terça-feira, 19 de novembro de 2019

Vegan, coach e cross fit


O vegano, o coach e o praticante de cross fit são muito chatos. Não sou eu quem está dizendo isso. É o comediante Maurício Meireles em seus shows de stand up. É a galera das redes sociais. Se você por acaso se encaixa em um desses grupos, paciência. Infelizmente, os tribunais do Facebook elegeram algumas estirpes como pessoas do bem, em detrimento dessa tríada considerada o mal do século. Mas fique tranquilo: em tempos de WhatsApp, de stories e de quick massage, o mal do século não dura mais do que um semestre.

Talvez a alcunha de malas sem alça para esse público tenha algumas explicações. Afinal, não há problema nenhum em manter uma alimentação saudável e equilibrada, praticar exercícios regularmente e usar frases positivas em seu dia a dia. O problema talvez seja o modismo. E tudo o que é moda está ligado à percepção de efemeridade ou enganação. Claro, alguns adeptos vão dizer que essas práticas não são moda, são filosofia de vida. OK, tudo bem. Mas filosofia de vida também tem seu prazo de validade. Os hippies, por exemplo. Pregavam a paz e o amor, eram pouco ligados ao consumismo, viviam em comunidades e acreditavam na energia telúrica. Hoje, ninguém tem mais saco pra comprar miçangas de um riponga com suas batas indianas e flauta boliviana. Não é só a roupa, a música e o corte de cabelo que saem de moda. Perfume sai de moda. Sândalo e patchouli já eram. Comida sai de moda. Oferecer tender com abacaxi num jantar vai fazer você impressionar... pela breguice. Tatuagem sai de moda. Quem diria, um desenho na sua pele, pra ficar ali pra vida inteira, é algo efêmero também. Tatuar âncoras marinhas, corações flechados era coisa dos anos 70. Já os anos 80 foram marcados por tigres e dragões. Nos anos 90 vieram as tatuagens tribais. Logo depois as frases bíblicas, mas isso era mais pros funkeiros. Hoje, pra fazer tatuagem, você não escolhe um objeto. Você pede um storyboard. Você chega e diz “queria cobrir meu braço”, ou seja, a ilustração tem que ter começo, meio e fim. Antigamente se dizia que número ímpar de tatuagens dava sorte. Hoje entramos no campo da Física Quântica, em que se tornou impossível numerar tatuagens múltiplas e com final aberto. Quando um cliente chega a um estúdio, a assistente do tatuador dá a ele aquele calhamaço de imagens de referência. Logo depois o tatuador pergunta: “E aí? Gostou de alguma?”. “Sim, adorei. Queria fazer as páginas 12, 17 e 35”.

Outro motivo que coloca a trinca no elenco dos chatos talvez seja a sua insistência. A incontrolável vontade de te aliciar para a seita deles. Tudo gira ao redor de sua nova crença, sua nova forma de pensar o mundo. Encerra-se qualquer possibilidade de nascer outro assunto. Seu comportamento fica com cara de doutrinação, e isso pode afastar um pouco as pessoas. Eles precisam entender que não é todo mundo que está na mesma vibe, ou tem a mesma predisposição. Quando um Testemunha de Jeová toca a campainha de sua casa num domingo às 8 da manhã, ninguém sai acordando e fala: “Nossa, ainda bem que você chegou! Precisava MUITO ouvir a palavra de Deus!”. E as abordagens do trio muitas vezes soam meio como catequese mesmo. Tipo Amway, quem se lembra? Descobrir que um amigo seu entrou pra Amway era pior do que descobrir que um amigo caiu no mundo das drogas. “Nossa, ele me parecia tão bem!”. Você fugia dessas pessoas. E esgotava seu estoque de pretextos: minha mãe tá chamando, meu tio acabou de ser operado, vou entrar em uma reunião. Isso quando VOCÊ não era o próprio vendedor da Amway. Ou representante, executivo de vendas, sócio-empreendedor, sei lá qual eufemismo eles inventavam para essa palavra tão desgastada. A Amway nada mais era do que uma pirâmide. Mostrava os faraós de sucesso, denominados por pedras preciosas, em suas convenções que lotavam auditórios. Mas a base, a maioria, era constituída pela plebe que tinha que arcar com os custos de material e viagens, e ainda transformar amigos em potenciais alvos de compra. Eu até acredito que sua linha de produtos era durável e de qualidade. Mas jamais pagaria R$ 90 por um sabonete. Creio eu que quem comprou os produtos da empresa foram os próprios vendedores, pra poder ganhar pontos/estrelas. E devem estar usando até hoje.

