já os templos religiosos, não. O número de ávidos por saber, que cresce em progressão aritmética, jamais vai conseguir dar conta de se igualar ao número geometricamente progressivo de obscurantistas, negacionistas, terraplanistas, antivacinistas.

Meu maior medo com a eleição do Bolsonaro era ver um país voltar atrás 40 anos. Errei feio. Nossa pátria amada retrocedeu 400 anos. De volta ao passado, fomos parar na Idade Média, época do surgimento do citado neoclassicismo propriamente dito. Aqui de onde estou só vejo trevas. Queima às bruxas e paulada nos médicos e jornalistas. Estão querendo curar a nova Peste Negra com vermífugo. Curandeiros foram recebidos no Palácio, com toda a pompa e circunstância, para divulgar suas receitas caseiras de chá de alho. E, mais recentemente, tapando os olhos para todo e qualquer relatório científico, estenderam o tapete vermelho para os teóricos da aplicação de ozônio no ânus.

Ontem o Brasil registrou a triste marca recorde de 100 mil mortos por covid-19. Mas aqui é terra de sol e chuva, meu caro. Nem deu tempo de ouvir o silêncio do luto. Logo vieram os fogos de artifício para abafar a tristeza que só alguns sentem e percebem: o Palmeiras foi campeão.

Também ontem o país perdeu o publicitário Ênio Mainardi. Amado e odiado na mesma proporção. Alguns profissionais do mercado o consideram um mestre da Propaganda, que deixou um rico e valioso legado e campanhas históricas, como por exemplo a da Tostines (“é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho”, pra quem não se recorda). Contudo, essa maestria toda também será lembrada por suas polêmicas. Mainardi deixava um cachorro solto em sua agência. Juntava sua equipe numa sala vestido somente de cueca. Fazia reuniões com o cliente e colocava um revólver sobre a mesa. Quando entrei na faculdade, Mainardi era uma espécie de inspiração. Porém, anos mais tarde, vi um debate no auditório dessa mesma universidade em que ele foi vaiado. Ele era isso mesmo: a faísca que se soltava dessa junção de opostos. Construiu sua sólida carreira numa das profissões que mais exigem a subversão criativa. Entretanto, passou seus últimos tempos defendendo ideias mais ou menos alinhadas ao conservadorismo do atual governo. Dizem por aí que também minimizou os efeitos da pandemia, concordando com o déspota genocida que tudo não passa de um exagero. Morreu de coronavírus, só pra deixar o assunto ainda mais barroco.

 

domingo, 5 de julho de 2020

Um brinde ao foda-se


Em Publicidade aprendemos que, quando uma mensagem é repetida várias vezes, procura-se ampliar a cobertura e reforçar seu conceito. Entretanto, um dos efeitos negativos é a perda de sua eficácia. A sensação de ver tudo igual, sem alguma novidade ou qualquer atrativo que nos tenha passado despercebido da primeira vez, nos faz virar a página, mudar de canal, apagar o e-mail. O discurso perde sua força e entra na nossa cabeça como um fundo sonoro com o qual já passamos a nos acostumar.

Durante a pandemia, a sociedade se sensibilizou com as falas dos governos locais, da OMS e até do então Ministro da Saúde. A importância do isolamento, o #FiqueEmCasa, lavar as mãos sempre e, mais recentemente, o uso obrigatório de máscaras. Talvez nos primeiros minutos de confinamento alguns cidadãos não estivessem levando a coisa tão a sério. Mas, em seguida, houve uma certa adesão geral e compreensão dos fatos. Tanto é que os índices de isolamento eram relativamente bons.
Só que os pronunciamentos das autoridades foram se reprisando. E, consequentemente, perdendo sua força e credibilidade. Quando se fala que esse é um momento muito importante para adotarmos as medidas preventivas de segurança e seguirmos corretamente as orientações da ciência e da saúde, isso quer dizer que no momento imediatamente anterior não era? Ao ouvirmos diversas vezes, em modo looping, que o pico da pandemia ainda não foi atingido e que a quarentena precisará ser esticada, passa-se a sensação de que alguma coisa está errada. Na cabeça do homem comum, nada diplomado em Medicina ou Matemática, conclui-se que ou deixaram de acertar nos cálculos ou as medidas iniciais não foram corretamente aplicadas. Isso sem falar no atual desgoverno federal, que desobedece a todas as regras sanitárias, provoca os governantes menores e veta artigos de lei, usando critérios meramente pessoais, no sentido de tornar o processo de retomada ainda mais flexível. E mais perigoso.

O fato é que a população meio que ficou de saco cheio. Não só de permanecer trancada por mais de 100 dias, como também de obedecer a comandos baseados no repeteco. No Brasil e no mundo. De Nova York a Nova Iguaçu.

