quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Como Agradar uma Mulher

Tudo começa com um grupo de mulheres no vestiário, após um banho de mar. Elas reclamam da presença de água-viva na água, que deixa manchas e cicatrizes na pele. Esse é o cenário inicial. Um banho cotidiano, nada erotizado. Nenhuma beldade em cena.

O filme começa a ganhar fôlego quando a protagonista Gina, em seu aniversário de 50 anos, recebe a visita inesperada de um profissional do sexo. Trata-se de um presente enviado por suas amigas. Ao se oferecer para fazer o que ela quiser, ouve como resposta: "quero que você limpe a casa". A partir daí Gina se transforma num tipo de cafetina, que agencia serviços masculinos ao mesmo tempo domésticos e sexuais.

Guardadas as devidas proporções, o longa australiano lembra um pouco o britânico Ou Tudo ou Nada, em que um grupo masculino involuntariamente se transforma em strippers. Em ambos os casos quem domina a cena é gente como a gente. Pessoas comuns, sem grandes atributos físicos ou apelos eróticos.

Mas um ponto-chave aqui é o tratamento dado às mulheres. A diretora Renée Webster até coloca os dilemas dos garotos de programa, como por exemplo um deles que está prestes a ser pai. Porém, isso fica em segundo plano quando o foco é o universo feminino. O filme foge das questões morais, ou pelo menos não se debruça sobre elas. Simplesmente acompanha um processo de revitalização daquelas que até então eram submissas, recatadas e do lar. Tanto é que até os banhos no vestiário vão ganhando um verniz mais sensual. É como se, na teoria, o filme estivesse emoldurando um novo estilo de vida. Na prática, mais do que uma saborosa comédia de costumes, isso pode servir de ponto de partida para a emancipação feminina num patamar mais elevado da sociedade.


quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Plano A

A primeira cena, uma imagem submersa e uma locução em off questionando o espectador sobre uma tomada de decisão, já deixa clara a cumplicidade provocativa que o filme sugere. Como se fosse a legitimação de tudo o que será mostrado a seguir.

Plano A se passa em 1945, exatamente no período pós-guerra. Um grupo de judeus germano-poloneses e sobreviventes do Holocausto planejam contaminar o abastecimento de água potável em várias grandes cidades da Alemanha ocupada, em retaliação aos crimes cometidos durante o período da Segunda Guerra Mundial.

Filmes sobre o nazismo em seu apogeu existem aos montes. Mas essa abordagem num momento subsequente é relativamente inédita. E os diretores Doron e Yoav Paz se saem bem. Existe uma construção de arco dramático consistente, sem os possíveis escorregões na pieguice. 

Quem ajuda no bom resultado é o excelente ator August Diehl no papel principal. Expressivo em suas feições minimalistas, sem cair em exageros, Diehl dá o tom certo ao personagem que ganha força à medida que o filme consegue nos convencer da proposição colocada no início.


sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Arthur Moreira Lima - Um Piano para Todos

A primeira cena é a construção e montagem de um palco, numa pequena cidade. Silêncio absoluto, interrompido apenas pelos eventuais sons do ambiente. Presume-se, a partir daí, que o documentário Arthur Moreira Lima - Um Piano para Todos foge um pouco do lugar-comum. E foge mesmo.

Quando falo de lugar-comum, estou me referindo aos clichês do gênero. Exaustivas cenas de arquivo do passado, intercaladas por depoimentos de celebridades ou pessoas conhecidas e próximas ao homenageado enaltecendo suas qualidades ou revelando algum fato curioso. É o famosos estilo talking heads de expor ideias. Os enquadramentos, os cortes, as pausas, tudo é muito parecido.

Aqui, neste longa escrito e dirigido pelo estreante Marcelo Mazuras, observa-se menos a necessidade de trazer informações sobre uma unanimidade nacional e mais o acompanhamento de um processo de mudança, reflexões e transformações na trajetória profissional do pianista. As cenas de arquivo, os estudos no exterior, as premiações recebidas, passam quase de relance. O filme centra no encontro do artista com um público mais carente, mais distante da música erudita. Como se o ícone do clássico estivesse disposto a despir essa visão elitista da arte. O mais aclamado intérprete de Chopin decidiu, nas últimas décadas, se dedicar a um projeto de democratização da música de concerto. Saiu pelo Brasil a bordo de um caminhão-teatro, se apresentando em praça pública por mais de 600 cidades pelo interior de todo o país.