Então vamos por partes. O vegano. Ele é tipo um vegetariano, só que filiado ao PSTU. Tudo bem fazer campanha contra o consumo e a matança de animais. Estudos mostram que o homem, durante toda a sua vida, come uma quantidade de carne equivalente às fazendas pecuárias de Mato Grosso. Eu até queria me tornar vegetariano, se não gostasse tanto de carne. Mas o vegano é mais radical. Não basta apenas abdicar da carne vermelha, branca, outras cores, ovo, leite e derivados. Vegano não come mel. Não abraça árvore pra não machucá-la. Faz campanha contra bullying em samambaias. Deita na rua pra protestar contra as músicas que os donos tocam para seus cachorros. Eu tenho um certo medo de esbarrar com algum desses fundamentalistas de supermercado. Fico imaginando que toda manhã eles estendem seu tapete de vime em direção à Amazônia, ajoelham-se sobre ele e rezam o cântico aos Saltimbancos. Pode escrever. Mais cedo, mais tarde, um desses fanáticos por coxinha de jaca vai entrar num açougue, puxar sua UZI da mochila e atirar em todos os fregueses abraçados em suas sacolas cheias de coxão mole, numa das cenas mais sanguinolentas da história.

Já o crossfiteiro deve ser algum ganhador da Mega Sena que não quis revelar sua sorte pra ninguém. Ele paga uma bica pra ficar o dia inteiro carregando pneu de caminhão. Se o Seu Pedro, dono do Martelinho de Ouro aqui perto de casa soubesse, nem precisava contratar o preguiçoso do ajudante Alcides. O treinador de cross fit é a versão mais roots de quem faz Pilates. Que é uma outra coisa que não entendo muito bem. A pessoa fica horas e horas deitada sobre uma bola do Playcenter. Dizem que é um exercício foda e corrige toda a sua coluna. Quem sou eu pra discutir com essa técnica de ginástica inventada após a Segunda Guerra? Pra mim, entrar numa piscina de bolinha de plástico do Habib’s resolvia o problema. E sairia muito mais em conta: se pedir 5 esfihas de carne, a hora é grátis. E com direito a meia hora de wi-fi. Mas cada um é cada um. O pilateiro faz aqueles exercícios de grávida e é feliz com isso. Não duvido. Com todo aquele esforço, capaz de um dia sair um rebento de sua barriga sem ele perceber. Já o crossfiteiro faz mais ou menos o mesmo alinhamento, balanceamento e cambagem corporal, só que em cima de uma cama de tortura. E ainda quer te convencer a frequentar as aulas. Meu amigo, pense um pouco. Se eu fosse desembolsar alguma quantia, seria para a Smart Fit. Só pra ficar sentado naquela cadeira massageadora, com ar-condicionado no talo, olhando pros glúteos femininos.

Por último, o coach. Esse sim é espeto. Compilou conceitos básicos da Psicologia e do Marketing. Usando técnicas fundamentais de Neurolinguística, aplicadas ao mundo moderno dos negócios, conseguiu ganhar muito dinheiro com isso. O coach nada mais faz do que um mashup de autoajuda com gestão empresarial. É uma mistura de Philip Kotler com Lair Ribeiro. Se você catar alguns preceitos dessas ciências e aplicar em qualquer frase extraída de apresentação de Power Point, conseguirá ser um coach de sucesso. Vamos fazer um teste: “você precisa fazer um rebranding em sua consciência”. “Analise melhor seu key performance indicator para ampliar seu networking”. “Conseguir amigos e influenciar pessoas depende só do seu return over investment”. “Para ter sorte no amor, mantenha o foco na relação business-to-business”. “Suas couraças só vão se romper após um overview do seu background”.