As cenas que vimos nos últimos dias, em que notívagos invadiram e lotaram bares e mesas na calçada, aglomeradíssimos e sem o uso de máscara, são ao mesmo tempo trágicas e patéticas. Esse comportamento burlesco de um povo até então preso em regime domiciliar pode suscitar algumas interpretações. O mais ululante foi a afronta. O tapa na cara aos órgãos fiscalizadores. A onipotência da fala do nosso presidente, agora convertida nas camadas imediatamente abaixo na pirâmide social. Enquanto a classe operária dos entregadores de pizza trabalhava devidamente paramentada com os equipamentos de proteção individual, os emergentes criavam suas leis próprias durante sua efêmera diversão. Tudo junto e misturado. Os garçons e motoboys, mais vulneráveis ao vírus devido à sua condição social, ocupando o mesmo espaço dos novos-ricos que acham que o corona já passou. Uma falsa sensação de imunidade com impunidade. Aquela muvuca poderia ser também entendida como um basta. Um alegórico brinde à apressada carta de alforria, sem nada a se comemorar. Ou talvez, em última análise, a pulsão de morte que também habita no ser humano. Se é para viver o novo normal como um ermitão, um indivíduo incel, se é para abdicar de sua sexualidade e sua forma gregária de convívio, melhor nem viver. Vamos à la playa, morra quem morrer. O neodarwinismo necropolítico está aí para poupar quem tiver a sorte de ser poupado. Fez-se de conta que aquela mesa de bar foi a última ceia dessa quarentena que nunca termina, muito menos com final feliz. Saúde a todos os incompetentes, que não souberam conduzir sua manada. Agora só resta pedir a porção de picanha no réchaud e aguardar a chegada da vacina de Oxford. Enquanto isso, o democrático vírus poderia estar ali circulando livremente entre todos os cuspes impregnados nos copos de cerveja. Seja no pub de Londres, seja na calçada do Leblon. A imagem ridícula do fracasso da Humanidade.


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Insônia


Essa noite foi uma noite mal dormida como outra qualquer. Durante a pandemia, difícil ter uma noite tranquila de sono. Só que essa noite não foi igual a todas as outras noites. A insônia me atacou. E durante esses minutos que demoraram uma eternidade pra passar, uma avalanche de pensamentos começou a transbordar em minha cabeça. Fatos que se sobrepunham. Cenas que se atropelavam. Imagens aglutinadas de um ontem com um passado bem remoto. Minha mente saiu dos gafanhotos e foi parar lá no Orkut. Lembrei que a gente classificava os amigos por estrelas. Um deles me deu a nota máxima, até começarmos a trabalhar juntos. E as diferenças começaram a aparecer de modo grosseiro e abrupto. Uma amizade que começou com “sou seu fã” e terminou com “desembucha logo que eu tenho mais o que fazer”.
Lembrei de mais amigos, outros tantos, que eram muito simpáticos e sorridentes quando tínhamos um projeto em comum pra tocar, ou quando precisavam de mim. Hoje me botaram no modo soneca. Desta vez, no Facebook.  
Lembrei de lugares, vários lugares. Bares e restaurantes que tinham tudo pra ser incríveis. Mas não eram. A foto e a descrição do cardápio eram muito mais bonitas e apetitosas do que o prato que me foi servido. O atendimento deixou muito a desejar. Embora eles tivessem adotado a prática chique de cobrar 13% ao invés de 10% como taxa de serviço.
Lembrei de algumas namoradas também. Poucas. Mas com uma sequência recheada de fatos, brigas e desilusões. Muitas. Teve aquela que no começo tudo parecia divino e maravilhoso. E no final a gente já não se suportava mais. Um início marcado por selfies de rosto coladinho. E um epílogo com fotos tiradas a quase um quilômetro de distância. Um início de muito diálogo e um término de muito silêncio. Uma relação que começou com uma admiração profunda pelos meus textos, até culminar com um desprezo total por eles.
Vieram na minha conturbada cabeça outras mulheres. Aquelas que se atrasavam nos nossos encontros, só pra gente ter menos tempo de convívio. Aquelas que me pediram dinheiro. Aquelas que não me pediram nada, mas também não tinham nada a me oferecer. Era pra ser uma noite fantástica. Era pra eu me recordar das trepadas homéricas. Só que a imagem que ficou retida foi eu sendo abandonado num quarto de motel, com a frase “você precisa se tratar”.
A nossa cuca é meio traiçoeira. Parece que faz uma triagem dos flashbacks. Memória seletiva com critérios pra lá de suspeitos. Escolhe o que há de pior. É um filtro ao contrário. Você, tanto quanto eu, sabe como a gente gasta e investe pra alimentar nossas vidas com fragmentos de felicidade. Tempo, dinheiro, esforço, pensamentos positivos, altas expectativas, perfumes e roteiros da Vejinha. E o que sobra disso tudo? A vaga lembrança de um desencontro no metrô causado pela Estação Paulista na Consolação e Estação Consolação na Paulista.
Noite ingrata. Acelerou meu coração com frustrações. Trouxe à tona o desgaste e o desgosto. Não era esse o residual que eu queria. Era pra eu contar carneirinhos, não os pés-na-bunda. Todos dizem que a vida é cheia de prós e contras. Fazendo esse cálculo, o resultado do balanço final deveria ser o equilíbrio de um empate. Mas não. Ficou a sensação de uma derrota de 7 a 1.
E nada do sono aparecer.