Arthur Moreira Lima (o filme), portanto, ganha frescor ao sair das partituras e ir ao encontro da plateia. Nas mãos do diretor, essa jornada fica menos arcaica e rebuscada. Fica mais natural.


A Conferência

Em 1942, representantes de alto escalão do regime nazista alemão se reuniram em uma vila no sudoeste de Berlim para uma pauta que ficou conhecida como a Conferência de Wannsee, talvez a mais terrível da história. Eram 15 líderes da SS e da burocracia ministerial, convidados por Reinhard Heydrich, chefe da polícia de segurança, para discutir a "Solução Final para a Questão Judaica".

Apresentado dessa maneira, fica claro que o assunto é de máxima importância. Poucos filmes se debruçaram sobre o tema. A maioria dá um enfoque nas consequências desse ato e coloca como espaço cênico os campos de concentração nazistas.

Porém, trocar esse cenário por algo menos espetaculoso, como uma sala de reuniões, e fazer um filme quase em tempo real, abrindo mão das elipses cinematográficas, é uma missão de alto risco. Não que o resultado seja necessariamente curto e limitado. As duas versões de Doze Homens e uma Sentença para o cinema, por exemplo, são maravilhosas.

A Conferência, por outro lado, esbarra num processo de construção narrativa extremamente complexo e moroso. Tudo se imprime de modo muito árduo, rígido, didático. Não existe um respiro. É como se, em cada fala, se extraísse ao máximo um pedaço da história. Isso tem lá seu valor. Mas, analisado como um todo, o filme melhor se encaixa num livro do que numa tela.


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Palavras

Era um vez o Joãozinho. Assim mesmo. Um nome comum, idêntico a tantos outros Joãos, campeão absoluto de registros em cartório. Tratado dessa forma, no diminutivo, para deixar bem clara sua simplicidade, sua idade baixa e sua pequenez.

Joãozinho foi sempre o protagonista de histórias tão comuns quanto ele. Narradas em terceira pessoa, ordem cronológica, com substantivos próprios fáceis de se escrever, adjetivos puros e paroxítonos, tempos verbais nada complexos: ora presente do indicativo, ora pretérito perfeito.

Até que um dia... até que um dia... a trajetória de Joãozinho foi invadida por palavras estranhas. Desconhecidas. Importadas. Inóspitas para o lugar-comum em que ele morava.

Vocábulos feios, sujos e malvados. Verbetes horríveis, que mal conseguiam olhar a si mesmos no espelho. Elementos cheios de ódio, de raiva, de rancor Nascidos para matar.

De onde teriam saído esses vermes, esses ratos de papel? Como puderam se proliferar com tanta pressa e facilidade? Qual vitamina tomaram para se transformar em maioria absoluta das letras? Por que tanta cegueira diante da beleza lírica dos contos e das fábulas?

De repente, não mais que de repente, o livro de Joãozinho foi acometido pela lactose, pela neurose, pela overdose. A namorada de escola, Maria, foi misteriosamente sequestrada. Colocaram no lugar a isonomia, a leucemia, a pandemia. Junto com elas vieram a masculinidade tóxica, o feminicídio, o cisgênero. O bullying, o storytelling, o burnout, o crossfit, o mindset, o podcast, o coach, o copydesk, o overview, o feedback, o jackpot, o lookalike, o setlist, o mood, o cashback, o turnover, o compliance. A selfie, prima da vibe, tímidas, recatadas e insossas. Como um obediente gado de rebanho, estacionaram nas páginas do opúsculo de Joãozinho a criptomoeda, a meritocracia, a bioimpedância. A clusterização, a harmonização, a gamificação. A comorbidade. a rentabilidade, a navegabilidade. A polarização, do bolsonarismo à venezuelização. Neologismos se criaram e se reproduziram feito girinos em poça d'água: recência, crocância, atingimento. 

