terça-feira, 20 de maio de 2014

Pai e filho


-       Já tão cedo, filho?
-       Já, pai. Era pra eu chegar mais tarde. Bem mais tarde. Mas deu merda.
-       Se divertiu bastante?
-       Nada... quer dizer, tive lá meus momentos de glória, mas no geral a coisa tava bem embaçada.
-       Embaçada?
-       Miada... quer dizer... sabe quando você espera uma puta festa? E você acha que vai ser o protagonista dela? E se dá conta de que aquilo tudo, aquela fantasia toda, é tudo a ostentação da decadência? E que você não aproveitou nem metade do que poderia aproveitar? Puta palhaçada...
-       Sei como é. Mas enfim, me conta...
-       Conta o quê?
-       O que você está fazendo aqui tão cedo, com essa cara de porre?
-       De porre? Você sabe que eu quase não bebo.
-       ...
-       Tô meio chateado, meio puto, meio pra baixo... tava no lugar errado e na hora errada, foi isso.
-       Por isso que você chegou aqui agora, sozinho?
-       Foi.
-       ...
-       Não devia pegar aquele atalho. Devia fazer o caminho que sempre faço. E outra: era pra eu ter ido embora faz tempo, o pessoal é que ficou insistindo pra que eu ficasse um pouco mais.
-       Que pessoal?
-       Da firma. A gente foi prum barzinho lá perto. E você sabe como é bêbado, né? Perde a noção do tempo, do espaço... “fica mais um pouco, a saideira, nhé nhé nhé”... Saí mais tarde de lá, cheguei mais cedo aqui.
(O pai começa a ficar preocupado e demonstra um interesse ainda maior) – Quer falar sobre isso?
(O filho quase começa a chorar. Com a voz meio engasgada, continua o assunto) – Não, não quero. Mas foi isso. Entrei numa rua escura... tinha tomado umas duas breja, e olha que eu nem bebo! Entrei numa rua escura, em direção ao meu carro, fui pegar a chave do bolso, tava meio breaco, meio lerdo, dificuldade de raciocínio, não percebi o movimento, aí o moleque veio pra cima de mim.
-       ??
-       Isso mesmo. Tava nervoso e tremendo o filho da puta. Pediu a chave do carro, queria que eu fosse junto, não sabia se ia no volante ou na carona, foi tudo muito confuso...
-       ...
-       Aí ele desistiu, começou a falar gíria, tava noiado o bostinha...
-       Mas o que ele queria de verdade?
-       EU NÃO SEI! Hoje em dia esses bandidos não são muito claros. (Com voz ensaiada, em tom de desprezo) “A bolsa ou a vida”... Lembra dessa frase manjada? Pelo menos ali tinha um objetivo muito claro, muito específico. Hoje você fica meio sem entender se o carinha quer sua grana, seu carro, seu celular, se vai fazer sequestro-relâmpago pra dar rolê em caixa eletrônico... uma bosta.
-       Uma bosta.
-       E com tanta tecnologia, rastreador, qualquer gesto em falso o neguinho acha que é reação. Às vezes eles atiram só porque acham que você tem cara de trouxa. A raiva é tão grande que mesmo você entregando tudo eles atiram pra matar. Sabem que não vai acontecer nada com eles...
-       Mas você entregou o que eles pediram?
-       Claro! Eles não, ELE. Preto safado, filho duma égua. Tava tão cheirado que nem prestou atenção direito no que eu tava fazendo. Achou que eu ia tirar uma arma do bolso, pode? Deu um tiro, depois mais dois pra garantir. E cá estou eu, na companhia do senhor.
-       Nem sei o que dizer, meu filho. Tô morrendo de saudades de todos vocês, mas por outro lado eu queria que você ficasse muito mais lá.
-       “Lá”, tsã... LÁ tá uma merda, pai. Cê nem faz ideia de como aquele mundinho tá ruim. Piorou muito...
-       E como tá a mãe?
-       Arrasada, né... pra ela o mundo acabou. Primeiro você, agora eu, ela tá BEM sem chão...
-       E como foi o enterro? Tinha muita gente?
-       Enterro nada. Preferi fazer que nem o senhor: cremado! Sem burocracia, sem taxa de manutenção, sem aquela encheção de saco que foi o enterro da vó. Não quero nem ocupar espaço nesse mundo de merda que eu deixo pra trás. Joguem minhas cinzas ao mar, perto de uma árvore, na Galeria do Rock, na puta que pariu.
-       Tava cheio?
-       Olha, sabe como é, né? Rolou aquela comoção geral, Facebook, post atrás de post e o caralho... até saiu notinha na imprensa... mais por causa do lance da violência urbana do que pelo legado que deixo. Foi um chororô virtual que o senhor não faz ideia. Mas no crematório mesmo, cheeeeio, cheio, não tava. Tava o tio, a família, alguns parentes que a gente só encontra em ocasiões especiais, mas poucos amigos, pouca gente. Tudo meio em cima da hora, vai ver o pessoal não foi por causa dos compromissos, da correria, sei lá... Mas também, foda-se. Até porque aquilo é uma salinha pra choro, não um buffet de bar-mitzvah.
Risos.
-       E a namorada?
-       Tô namorando não, terminei. Não sei se ela ficou sabendo disso tudo. Se bem que eu acho que morri pra ela faz tempo. Caguei pra ela.
-       Mas me conta: você tava envolvido com drogas?
-       Que pergunta, pai! Eu até dei uns tapas de vez em quando, uma cheiradinha básica, doce uma vez numa rave, mas eu não era disso não. Olha, o lance do trombadinha no carro foi ACIDENTE! Ele quis a grana, se desesperou e PIMBA! Tem nada a ver com acerto de contas. Nunca fui muito chegado a drogas. Na facu me ofereciam direto...
-       E você era feliz?
-       Que pergunta... mas tá certo, agora a gente tem todo o tempo do mundo pra conversar. Pode perguntar o que quiser.
-       Filho, aqui o conceito de tempo e espaço é um pouco diferente. Não existe “esperar um tempão” ou “eternidade”. Passamos pra outra dimensão, com outras grandezas, err... matemáticas, cósmicas, sei lá. Também não sei se a gente vai conseguir se ver direto. Capaz de um de nós desaparecer. Mas você tem razão, podemos conversar sobre tudo aquilo que não conversamos enquanto a gente vivia.
-       Putz, você não tem noção de como eu me arrependo disso. Sempre achei que era melhor não tocar no assunto, que teríamos um dia só pra botar a conversa em dia, mas no fundo eu sabia que esse dia nunca ia chegar. Acho que era medo, insegurança, sei lá...
-       A gente brigava muito também.
-       É, a gente brigava muito. Você é muito difícil e eu tenho um gênio filho da puta, fala sério...
-       É, mas agora a gente pode fazer a coisa diferente. Então me conta, por que você terminou o namoro?
-       Terminei porque a gente pensava diferente sobre muitas coisas. O relacionamento estava murchando, ela era muito ciumenta. Só pra você ter uma ideia, teve um dia que ela...