terça-feira, 30 de junho de 2020

Farmácia


Minha mãe tem uma amiga de longa data que é dona de uma farmácia no Centro de São Paulo. Eu mal conheço essa amiga, muito menos a farmácia. Mas quero acreditar, no meu imaginário onírico, que se trata daquelas farmácias tradicionais. Com piso de mármore e prateleiras de madeira escura com portas de vidro. Daquelas em que o farmacêutico tinha que subir numa escada gigante para procurar algum medicamento mais raro. Não essas farmácias de hoje em dia, tudo Nutella. Hoje você entra numa farmácia e, se não fosse a fachada com a logomarca, você nem sabe a diferença entre uma e outra. Tudo muito igual, com a mesma cara. Muito genérico. E eu nem estou me referindo aos medicamentos de preço popular. Hoje você entra numa farmácia, se espreme nos corredores minúsculos pra não esbarrar em nada, e é atendido por uma moça que parece caixa de loja de departamentos. Não importa se você vai pedir um paracetamol ou o quebra-cabeça do Hulk. Se bobear, é até capaz de a farmácia vender esse quebra-cabeça. Ela vai te olhar com uma mecânica frieza e indiferença, vai abrir uma tela de computador, procurar no sistema se o produto encontra-se disponível em estoque e perguntar se você tem algum plano de saúde. Eu tô falando daquelas farmácias legítimas. Farmácia-raiz. Farmácia com ph. Daquelas em que você sente o cheiro de álcool porque atrás do balcão tem os biombos onde clientes tomam injeção. Daquelas em que não existia sistema. O próprio farmacêutico conhecia todos os medicamentos de cor e salteado. O sistema era sua memória. A planilha Excel era uma caneta-tinteiro que ele guardava no bolso de seu avental branco. É esse tipo de botica que reina meu inconsciente imaginário. Onde o dono foi colega de classe do Oswaldo Cruz. Onde tinha um cartaz amarelado do Biotônico Fontoura ao lado de uma balança mecânica com uma espátula vertical metálica embutida para medir sua altura. Numa época em que era impossível pagar suas compras pelo aplicativo ou com cartão de crédito. Era tudo no dinheiro vivo, guardado na gaveta de uma gigantesca caixa registradora que abria e fechava por meio de uma manivela.

Pois bem. Me parece que a amiga da minha mãe tem essa farmácia há muitas décadas. Acho que desde o suicídio do Getúlio Vargas. Provavelmente deve ter tido seu momento de apogeu. Sua glória mercantilista. Mas, com o tempo, acredito que acabou sofrendo o desgaste natural de um comércio bairrista. Por causa da concorrência. Da modernidade invasiva e avassaladora das grandes redes. Anos atrás, minha mãe conversou com essa amiga e soube que ela pretendia passar o ponto pra frente. Creio que o negócio ficou insustentável. A crise do país, o valor do aluguel, a folha de pagamento dos funcionários e suponho o que seja ainda pior: a falta de clientes. Disse minha mãe que ela tentou vender o estabelecimento para alguns grandes conglomerados de drogarias, mas não recebeu nenhuma proposta satisfatória. Eis que, recentemente, minha mãe me conta que soube por terceiros que essa amiga foi obrigada a fechar as portas. Encerrou as atividades de um projeto no qual se dedicou quase sua vida inteira. Entrou em bancarrota porque a conta não fechava. Isso, pelo que se soube, pouquíssimo tempo antes do início da pandemia.