Solitárias, essas isoladas palavras ganharam força. Uniram-se, como um exército missionário. Uma milícia secreta. Treinaram pesado para vencer o inimigo. Tornaram-se faixas pretas em artes marciais. Compraram armas. Rasgaram bandeiras. Quebraram placas de avenida e antigos logradouros que estampavam incontáveis Josés, Marias e independências. Barricadas de frases feitas fecharam atalhos, impedindo o livre trânsito das onomatopeias. Clichês compostos e enfileirados ocuparam o lugar dos monossílabos tônicos. A cidade de Joãozinho se viu tomada por valor agregado. Menos é mais. Fome de dono. Margem de erro. Superar desafios. Estratégia 360. 

As linhas de caderno que serviam de estrada para Joãozinho se transformaram em commodity. O parque de brincar com as letras virou shopping center. Apesar de não haver nenhum grau de parentesco, o pobre Joãozinho tornou-se uma réplica de tantos outros engravatados desconhecidos que, com seus diplomas, passaram a brilhar em noticiários. Apresentações de campanha. Críticas literárias. Redes sociais. Relatórios de conglomerados. Balanços financeiros. Análises algorítmicas. Defesas de tese. Sessões neurolinguísticas. 

E aí, deu em Joãozinho uma saudade enorme e doída da aurora de sua vida. Das palmeiras e dos sabiás. Da pipoca de canjica, pipoca de panela, pipoca de cinema. Do futebol de botão. Das ruas com pedrinhas de brilhantes. Do amor que arde sem se ver.

Não por acaso, Joãozinho entrou em coma. Foi parar no hospital. Disse para ele mesmo, em pensamento, que sofria de tristeza. De falta de esperança. De uma dor esquisita sem nome, mais ou menos na região do peito e do coração. Não foi isso que os atestados médicos apresentaram. Nesses laudos, constava esquizofrenia aguda. Transtorno do humor bipolar. Transtorno do déficit de atenção. Esclerose múltipla. Síndrome de Asperger. Síndrome de Estocolmo. Síndrome de Aarskog. 

E foi assim que, nascidos e criados sob o mesmo teto, eles - Joãozinho e as palavras - desapareceram dessa história e morreram infelizes para sempre. 

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Desaparecidos

Depois de uma meteórica passagem pelos cinemas brasileiros, chega ao streaming esta produção francesa. Seu rápido desaparecimento dos circuitos de telona se justifica. É mais um típico filme B, daqueles que recheiam os catálogos das distribuidoras, mas não encontram um diferencial potente nem um público cativo pra se desovarem.

Na trama, a mediana Olga Kurylenko vive Alice, uma cientista forense que inventou uma técnica de restauração de cadáveres danificados. Ela visita a Coreia do Sul para participar de uma conferência e recebe um pedido da polícia do país para realizar uma autópsia em uma vítima encontrada em um rio. Jin Ho, o detetive responsável pelo caso, descobre pelo resultado da autópsia que o corpo está relacionado a um sindicato de tráfico de órgãos.

Sem grandes inspirações, o filme traça o famigerado caminho de suspense e mistério para se chegar a uma solução. E tudo fica calcado nas mesmices e nos clichês, reforçando a sensação de que se trata de apenas mais um subproduto do gênero.


sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Os Ossos da Saudade

De acordo com a sinopse, “Os Ossos da Saudade” é um filme sobre a ausência, narrado a partir das vivências de pessoas que experimentam sentimentos de falta e distância, espalhados por Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde. Brasileiros e estrangeiros atravessados pela saudade, que, de alguma forma, carregam o Brasil em seus baús interiores. 

Trata-se, portanto, de um registro mais intimista, menos didático e cartesiano, que foge um pouco do convencional estilo "talking heads" de documentar. Tanto é que, em muitas passagens, o protagonista é filmado de costas, ou nem mesmo aparece em cena. Ponto para o diretor mineiro Marcos Pimentel.

O problema é que esse excesso de subjetivismo corre o risco de cair em armadilhas. No conjunto da obra, Os Ossos da Saudade tem um pouco a cara de filme feito para ganhar prêmios em festivais. Claro, existe um cuidado estético, um precioso rigor formal. Mas, em muitos momentos, esse preciosismo se confunde com um certo cinema-fórmula de circuitos alternativos.