Mas existe coisa pior. É o chato que reúne tudo isso: vegano, coach e crossfiteiro. Já pensou? O sujeito te chama pra comer hambúrguer de soja, e depois queimar as calorias carregando pedra enquanto ouve um podcast do Richard Bandler? Tô fora. Esse cara merece mesmo ser bloqueado.


segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Cabelo horroroso


Semana passada, o radialista gaúcho Rogério Mendelski foi acusado de racismo ao fazer um comentário sobre o cabelo da ex-vereadora Marielle Franco. Segundo ele, aquele cabelo preso é “horroroso”. Sinceramente, não vejo nada de mais nessa observação. Numa população tão biodiversa como a nossa, com tantas texturas, tons de pele e cores de pantone, é natural gostar de alguma coisa e não gostar de outra. Foi apenas uma opinião do radialista, a meu ver. O que se pode discutir, talvez, seja a pertinência e relevância do comentário, se aquilo realmente foi necessário diante do contexto. Fora isso, é um direito inconteste do acusado. Da mesma forma, é natural aparecer quem discorde dele e ache o cabelo da Marielle lindo. Faz parte do jogo democrático. Só que o problema é que não vivemos um jogo democrático. As tonalidades genéticas são infinitas, entretanto, as discussões são binárias e polarizadas. Dias atrás, joguei um post no Facebook meio que pra alimentar uma polêmica. Falei que não gostava do sotaque carioca. Aliás, tenho vários amigos cariocas, diga-se de passagem. E nem todos os falantes do Rio de Janeiro me incomodam, pra falar a verdade. Mas aquela pronúncia acentuada me irrita um pouco. Assim como não gosto de acarajé, o que em nada significa que deixaria de gostar dos baianos. Uma amiga minha, carioca, respondeu de maneira fina, elegante e sincera: “foda-se”. Achei a melhor resposta. Ou seja, meu gosto em nada importa pra ela. E vida que segue. Por outro lado, uma indivídua que sequer a conheço pessoalmente, e que provavelmente deixou de me seguir desde então, invadiu minha área com seus axiomas, suas certezas, suas verdades absolutas, e concluiu por conta própria que eu sou preconceituoso e racista (talvez regionalista seja a melhor palavra). São os juízes Dredd de plantão, que te observam nas redes sociais, detectam um crime e aplicam suas próprias penas. Dependendo do caso, uma execução sumária, sem direito a julgamento.

Voltemos à Marielle. Se a crítica a seu cabelo é algo condenável, que suscita e faz apologia ao racismo, devemos então estipular os mesmos pesos e medidas. Porque, do jeito que está, de acordo com esse tribunal aí do Facebook, falar que o cabelo do Bolsonaro é horroroso (e de fato é) pode. Falar que o cabelo da ex-vereadora é horroroso não pode. O que está em jogo, portanto, não é o cabelo, tampouco o horroroso. É a Marielle. Ícone da resistência. Vilipendiar sua figura imaculada é algo proibidíssimo. Um pecado que te conduz direto ao Inferno.