O novo coronavírus é o principal responsável pela recessão mundial. Colocou milhões de trabalhadores nas ruas. Quebrou o pequeno e microempresário. Fez o número de desempregados dobrar aqui no país. Afundou as contas públicas. Botou os fundos emergenciais no negativo. Colocou em colapso vários setores da Economia, exceto um: medicamentos e derivados. Nos últimos meses, nunca houve uma procura tão grande por remédios. Logo nos primeiros dias de quarentena, faltava máscara e álcool gel nas farmácias. A cloroquina, até então vendida sem prescrição médica, sumiu das prateleiras. Sabonete passou a vender que nem água. Qualquer produto com promessas próximas do combate ao novo vírus, como bactericidas em geral, tiveram seus estoques zerados. Vermífugos então, nem se fala. As pessoas entram na loja pra fazer a compra do mês. A farmácia passou a ser o porto seguro da sociedade. O verdadeiro shopping center da cidade, que não precisou passar por um processo rigoroso de reabertura restritiva. Empresários do ramo que dobraram seu faturamento mostraram ser maus empreendedores. Na média, a maioria deles viu seu lucro quintuplicar. É o único segmento de mercado em que os donos estão rindo à toa. Os planos de expansão de seus negócios não param de ser noticiados. Eu vejo na TV o rosto do Sidney Oliveira, proprietário da Ultrafarma, mais do que do Jair Bolsonaro.

Nesse período de isolamento, pude observar e aprender muita coisa, em especial uma: tem gente que é azarada pra caralho.


domingo, 14 de junho de 2020

Trocando a lâmpada


Tem aquela piada que diz o seguinte: “sabe de quantos portugueses precisamos pra trocar uma lâmpada? Cinco. Um para segurar a lâmpada e quatro pra girar a escada”. É uma anedota velha. Talvez nas embarcações de Cabral alguém deve ter achado graça. De tão gasta que ficou, a piada passou por uma série de adaptações e reinvenções. E, só pra contextualizar, já vou avisando: eu sou um desses portugueses.

Minhas habilidades com serviços manuais, pequenos reparos da casa, beiram a zero. Se por acaso queimar a resistência do chuveiro, é capaz de eu tomar banho frio no inverno. Tenho medo de errar, de quebrar, de causar um acidente. Fico com a sensação de que sou um Rei Midas eletrostático: em tudo o que eu encostar vai dar choque. Na teoria eu sou brilhante. Modéstia inclusa, meu acervo de conhecimentos adquiridos nesse mais de meio século é invejável. Em compensação, na prática eu sou uma negação. Pra mim, é difícil até pedir uma pizza. Fico horas tentando fazer a melhor combinação entre sabores. Leio o cardápio de delivery como se estivesse devorando um livro. Quando minha mãe pergunta “e aí, já escolheu?” eu respondo: “calma, tô aqui na pepperone e não dá pra parar de ler. Acho que o gorgonzola da quatro queijos vai matar o gosto do catupiry com requintes de crueldade”. Tem também a questão das minhas ascendências judaicas. Todos sabem que quando você divide os sabores o valor cobrado é pelo mais caro. Se você pedir meia mussarela, meia camarão, vai ser o queijo mais caro da sua vida. Tem que usar um pouco a Matemática Financeira para equilibrar os custos e pedir uma combinação mais ou menos condizente nesse sentido.

Mas eu não vim aqui falar de pizza. Vim falar de lâmpada. Você já deve ter imaginado minha dificuldade em resolver essas coisas. Agora imagina isso numa pandemia. Comércio funcionando de modo restrito. Profissionais técnicos em recesso. E, mesmo os que estão trabalhando, não vou permitir que um terceiro entre na minha casa devido ao fato de eu morar com uma pessoa total grupo de risco. Minha mãe tem 75 anos, pré-diabética e toma remédio pra controlar a pressão. Mais grupo de risco do que isso, só se fosse da MPB. E se Deus me livre eu cair da escada ao tentar fazer as coisas sozinho, não vou poder ir ao hospital. Lá é o foco da Covid. Todas as áreas estão reservadas a pacientes com essa doença. Nenhum médico vai querer sair de sua ensandecida rotina de UTI pra examinar apenas uma costelinha quebrada. Caso isso acontecesse comigo, teria que me tratar com caixas e caixas de Dorflex até que a situação se normalize. Ou seja, no Natal.

Pois bem. Vamos aos fatos. Mais ou menos no começo da pandemia, queimou uma lâmpada do meu quarto de trabalho. Fui deixando porque, assim como você, acreditei que essa quarentena duraria 20 dias e em seguida poderíamos tocar o barco. Os dias passam, a gente tá numa noventena, perto da centena. A coisa foi ficando insustentável. Claro que durante o dia dá pra usar métodos homeopáticos, como por exemplo abrir a janela pra deixar o sol iluminar o ambiente. Deixar a luz acesa do outro quarto mais próximo. Tudo isso. Mas o problema foi se agravando. E minha vista também. Durante a quarentena, creio que ganhei em graus de miopia a mesma coisa que ganhei em quilos. Quem voltar a me ver daqui a algum tempo vai encontrar uma mistura do cantor Péricles com o Mr. Magoo.