Corre à boca pequena, entre os críticos e profissionais de Cinema, o comentário de que, quando existe uma crise criativa por parte dos realizadores, basta filmar a correnteza dos rios e mares. Claro, trata-se de uma observação pejorativa e simplória. Mas, os olhos de quem assiste ao filme do outro lado da tela, fica um pouco difícil encontrar um significado plausível para estabelecer uma relação, mínima que seja, entre esses devaneios estilísticos e a proposta de se falar sobre saudade e memória. Não é exatamente uma enganação. Mas fica o gosto de um certo hermetismo.

Ainda assim, feito o reparo, Os Ossos da Saudade é um bom filme. Traz um retrato bem temperado de lentes que buscam espaços vazios, ruínas geográficas, vozes solitárias que procuram compreender algo que ficou no pretérito de suas vidas.


O Próximo Passo

Este novo filme de Cédric Klapisch poderia muito bem se chamar De Volta ao Albergue. Lançado no circuito brasileiro imediatamente após seu filme anterior, De Volta à Borgonha, o diretor retoma algumas características que marcaram seus primeiros trabalhos, notadamente Albergue Espanhol, e que foram mais ou menos abandonados no penúltimo filme. 

Na primeira cena, temos a impressão de nos depararmos com um majestoso tributo à dança, algo peculiar na filmografia de Carlos Saura, por exemplo. Mas o anticlímax aparece logo em seguida. Elise, uma jovem e promissora bailarina clássica, se machuca em uma apresentação após flagrar a traição do namorado. Essa ruptura do tornozelo serve também de metáfora para a quebra do ritmo que o diretor impõe ao seu trabalho. Dali em diante, surgem situações que nada lembram a beleza coreográfica de um baile: laudos médicos, conflitos pessoais e, principalmente, a busca pela resposta sobre um novo rumo na vida da personagem, algo que inspira o título.

É nesse momento que Klapisch volta às suas origens e mescla o individualismo existencialista de seus personagens com o coletivismo do convívio em grupo. Em Albergue Espanhol, essa marca era muito gritante Aqui, um pouco mais sutil. O retiro de Elise, que coincide com um espaço de ensaios de um grupo mais jovem, é a prova disso. É no intercâmbio das relações pessoais que o diretor encontra sua força e a medida certa para fazer um filme simples e ao mesmo tempo denso.


terça-feira, 23 de agosto de 2022

O cu do Imperador

Pela primeira vez na nossa história o povo brasileiro poderá ver o ânus de Dom Pedro I. Trata-se de uma homenagem ao Imperador pelos 200 anos de independência da república tupiniquim. A exibição em público dessa partícula final do intestino encerrará os rituais comemorativos e, para isso, foi totalmente embalsamada em formol e guardada num recipiente à prova de todo e qualquer tipo de contaminação.

Embora o pedaço proctal esteja blindado, contando com uma equipe de segurança 24 horas por dia, pouco se sabe ao certo o motivo pelo qual será ostentado à população. Por que não os olhos de Dom Pedro? O fígado? A grande mídia, muito mais preocupada em preparar debates presidenciais, pouco noticiou o assunto. O porta-voz do Governo, mais uma vez, não se pronunciou. O que sobrou então foram apenas hipóteses e conjecturas de estudiosos e formadores de opinião.

Leviano Hang Loose, proprietário de uma importante rede do varejo, apoiador confesso do atual Presidente, declarou em seus grupos de WhatsApp que a analogia é evidente e cristalina. Estamos, afinal de contas, celebrando a independência do país verde-amarelo. E, como todos sabem, o ânus é um órgão independente e autônomo. Adepto ao neoliberalismo, trabalha a hora que quer. Faz jornada extra e não reivindica por mais direitos. A vontade de ir ao banheiro, reparem, nada tem a ver com os avisos dos neurônios. Não existe um condicionamento físico dos pulmões para tal ato. Alongamentos musculares antes da descarga fecal podem, literalmente, induzir que tudo vai dar merda.