Eu tenho o cabelo crespo. Nasci de cabelo liso, mas aos 11 anos teve uma epidemia de piolho na escola e tive de raspar a cabeça. Dizem que o cabelo cresce mais crespo e mais duro depois que se raspa, como foi o caso do Gianecchini. Além disso, o fato ocorreu na minha adolescência, fase de todo um desarranjo genético. Então, imagine você. Desde os meus 11 anos, há cerca de quatro décadas, não só venho ouvindo que meu cabelo é horroroso. Já fui chamado de judeu sarará, pixaim, cabelo frito, cabelo ruim, poodle velho, Valderrama, bombril, se fizer cafuné dá choque. Minha professora de Educação Artística (que também tinha cabelo crespo), durante os cinco anos em que me deu aula, sempre me chamou de Crespinho. Em meia década, ela fazia questão de não decorar meu nome. Mas eu não sou a Marielle. Sou branco. E homem. Para os milicianos das redes sociais, sou um dos culpados e responsáveis por toda essa crise de desigualdades que assola a Humanidade. No entendimento desses ministros do Supremo Tribunal Facebookiano, composto majoritariamente por brancos,  não há como comparar o nível de sofrência entre a pessoa que é discriminada na fila de supermercado e entra pelo elevador de serviço e o semita que estudou em colégio particular do Bom Retiro. Ser chamado de alguns adjetivos, por sinal muito mais peados do que “horroroso”, é sem dúvida uma dívida social que tenho que pagar, um ônus probante da minha culpabilidade por esse hediondo estado das coisas. Assim como as flexões que um soldado tem que pagar a seu general, quando faz algo de errado que ele nem mesmo sabe o que é. Dias atrás, minha mãe comentou com uma amiga ao telefone um fato que eu fiz questão de apagar da memória. Ela disse que um dia eu (ou meu irmão, não entendi ao certo) cheguei da escola mais cedo, chorando, com o cabelo todo sujo de terra. Eu não disse o que era, mas ela logo suspeitou que foi coisa de coleguinha de classe. Pois bem. Radialista da Rádio Guaíba que desagrada seus ouvintes com suas palavras corre o risco de perder o emprego e faz a emissora se retratar em público. Já este hebreu, esta sobra de Holocausto que vos escreve, que não foi assassinado pela família do atual Presidente, deve mais é tocar seu dia a dia. Faz parte da vida. É passado, tá tudo certo. Homem branco tem mais é que voltar pra casa com o cabelo crespo sujo de terra.

Ano passado fiz um curso de stand up comedy. No exercício de se criar e testar novas piadas, comecei meu texto falando justamente sobre essa diferença entre racismo de branco e racismo de negro. Meu professor me recomendou a não entrar muito nessa celeuma. Disse que a plateia branca não iria comprar muito minha ideia. Sugeriu que eu amenizasse o tom e deixasse o texto mais palatável ao grande púbico. Não sei se por ironia, ou talvez para deixar a contradição ainda mais aparente, ele me orientou a usar a técnica cumulativa de punchline e enumerar uma série de adjetivos e metáforas pejorativas que acentuassem ainda mais minha pele alva. Pinscher albino, papel A4, modelo de museu de cera, filhote de Galak, toma banho com Omo, reflete o sol da praia. É isso, minha gente. Comparar um negro a um boneco de piche é algo intolerável em terceira instância em tempos tão racistas como os de hoje. Dá cadeia pela Lei Afonso Arinos. Já se referir a esta pessoa como um sorvete de talco não pega nada. “Ah, ele vai entender. É só uma brincadeirinha”. Chamar um negro de preto é inadmissível. Aí somos obrigados a usar eufemismos quando não sabemos o nome da pessoa: aquele moreninho... aquela mulatinha... o que torna a coisa ainda pior. Já usar o genérico “aquele judeu ali” apontando pra minha direção, isso pode. Da mesma forma, pode chamar aquele japonês ali de “japoronga do pau pequeno”. Porque, como dizem, não existe japonês mendigo. Os nipônicos ocupam os primeiros lugares das faculdades, comem peixe todo dia, fundaram a Toyota. Não têm do que reclamar. Ser xingados de pênis em desvantagem centimétrica é um mal menor.

Isso tudo me lembra uma das cenas finais de Faça a Coisa Certa, filme de exatos 30 anos atrás, dirigido pelo (negro) Spike Lee. Planos fechados em líderes de seus guetos, falando pra câmera. Italiano sendo preconceituoso com o negro, que é preconceituoso com o chinês, que xinga o judeu, que é racista com todos os não-judeus, e corta para o muçulmano, para o ucraniano, para o senegalês, e por aí vai. A conclusão que tiro é que não só não evoluímos um pingo nessas três décadas, como tenho a sensação de que estamos andando pra trás. Essa hipocrisia disfarçada de juízo de valores, essa intolerância disfarçada de piadinha de salão, essa invasividade disfarçada de jeito latino de ser, pra mim tá tudo muito disfarçado, muito xiita usando sua máscara em prenúncio a uma inevitável convulsão social. Como eu já disse em uma postagem/profecia anterior, estamos adubando o campo fértil pra que nossa sociedade reproduza réplicas e mais réplicas de Arthur Fleck. Estou rodeado de inimigos que me dão tapinha nas costas.