Não pense você que é uma troca fácil de lâmpada. Eu não sou tããão desajeitado assim. Se fosse uma estrutura simples, bastava desatarraxar a lâmpada queimada do soquete e substituir por uma nova, fazendo o mesmo procedimento. A lâmpada que estragou estava acoplada a um lustre, que faz parte de um conjunto composto por um ventilador de teto. Olhei, examinei minuciosamente o aparelho, e não encontrei nenhuma abertura aparente no globo (aquela parte de vidro que encobre a lâmpada propriamente dita. Não sei qual é o nome técnico dessa geringonça, mas vou passar a chamar assim). Não restando outra alternativa, fui obrigado a entrar no Google pra consultar algum vídeo tutorial explicativo sobre o tema. Isso mesmo, caro leitor. ENTREI NO GOOGLE PRA VER COMO SE TROCA UMA LÂMPADA. Enquanto você usa seu tempo para ver as lives do seu cantor preferido, ou de algum especialista na área econômica, algum epidemiologista, eu passei o feriado de Corpus Christi aprendendo com um eletricista. E não é que apareceram vários vídeos na busca? Fiquei mais aliviado ao constatar que não sou o único do planeta com essa dificuldade. Na dúvida, assisti a TRÊS VÍDEOS. Afinal, quando o assunto é complexo e envolve os pareceres de profissionais da área acadêmica, é sempre bom consultar uma segunda opinião. Nesse caso, os três foram unânimes ao mostrar travas internas e explicar que bastaria girar o globo para tirá-lo do lugar, trocar a lâmpada e fazer a mesma coisa depois, em sentido contrário.

Tentei seguir as recomendações. Obviamente, não consegui. Comecei a girar o globo do seu suporte e, sem sucesso, ele não se soltou. O conjunto do lustre girou em falso e fiquei com medo daquilo tudo se soltar do teto e cair no chão. Aliás, vou confessar uma coisa. Quando vou a algum lugar com ventilador de teto, tipo uma padaria, e fico olhando fixamente pro aparelho, me dá a impressão de que a velocidade das pás do ventilador aumenta e elas vão adquirindo uma força a tal ponto de se soltarem do teto. Sempre fico achando que aquilo algum dia vai fazer o maior estrago. Que o ventilador vai cair no chão e as pás metálicas vão cortar as cabeças dos clientes. Na dúvida, sempre evito ficar embaixo de um. Na minha casa, eu não quis contar muito com a sorte. Desisti. Putaço. Liguei pro meu irmão pra resolver outros assuntos e, no contexto, comentei sobre meu ensaio sobre a cegueira. Ao contrário de mim, meu irmão tem mais prática com essas coisas. Ele pesquisa. Se não descobre, fuça. Se der errado, tenta de novo de outro jeito. Pesquisa de novo. Tenta de novo, até acertar. Eu não. Tento uma vez. Não consegui, fico uma pistola e vou descarregar minha raiva no Facebook. Entre uma pesquisa e outra, descobrimos que o modelo do meu conjunto lustre+ventilador não tinha nada a ver com os dos três vídeos. Fui abençoado de ter em mãos um modelo único de uma série limitada, cujo encaixe e desencaixe se dá de forma diferente e exclusiva. Em vez de girar pro lado, tem que puxar o globo pra baixo. Claro que meu cagaço aumentou na velocidade das pás. Já imaginei o centro gravitacional da Terra chamando eu, minha escada, os estilhaços do globo, os estilhaços finíssimos da lâmpada queimada e as pás assassinas. Fiquei até imaginando como começaria minha carta de despedida à minha família, a você e a todos os que me acompanham nas redes sociais. Preferi deixar quieto e voltar a ser cego até o ano que vem.

Só que minha teimosia falou mais alto. Eu não podia desistir assim fácil. Fui lá novamente subir a escada e, com a precisão cirúrgica das mãos e dos dedos, pressionei cuidadosamente o globo pra baixo. Consegui! Aquilo pra mim foi a glória. Sensação de policial que desmonta cativeiro de sequestrador e consegue resgatar a vítima das travas e entranhas do lustre. Saí carregando a peça de vidro com a mesma alegria de quem acaba de ter um filho. Até pensei em dar um nome àquele ornamento com cara de joelho: “vai se chamar Gabriel”. Conduzi o rebento até a sala como se fosse meu troféu. Minha emoção pelo feito, sem a ajuda de nenhum parente, vizinho ou técnico em Eletricidade, foi igual ao Romário quando marcou seu milésimo gol. Pra falar a verdade, nem sei se o Romário fez mil gols em sua carreira. Não entendo nada de futebol. Odeio esse ludopédio, acho muito chato. Quem fica correndo na grama atrás de uma bola não é craque, é labrador.