Já outras facções menos alinhadas ao regime tendem a discordar. Jacques Gordini, cientista político que se autoexilou do país, entende se tratar de uma atitude homofóbica e carregada de machismo estrutural. De acordo com o ex-BBB, isso representa uma apologia velada e preconceituosa à discriminação de gênero, já que os gays, homossexuais e transexuais gostam de dar o cu. Pelo menos a maioria deles.

Essa percepção, contudo, não é unânime. O analista político Celso Arquibancada acha que existe uma correlação com o atual momento de Bolsonaro, que está com o cu na mão caso perca as eleições. Por outro lado seu companheiro de mesa, Dulcídio Orquidi, entende que quem está com o cu na mão é justamente o Lula, que vem perdendo pontos nas pesquisas eleitorais e vê a diferença de intenções de votos reduzir a cada novo levantamento.

Nem todos, contudo, enxergam o viés político nesse ato simbólico. Perguntada sobre o tema, a estilista da periferia e influenciadora digital Ludmilla von Thiesse retrucou: "O que tem a ver o cu com as calças?".

O fato é que, no próximo dia 7 de setembro, o Brasil inteiro vai assistir ao escatológico desfile do esfíncter real - e retal. Como se fosse um exame de colonoscopia ao vivo. Qual o significado desse mumificado produtor de bosta? Fica aqui a pergunta. Nosso país está suficientemente chafurdado no lodaçal de merda, com uma classe trabalhadora sem trabalho e sem comida. E uma classe política sem classe e sem caráter. Mas que não se envergonha de mostrar, pro mundo inteiro, o cu do nosso imperador.


sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Luta pela Liberdade

O diretor Zhang Yimou se consagrou por fazer filmes de artes marciais e dinastias imperiais. Desta vez, abandona esse campo e se propõe a fazer uma obra de espionagem. Representante da China ao Oscar 2021, Luta pela Liberdade se passa no estado de Manchukuo, um lugar controlado pelo governo, na década de 1930. Quatro agentes especiais do Partido Comunista retornam à China depois de receber treinamento na União Soviética. Juntos, eles embarcam em uma missão secreta com o codinome "Utrennya". Depois de serem dedurados por um traidor, a equipe é ameaçada de morte por todos os lados.

Com seu preciosismo técnico, Zhang traz um trabalho cuidadoso e com uma beleza própria. Nada tão reluzente e escarlatino quanto Lanternas Vermelhas. Ou meticulosamente sorumbático quanto Shadow. Aqui é o branco da neve que dá o tom cromático, um recurso natural até então pouco explorado pelo diretor.

Embora caprichado na forma, Luta pela Liberdade resvala em uma trama complexa, muitas vezes confusa, que exige uma atenção especial. Oscila entre o denso e o desordenado. Tem lá seus méritos mas, se comparado a obras-primas mais remotas, trata-se de um filme menor. 


De Volta à Borgonha

Recentemente, as salas de cinema brasileiras acolheram o francês Lola e Seus Irmãos, que disseca as relações familiares entre parentes que se reencontram. Agora é a vez de Cédric Klapisch dar a sua versão sobre o que une - e separa - um trio de irmãos que, com suas semelhanças e diferenças, se veem obrigados a se ver novamente.

A comparação entre Lola e De Volta à Borgonha para por aí. As brigas, os conflitos de interesse e a ausência de um deles fazem parte do repertório de ambos. Mas em De Volta existe todo um aparato estético, quase noveleiro, que se diferencia do anterior.

Estamos falando de uma família que herda a vinícola de seu pai, recém-falecido. Esse pano de fundo serve de prato cheio para exibir cenas de paisagens campestres e processos de fabricação do vinho. Tudo muito lindo, nítido, com uma luz forte para realçar os detalhes e dar ao filme um tom quase National Geographic. 

Entretanto, Klapisch tem o dom de fazer sua obra escapar de um comercial de restaurante da alta gastronomia. Ainda bem. No meio de tanto primor bucólico, o diretor encontra espaço para mostrar um clã endividado e pouco experiente para exercer sua função de patrões. É nesse âmbito que Klapisch se sai melhor, deixando seu requinte etílico apenas como atrativo superficial para debruçar sobre o que sabe fazer de melhor: captar as relações humanas, sem cair em clichês ou diálogos forçados e atuações falsas.

