segunda-feira, 2 de maio de 2022

Coronel Mostarda

Deixe de lado por enquanto a supremacia da pastelaria Yokoyama ou da lanchonete A Chapa, verdadeiros ícones pioneiros surgidos nas redondezas da Aclimação e Cambuci. Aqui, vou me dedicar a relatar minha experiência (palavrinha da moda, eu sei) em outro império da zona Sul paulistana: a papelaria Momotaro.

Hoje reduzida a uma portinhola de garagem, com uma abatida fachada de parede, essa loja marcou minha infância e adolescência. Principalmente a segunda fase, período em que passei a estudar num colégio estadual logo abaixo do venerado estabelecimento. 

Nos anos 80, a Momotaro era um dos meus preferidos parques de diversões. Na época ainda não existia a nababesca Ri Happy, mas a proposta e concepção de loja, guardadas as devidas proporções, eram parecidas. Tinha um pouco de tudo: material escolar, presentes, artigos importados, brinquedos... mais ou menos que nem as Lojas Mel, só que com uma diferença: nesta última você entra, se perde, avista de tudo mas não encontra nada. A Momotaro tinha um clima mais caseiro, familiar. Era grande e aconchegante ao mesmo tempo. 

Familiar não era só o tratamento dado aos fregueses. A loja pertencia a uma família mesmo. Tinha a matriarca, durona sem ser austera, que conhecia as prateleiras e corredores do introito ao cabo. A filha, simpática, que sabia embrulhar presentes como ninguém. Papel pra cá, fita pra lá, tudo se envolvia numa dança bonita de se ver. E com uma leveza e agilidade, como se estivéssemos assistindo a um espetáculo butô com o tema de origami. Se a memória não me falha, o pai ou o tio cuidava do caixa. E, é claro, fazia as contas de cabeça. Me parece que um irmão também ajudava na loja. Ah, tinha também o avô, um centenário ancião que vigiava o estacionamento. Sim, a Momotaro tinha estacionamento próprio nos seus áureos anos. Meus amigos do colégio abaixo onde estudei, típico de adolescente, jogavam pedras em direção ao telhado metálico do abrigo de carros, com o único objetivo de assustar o velhinho. 

A Momotaro me supria em tudo o que precisava pra me tornar um aluno melhor: régua, transferidor, borracha, cola plástica, compasso, caneta esferográfica, lápis de cor, normógrafo e quetais. Mas foi naquela loja, nos idos da década de 80, que comprei aquilo que faz uma criança passar para a fase adulta: o caderno universitário. Sair com um desses debaixo do braço é o que faz a diferença entre um menino e um homem. Estava mais do que na hora de aposentar os caderninhos de brochura, um de cada matéria escolar, caprichosamente encapados pela minha mãe com um plástico quadriculado. O livreto acadêmico tinha o imponente formato A4. E reunia, por meio de divisórias, espaço para se escrever sobre todas as matérias ensinadas. Num único compilado de papel. Caminhar pelas redondezas do colégio com um caderno desses era tão revolucionário e magistral quanto mascar chicletes, fumar escondido, usar gel no cabelo, tomar Coca-Cola sem ser no almoço de domingo ou andar de patins. Isso sem falar nas capas. Eu já não tinha mais idade pra fazer propaganda de graça exibindo o logotipo da Editora Melhoramentos. Era preciso ostentar uma imagem que tivesse mais a ver comigo. Um surfista pegando onda. Uma tatuagem bem acabada de um dragão. A língua dos Rolling Stones. Era na Momotaro que eu vivi a transição estética entre a Turma da Mônica e o Andy Warhol. E eu sofria por antecipação. A cada virada de ano eu ficava tentando imaginar qual seria a capa da vez desses opúsculos. Tratava-se de um fenômeno tão aguardado quanto tentar adivinhar qual vai ser a capa do novo disco do Foo Fighters. E foi nesses gigantescos e universais cadernos que eu aprendi a escrever e reescrever a história da minha vida. Entre vários rabiscos, rascunhos e garatujas, fui errando e acertando as equações do segundo grau. Foi nas linhas pautadas que copiei a fórmula das reações inorgânicas. Inspirado no Simbolismo, usei as linhas pautadas como chão para escrever minhas primeiras linhas poéticas. Arranquei a folha presa pelo espiral de alumínio na lateral do livreto e entreguei para o primeiro amor da minha vida. Não fui correspondido.