E assim termino essa aventura de isolamento social. Meu quarto tá com lâmpadas novíssimas, iluminadíssimas. Aqui de noite é tão claro como o dia que parece que eu tô na Austrália. Agora as paredes reluzem mais do que as areias de Fernando de Noronha. Em meio a tantas notícias tristes, finalmente um final feliz. E sem o globo pra me atrapalhar.


segunda-feira, 1 de junho de 2020

Muito o que aprender


Poderia ter sido um grande exercício de aprendizado para a democracia. Poderia ter sido o primeiro passo para a confraternização em tempos tão odiosos. Poderia ter sido, simbolicamente, a representação real da mobilização virtual “somos 70 por cento”. Poderia ter sido o xeque-mate para o pedido de impeachment do nosso presidente. Infelizmente, não foi nada disso.

Existe um conceito aplicado ao comportamento humano, que inclusive foi o mote de uma longeva campanha publicitária da revista Rolling Stone internacional, que disserta sobre a diferença entre “percepção” e “realidade”. Percepção foram os primeiros 15 minutos da manifestação em prol da democracia. Tudo aquilo que queríamos ver e acreditar. Uma caminhada pacífica, contra os abusos de poder e de autoridade de um governo federal nada pacífico. Muito embora os protagonistas deste ato estivessem cagando pra pandemia. Não seguiram protocolo nenhum de distanciamento social. Afinal, o que são 30 mil mortos e meio milhão de infectados? E realidade foi todo o resto. Igual a uma festa. Percepção são as pessoas produzidas, maquiadas, a sensação de que vai ser uma noite inesquecível. Já a realidade compreende a bebedeira, a maquiagem borrada, a música brega, o vômito no chão. E até uma possível briga. Com torcidas organizadas, não dá pra se esperar algo muito diferente. Trajadas de paz e amor, elas cumpriram o papel que sempre desempenharam: torcidas organizadas.

Tenho a impressão de que os movimentos que buscam essa harmonia social, com base no diálogo e não no confronto, jogam esses dizeres da boca pra fora. No fundo, cada um quer alimentar seu próprio dogma. Em tempos tão difíceis, com crises que se acumulam sobre crises, com a necessidade da aceitação do contraditório como forma de compreender melhor essa paranóia toda, o que menos sobra é espaço para a tolerância. Estamos, nas redes sociais, tão divididos quanto os grupos que ocuparam as vias da Av. Paulista. Do lado do MASP, os xiitas do bem. Do lado da FIESP, os xiitas do mal. Há quem ache que as manifestações foram apenas os primeiros vídeos, com gente alegre cantando. E há quem afirme que esses protestos foram apenas os minutos finais, com quebra-quebra e a polícia bombardeando os manifestantes. Ambos estão cegos. Ambos estão errados.

O governo do Estado de São Paulo já determinou que as próximas manifestações ocorrerão em dias diferentes, para evitar o confronto. As pessoas serão revistadas com mais rigor. São algumas medidas paliativas, que podem – ou não – surtir algum efeito. Torço para que funcionem. Apesar de que, me parece, ligaram o foda-se para o coronavírus.

Achar que a polícia, de um lado, andou de mãos dadas e acobertou os bolsonaristas e, de outro lado, atacou desmedidamente os “democratas” é tomar partido. Bobagem pura. Quem acompanhou os vídeos de forma mais completa pôde perceber que a PM ficou na retranca e só avançou à medida que os black blocks de plantão também avançavam. Houve ataques e contra-ataques de parte a parte. Igual a um jogo de futebol. Houve impedimentos, expulsões, penalidades máximas e muita violência. Igual a um jogo de futebol.

Talvez o taco de beisebol tenha sido o estopim dessa barbárie. O comandante da PM, em coletiva de imprensa, admitiu que esse material deveria ter sido apreendido. Mas não dá pra saber. Tá todo mundo com muita raiva. De tudo. De todos. De nós mesmos. Não seja ingênuo a tal ponto de acreditar que aquilo foi um remake do movimento pelas Diretas Já. Não foi. Aquela mixórdia foi nada mais do que um Fla X Flu na capital paulista. Apenas o repeteco da polarização que acompanhamos nas redes sociais. “Com muito orgulho e com muito amor” é só mais uma frase de hino ufanista. Não reflete o verdadeiro sentimento dos hooligans que ali estavam destruindo minha cidade. É só a percepção, e não a realidade.

