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Já
tão cedo, filho?
-
Já,
pai. Era pra eu chegar mais tarde. Bem mais tarde. Mas deu merda.
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Se
divertiu bastante?
-
Nada...
quer dizer, tive lá meus momentos de glória, mas no geral a coisa tava bem
embaçada.
-
Embaçada?
-
Miada...
quer dizer... sabe quando você espera uma puta festa? E você acha que vai ser o
protagonista dela? E se dá conta de que aquilo tudo, aquela fantasia toda, é
tudo a ostentação da decadência? E que você não aproveitou nem metade do que
poderia aproveitar? Puta palhaçada...
-
Sei
como é. Mas enfim, me conta...
-
Conta
o quê?
-
O
que você está fazendo aqui tão cedo, com essa cara de porre?
-
De
porre? Você sabe que eu quase não bebo.
-
...
-
Tô
meio chateado, meio puto, meio pra baixo... tava no lugar errado e na hora
errada, foi isso.
-
Por
isso que você chegou aqui agora, sozinho?
-
Foi.
-
...
-
Não
devia pegar aquele atalho. Devia fazer o caminho que sempre faço. E outra: era
pra eu ter ido embora faz tempo, o pessoal é que ficou insistindo pra que eu
ficasse um pouco mais.
-
Que
pessoal?
-
Da
firma. A gente foi prum barzinho lá perto. E você sabe como é bêbado, né? Perde
a noção do tempo, do espaço... “fica mais um pouco, a saideira, nhé nhé nhé”...
Saí mais tarde de lá, cheguei mais cedo aqui.
(O pai começa a ficar preocupado e demonstra um interesse ainda maior) –
Quer falar sobre isso?
(O filho quase começa a chorar. Com a voz meio engasgada, continua o
assunto) – Não, não quero. Mas foi isso. Entrei numa rua escura... tinha tomado
umas duas breja, e olha que eu nem bebo! Entrei numa rua escura, em direção ao
meu carro, fui pegar a chave do bolso, tava meio breaco, meio lerdo,
dificuldade de raciocínio, não percebi o movimento, aí o moleque veio pra cima
de mim.
-
??
-
Isso
mesmo. Tava nervoso e tremendo o filho da puta. Pediu a chave do carro, queria
que eu fosse junto, não sabia se ia no volante ou na carona, foi tudo muito
confuso...
-
...
-
Aí
ele desistiu, começou a falar gíria, tava noiado o bostinha...
-
Mas
o que ele queria de verdade?
-
EU
NÃO SEI! Hoje em dia esses bandidos não são muito claros. (Com voz ensaiada, em
tom de desprezo) “A bolsa ou a vida”... Lembra dessa frase manjada? Pelo menos
ali tinha um objetivo muito claro, muito específico. Hoje você fica meio sem
entender se o carinha quer sua grana, seu carro, seu celular, se vai fazer
sequestro-relâmpago pra dar rolê em caixa eletrônico... uma bosta.
-
Uma
bosta.
-
E
com tanta tecnologia, rastreador, qualquer gesto em falso o neguinho acha que é
reação. Às vezes eles atiram só porque acham que você tem cara de trouxa. A
raiva é tão grande que mesmo você entregando tudo eles atiram pra matar. Sabem
que não vai acontecer nada com eles...
-
Mas
você entregou o que eles pediram?
-
Claro!
Eles não, ELE. Preto safado, filho duma égua. Tava tão cheirado que nem prestou
atenção direito no que eu tava fazendo. Achou que eu ia tirar uma arma do
bolso, pode? Deu um tiro, depois mais dois pra garantir. E cá estou eu, na
companhia do senhor.
-
Nem
sei o que dizer, meu filho. Tô morrendo de saudades de todos vocês, mas por
outro lado eu queria que você ficasse muito mais lá.
-
“Lá”,
tsã... LÁ tá uma merda, pai. Cê nem faz ideia de como aquele mundinho tá ruim.
Piorou muito...
-
E
como tá a mãe?
-
Arrasada,
né... pra ela o mundo acabou. Primeiro você, agora eu, ela tá BEM sem chão...
-
E
como foi o enterro? Tinha muita gente?
-
Enterro
nada. Preferi fazer que nem o senhor: cremado! Sem burocracia, sem taxa de
manutenção, sem aquela encheção de saco que foi o enterro da vó. Não quero nem
ocupar espaço nesse mundo de merda que eu deixo pra trás. Joguem minhas cinzas
ao mar, perto de uma árvore, na Galeria do Rock, na puta que pariu.
-
Tava
cheio?
-
Olha,
sabe como é, né? Rolou aquela comoção geral, Facebook, post atrás de post e o
caralho... até saiu notinha na imprensa... mais por causa do lance da violência
urbana do que pelo legado que deixo. Foi um chororô virtual que o senhor não
faz ideia. Mas no crematório mesmo, cheeeeio, cheio, não tava. Tava o tio, a
família, alguns parentes que a gente só encontra em ocasiões especiais, mas
poucos amigos, pouca gente. Tudo meio em cima da hora, vai ver o pessoal não
foi por causa dos compromissos, da correria, sei lá... Mas também, foda-se. Até
porque aquilo é uma salinha pra choro, não um buffet de bar-mitzvah.
Risos.
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E
a namorada?
-
Tô
namorando não, terminei. Não sei se ela ficou sabendo disso tudo. Se bem que eu
acho que morri pra ela faz tempo. Caguei pra ela.
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Mas
me conta: você tava envolvido com drogas?
-
Que
pergunta, pai! Eu até dei uns tapas de vez em quando, uma cheiradinha básica,
doce uma vez numa rave, mas eu não era disso não. Olha, o lance do trombadinha
no carro foi ACIDENTE! Ele quis a grana, se desesperou e PIMBA! Tem nada a ver
com acerto de contas. Nunca fui muito chegado a drogas. Na facu me ofereciam
direto...
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E
você era feliz?
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Que
pergunta... mas tá certo, agora a gente tem todo o tempo do mundo pra
conversar. Pode perguntar o que quiser.
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Filho,
aqui o conceito de tempo e espaço é um pouco diferente. Não existe “esperar um
tempão” ou “eternidade”. Passamos pra outra dimensão, com outras grandezas,
err... matemáticas, cósmicas, sei lá. Também não sei se a gente vai conseguir
se ver direto. Capaz de um de nós desaparecer. Mas você tem razão, podemos
conversar sobre tudo aquilo que não conversamos enquanto a gente vivia.
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Putz,
você não tem noção de como eu me arrependo disso. Sempre achei que era melhor
não tocar no assunto, que teríamos um dia só pra botar a conversa em dia, mas
no fundo eu sabia que esse dia nunca ia chegar. Acho que era medo, insegurança,
sei lá...
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A
gente brigava muito também.
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É,
a gente brigava muito. Você é muito difícil e eu tenho um gênio filho da puta,
fala sério...
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É,
mas agora a gente pode fazer a coisa diferente. Então me conta, por que você
terminou o namoro?
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Terminei
porque a gente pensava diferente sobre muitas coisas. O relacionamento estava murchando,
ela era muito ciumenta. Só pra você ter uma ideia, teve um dia que ela...