A Momotaro teve um papel fundamental no meu desenvolvimento escolar. Mas não foi só nos estudos que ela foi importante pra mim. Vivi tempos de inflação alta, em que os estabelecimentos remarcavam os preços de seus produtos duas vezes ao dia. Mas, antes disso, lembro que ainda era possível juntar dinheiro em casa, nos cofrinhos em formato de porco, sem ter de recorrer ao overnight. E foi juntando as mesadas que ganhava da minha avó, de cruzeiro em cruzeiro, que abracei esse montante de cédulas e adquiri, por esforço próprio, o objeto de desejo da minha família: o jogo Detetive. Ah, como era bonito abrir aquele tabuleiro decorado, que simulava a planta baixa de uma casa onde havia ocorrido um misterioso assassinato. Cada suspeito tinha o nome de uma cor que, por sinal, era a mesma do pião que conduzia os jogadores até o centro do espetáculo. Dona Violeta, quem diria... uma senhora tão frágil e simpática. Ou até mesmo o erudito Senhor Black. E o que dizer então das armas? Réplicas perfeitas em miniatura dos mais diversos objetos cortantes, pontiagudos ou atiradores. Faca, revólver, candelabro...

Hoje, dentro do meu ônibus em direção ao Terminal Amaral Gurgel, passo quase todo dia pela Momotaro e percebo que ali reside uma vaga lembrança do que essa dinastia dos papeis já foi. Não sei qual é mais estreito e decadente: a loja ou o boteco ao lado. Tempos difíceis. Passamos um biênio trancafiados por causa da pandemia, e o comércio fechado. Passado o susto, vem uma inflação galopante, em parte impulsionada por uma guerra no leste europeu. E, antes mesmo da Covid, ou da Guerra da Ucrânia, as pessoas já estavam deixando de consumir esses derivados da madeira. Tudo é pelo e-book, pelo site, pelo grupo de zap. Por mais tecnológica que seja, a família Momotaro não se rendeu à venda de chips de celular. Seriam só mais um em um milhão. Prefiro guardar na memória esse império do passado com a mesma clareza e vivacidade que guardo os versos de Augusto dos Anjos. Não sei mais quantos deles ainda estão vivos. Mas tenho plena convicção de que quem matou parte dessa antológica família não foi o vírus, nem a inflação, muito menos os modernos recursos digitais. Foi o Coronel Mostarda, com uma chave inglesa, na sala de estar.


Klondike - A Guerra na Ucrânia

Em 2014, no momento em que começa a Guerra em Donbas, o casal de ucranianos Irka e Tolik vive na região da fronteira entre seu país e a Rússia. Ela está grávida e eles fazem planos para o futuro. Nesta primeira cena, uma grande explosão ocorre no local e destrói a casa onde moram, dando o tom dramático para o resto do filme. Irka se recusa a abandonar sua casa, mesmo quando seu vilarejo é tomado pelas forças armadas. Tudo fica ainda mais complicado quando um avião civil é abatido e cai na região.

A Guerra da Ucrânia, assunto bastante atual, serve de fio condutor ao filme. Mas não é nela que a diretora Maryna Er Gorbach se debruça. Os destroços da cidade, acompanhados por ruidosos estampidos de bombas o tempo todo, fazem o papel de um metrônomo, um marcapasso para as relações pessoais que se degringolam em progressão geométrica. De um início supostamente feliz do casal vamos acompanhando um comportamento que beira o primitivo. Prova-se, aí, que a guerra tem o poder de destruir não só os bens materiais de uma sociedade.

É possível notar uma certa obsessão da realizadora para se alcançar esse retrato cru e primal do ser humano. O resultado, porém, ultrapassa um pouco as fronteiras, ficando no limite entre a economia dos signos e o exagero das interpretações. Um pouco menos de pólvora atingiria o alvo com a mesma precisão.