Pra finalizar: odeio futebol. Não me identifico com torcida alguma. Ainda que estivéssemos livres da pandemia, essa pândega não é pra mim. E deixar de ir às ruas não é covardia. Ou comodismo. Ou abulia de fazer parte da história do nosso país. Não, não é. O que eu sei fazer é escrever. Meu campo de batalha é o papel. Da mesma forma que o ator faz seu protesto num palco. E rezo pra que isso volte a acontecer muito rapidamente. Ou que o pintor manifesta suas angústias numa tela em branco. Isso não me torna pequeno, incapaz. O Word pode até parecer insípido e irrelevante diante de tantas inovações tecnológicas. Mas é nele que, todo dia, eu lapido cada letra, cada palavra. Até que elas tenham a força e a contundência suficientes para provocar, ferir. Eu afio as frases e amolo as pessoas. Por favor, não me chame de ignavo. Estou aqui por recomendações da Organização Mundial de Saúde. Recluso, ermitão, antissocial. A luta vem daqui e é daqui mesmo que deve vir. Não era você que, até ontem, excluía todos os seus amiguinhos do Facebook contrários ao isolamento?



domingo, 31 de maio de 2020

Na dúvida, foda-se

É sabido que as ordens e as atitudes que vêm de quem está no topo são automaticamente replicadas por quem está na base. O famoso "o exemplo vem de cima". Se as autoridades recomendam que se fique em casa, é porque existe um motivo para a reclusão. O problema é, como todos já perceberam faz tempo, que cada um fala e faz uma coisa diferente. Prefeitos e governadores falam em isolamento social, enquanto o presidente vai pra padaria e pro seu cercadinho cumprimentar apoiadores e tirar selfies com populares. Imediatamente após cada aparição pública do nosso representante maior, os índices do fique em casa caem.

Embora estejamos no meio de uma polarização política sem precedentes, é comum se observar que, em todos os campos da humanidade, existem alguns níveis de apoio a uma determinada ideia. Do moderado ao radical. Em relação ao isolamento, há uma pequena parcela bem xiita. Não colocou a cara pra fora de casa durante esse quase-trimestre. Não pega elevador. Só faz compras por delivery e, mesmo assim, evita ao máximo qualquer tipo de contato com o entregador. Lava minuciosamente todo e qualquer item comprado. Do bombom à caixa de sabão em pó. Não recebe nem a família, que dirá amigos e vizinhos. Até o começo do ano, poderíamos supor que se trata de um caso patológico de paranoia antissocial. Hoje, é um comportamento relativamente aceito, ou pelo menos compreensível. É uma minoria, com muito medo de tudo o que está acontecendo. Existe um grupo mais moderado, que estabelece critérios com mais parcimônia e sai somente se for necessário. Ir a um supermercado, a uma farmácia, fazer uma rápida caminhada, tomar todos os cuidados e evitar aglomerações. Não dá pra saber se é um grupo 100% seguro, pois a doença é nova e a cada dia surgem novidades na mídia. E essa segurança deve-se, em parte, à dosagem de cuidados que a pessoa vem tomando. Poderiam restringir suas vidas às lives e aos aplicativos? Poderiam. Afinal, estamos num momento de guerra. Mas eu já ouvi diversos relatos, por exemplo, dos serviços de delivery criados, aperfeiçoados e improvisados na base do fast track. As taxas de entrega são absurdas, o prazo é extremamente longo e muitas mercadorias vêm adulteradas, ou trocadas, ou há itens faltantes no pedido. Enfim, tomar alguma decisão nesse sentido é uma questão de bom senso. E existe, também, o outro extremo radical: a pessoa que não está nem aí pra nada. Vai às ruas sem máscara, aglomera-se com a galera, tira a camiseta em dias de sol. Para eles, a pandemia não existe.

Não vou entrar no mérito sobre as pessoas que saem de casa por uma questão de necessidade. Trabalham na linha de frente da área de saúde. Prestam serviços considerados essenciais. Abrem seu comércio, de modo restrito, para não ir à falência. Vão aos seus empregos porque assim o chefe determinou. Para os demais, ficar ou sair é uma decisão em que pese a consciência. O radical misantropo sente-se injustiçado por estar fazendo não só a parte dele, mas também cobrindo a falta de noção do radical alienado.

