Minha mãe tem uma amiga de longa data que é dona de uma
farmácia no Centro de São Paulo. Eu mal conheço essa amiga, muito menos a
farmácia. Mas quero acreditar, no meu imaginário onírico, que se trata daquelas
farmácias tradicionais. Com piso de mármore e prateleiras de madeira escura com
portas de vidro. Daquelas em que o farmacêutico tinha que subir numa escada
gigante para procurar algum medicamento mais raro. Não essas farmácias de hoje
em dia, tudo Nutella. Hoje você entra numa farmácia e, se não fosse a fachada
com a logomarca, você nem sabe a diferença entre uma e outra. Tudo muito igual,
com a mesma cara. Muito genérico. E eu nem estou me referindo aos medicamentos
de preço popular. Hoje você entra numa farmácia, se espreme nos corredores
minúsculos pra não esbarrar em nada, e é atendido por uma moça que parece caixa
de loja de departamentos. Não importa se você vai pedir um paracetamol ou o
quebra-cabeça do Hulk. Se bobear, é até capaz de a farmácia vender esse
quebra-cabeça. Ela vai te olhar com uma mecânica frieza e indiferença, vai abrir uma
tela de computador, procurar no sistema se o produto encontra-se disponível em
estoque e perguntar se você tem algum plano de saúde. Eu tô falando daquelas
farmácias legítimas. Farmácia-raiz. Farmácia com ph. Daquelas em que você sente
o cheiro de álcool porque atrás do balcão tem os biombos onde clientes tomam
injeção. Daquelas em que não existia sistema. O próprio farmacêutico conhecia
todos os medicamentos de cor e salteado. O sistema era sua memória. A planilha
Excel era uma caneta-tinteiro que ele guardava no bolso de seu avental branco. É
esse tipo de botica que reina meu inconsciente imaginário. Onde o dono foi
colega de classe do Oswaldo Cruz. Onde tinha um cartaz amarelado do Biotônico
Fontoura ao lado de uma balança mecânica com uma espátula vertical metálica
embutida para medir sua altura. Numa época em que era impossível pagar suas
compras pelo aplicativo ou com cartão de crédito. Era tudo no dinheiro vivo,
guardado na gaveta de uma gigantesca caixa registradora que abria e fechava por
meio de uma manivela.
Pois bem. Me parece que a amiga da minha mãe tem essa
farmácia há muitas décadas. Acho que desde o suicídio do Getúlio Vargas.
Provavelmente deve ter tido seu momento de apogeu. Sua glória mercantilista.
Mas, com o tempo, acredito que acabou sofrendo o desgaste natural de um
comércio bairrista. Por causa da concorrência. Da modernidade invasiva e
avassaladora das grandes redes. Anos atrás, minha mãe conversou com essa amiga
e soube que ela pretendia passar o ponto pra frente. Creio que o negócio ficou
insustentável. A crise do país, o valor do aluguel, a folha de pagamento dos
funcionários e suponho o que seja ainda pior: a falta de clientes. Disse minha
mãe que ela tentou vender o estabelecimento para alguns grandes conglomerados
de drogarias, mas não recebeu nenhuma proposta satisfatória. Eis que,
recentemente, minha mãe me conta que soube por terceiros que essa amiga foi
obrigada a fechar as portas. Encerrou as atividades de um projeto no qual se
dedicou quase sua vida inteira. Entrou em bancarrota porque a conta não
fechava. Isso, pelo que se soube, pouquíssimo tempo antes do início da
pandemia.
O novo coronavírus é o principal responsável pela recessão
mundial. Colocou milhões de trabalhadores nas ruas. Quebrou o pequeno e
microempresário. Fez o número de desempregados dobrar aqui no país. Afundou as
contas públicas. Botou os fundos emergenciais no negativo. Colocou em colapso
vários setores da Economia, exceto um: medicamentos e derivados. Nos últimos
meses, nunca houve uma procura tão grande por remédios. Logo nos primeiros dias
de quarentena, faltava máscara e álcool gel nas farmácias. A cloroquina, até
então vendida sem prescrição médica, sumiu das prateleiras. Sabonete passou a
vender que nem água. Qualquer produto com promessas próximas do combate ao novo
vírus, como bactericidas em geral, tiveram seus estoques zerados. Vermífugos
então, nem se fala. As pessoas entram na loja pra fazer a compra do mês. A
farmácia passou a ser o porto seguro da sociedade. O verdadeiro shopping center
da cidade, que não precisou passar por um processo rigoroso de reabertura restritiva.
Empresários do ramo que dobraram seu faturamento mostraram ser maus empreendedores.
Na média, a maioria deles viu seu lucro quintuplicar. É o único segmento de mercado em que os donos estão rindo à toa. Os planos de expansão de seus
negócios não param de ser noticiados. Eu vejo na TV o rosto do Sidney Oliveira,
proprietário da Ultrafarma, mais do que do Jair Bolsonaro.
Nesse período de isolamento, pude observar e
aprender muita coisa, em especial uma: tem gente que é azarada pra caralho.