Resta saber, principalmente aos dois primeiros grupos: mas e a volta? Está claro que eles estão seguindo as orientações do prefeito e governador, e não do presidente. Chegamos a um impasse. Em São Paulo, até poucos dias atrás falava-se na possibilidade de um lockdown. Uma medida mais drástica para tentar melhorar os índices de isolamento após algumas iniciativas mal-sucedidas. Agora, pouco tempo depois, fala-se na reabertura. Não quero desmerecer as conclusões tiradas por um comitê de contingência, formado por técnicos de diversas áreas. Mas a coisa ficou bem confusa para quem se abastece somente de informações rápidas. Entende-se que esse processo será lento, gradual e cuidadoso. Mas o Estado foi dividido em cinco regiões. O processo de afrouxamento foi dividido em cinco fases, representadas por cores. Quem está, por exemplo na divisa entre a capital e Osasco, ou Diadema, e se essas regiões apresentarem cores diferentes, não sabe o que fazer. A imprensa divulgou, de modo apressado, a abertura dos shoppings. Isso não vai acontecer agora. Estamos na fase embrionária. Mas a sensação de que o comércio está voltando a funcionar já contaminou parte da população. Principalmente os moderados.

E, já que estados e municípios sinalizam recomendações mais permissivas, essa demonstração cai como uma bomba para quem procura se resguardar. Por outro lado, é o cheque em branco para quem não está nem aí. Ontem mesmo eu ouvi, aqui de casa, um vizinho voltando a fazer o que sempre fazia: pancadão. Pagode e música ruim no volume máximo, churrasco e cervejada para os amigos. Um monte de amigos, pelo som da conversa. A gritaria toda até de madrugada foi um bônus. Um sinal de ostentação, não só para minar tudo de solidário que se construiu durante a pandemia, mas para provar para as autoridades que, naquela casa, quem manda é ele. Aquela gritaria não foi só um sinal de desrespeito ao próximo, como também serviu de provocação. O fulano quis mostrar pra todo mundo que está sim descumprindo a quarentena. Já que estamos vivendo num calabouço político e os poderes estão brigando entre si, resta o discurso do ódio e o egoísmo pra se colocar em prática. E daí?

domingo, 24 de maio de 2020

É de chorar


Quando os profissionais de marketing do banco Bradesco solicitaram à sua agência de propaganda um comercial para TV, muito provavelmente o briefing deve ter sido: “quero um filme que faça as pessoas chorarem”. Conseguiram. No momento mais crítico da saúde pública em nosso planeta, não dá pra ficar insensível àquela sequência de imagens de crianças brincando de médico, ao som da música Fascinação, traduzida pelo compositor Armando Louzada e interpretada pela inconfundível voz de Elis Regina.

Claro. Esse comercial é uma obra de ficção. A realidade é um pouquinho diferente. E mais dura. E mais perversa. Nos noticiários que intercalam os 30 segundos de comovente ternura, percebemos a sina diária e suas consequentes dificuldades dos microempreendedores para se conseguir crédito facilitado com as instituições bancárias. Ao contrário do que o Governo Federal prometeu. Não se trata de acusar aqui especificamente o Bradesco, o Itaú, o Santander. Os bancos, como um todo, estão impondo uma série de barreiras e restrições ao crédito a tal ponto de tornar essa tarefa inviável. Não há liquidez no mercado. O dinheiro, portanto, ficou muito mais caro. E, pela lei da oferta e da procura, ganha o privilégio quem puder pagar melhor. Ou, pelo menos, oferecer garantias mais consistentes de zerar suas dívidas e honrar esse triste compromisso. Essa situação surreal não só fere a lógica do sistema como também coloca em xeque o próprio capitalismo. O pequeno empresário solicita um empréstimo mas, para isso, precisa demonstrar que tem caixa para pagar esse empréstimo. Meus senhores, estamos vivendo numa pandemia. Situação de calamidade pública. Não é pedir demais algum tipo de flexibilização, de todas as partes, em todas as esferas da roda econômica. Como é que a manicure, o dono de academia, o dono de um bar, o professor de Inglês conseguem comprovar sua fonte de rendimentos dos últimos dois meses, sendo que esse é justamente o período do início da quarentena e eles foram obrigados a fechar seus estabelecimentos? Que tipo de sentimento verdadeiro os bancos procuram causar quando recusam distribuir esse montante de dinheiro no sentido de não corroborar com uma sociedade ainda mais injusta? Ou o comercial não passa de uma mentirinha, uma brincadeirinha de ninar ao embalo da maior cantora do Brasil?

Senhores profissionais de marketing do Bradesco e de todas as instituições bancárias privadas e públicas desta nação sem noção: vocês conseguiram. Todo esse baixo clero da Economia, que emprega a maior parte dos assalariados, que de fato movimenta a ciranda financeira do nosso arrasado país, está chorando. De tristeza. De desespero. De angústia. De desesperança. Não é nada fácil abrir um sorriso quando não há o que se colocar na mesa pra comer. Aqui ficam meus parabéns. Vocês causaram uma comoção social muito maior do que imaginavam.