Nesse sentido, De Volta à Borgonha parece ser um retrato mais maduro se comparado aos sucessos Albergue Espanhol e Bonecas Russas, onde tudo parecia uma folha de rascunho, um grande teatro de improviso recheado de boas intenções e sequências espertinhas. 


sábado, 30 de julho de 2022

Eu, Christiane F., 13 Anos, Drogada e Prostituída

Não são poucos os filmes que se aproveitam oportunisticamente de transcrever para as telas best-sellers literários e provam ser verdadeiros fiascos, como é o caso da saga Crepúsculo e da trilogia 50 Tons de Cinza. Eu, Christiane F., está um pouco acima dessa régua. O que não quer dizer muita coisa. Fez até um certo burburinho à época de seu lançamento mas, revisto 40 anos depois, em cópia remasterizada para marcar essa edição comemorativa, deixa claro por que caiu no ostracismo. 

O longa, que retrata uma juventude sem rumos, até poderia ser elencado como um dos ícones da década, não fosse outro problema: a eclosão de cineastas magistrais como Herzog, Wenders e Fassbinder. Não tem como competir.

O filme se passa na virada dos anos 70 para os anos 80. Um constatado limbo histórico. O movimento hippie já não tinha mais o poder de mobilizar multidões de jovens egressos de Woodstock. E a era disco, junto com o punk e o new wave, ainda sibilavam notas embrionárias do que viriam a ser anos mais tarde. Não é à toa que o personagem mais representativo do filme não é a drogada adolescente, mas o camaleônico David Bowie, interpretando a si mesmo, durante um show que ocorreu de verdade em Berlim. 

Eu, Christiane F., situa-se perfeitamente nesse vácuo social. Traz à tona famílias desestruturadas e uma horda de jovens que trocaram a revolução estudantil por um tipo de experimentação mais efêmera e individual: a heroína. Moleques que, atordoados pelos efeitos alucinógenos, não sabem exatamente qual seu papel na sociedade: onde estão e para onde vão. Tanto é que boa parte é filmada dentro de estações de trem, em que aparecem vagões em trânsito, indo e vindo sem que o espectador saiba seu destino.

Do ponto de vista estético, o diretor Uli Edel mergulha fundo no universo das drogas. Algumas cenas de jovens se picando podem até ser chocantes para um público mais sensível e menos iniciado, mesmo nos dias atuais. É agulha, seringa e sangue pra tudo quanto é lado. Talvez essa provocação, que resulta numa possível sensação mais aflitiva, seja uma maneira de Edel mostrar seu viés ideológico contrário a esse modus vivendi. Mas isso é apenas uma hipótese.

Se por um lado o diretor se aprofunda na primeira metade do subtítulo, por outro deixa muito a desejar na segunda fatia. Quase não há cenas de prostituição. A parte em que Christiane F. masturba um cliente dentro do carro é filmada do lado de fora do para-brisa, a metros e metros de distância. A cena do casal de namorados se despindo é feita de modo apressado, sem nenhum tipo de nuance e com um apelo sexual muito mais sugerido do que explícito. Sugere-se que o filme foi feito pra incomodar mas, na realidade, traz significantes muito mais presbiterianos, dando a entender que, na alma, Eu, Christiane F. é um produto pudico e recatado. Ou essa solução serviu de artifício para encobrir a falta de intimidade do diretor em filmar a sexualidade dos personagens.

Não foram poucos os diretores que se debruçaram nessa temática lost boys, cada um à sua forma autoral. Em Kids, Larry Clark explora suas crias quase de modo ejaculatório, como se fosse um voyeur querendo ser o protagonista de todo aquele bacanal regado a psicotrópicos. Já Gus Van Sant praticamente abençoa e venera seus rebentos da era grunge em Paranoid Park, mostrando que o ser humano é bom e desencanado por natureza. Bruno Dumont faz exatamente o contrário. Em seu longa de estreia, A Vida de Jesus, planta a sementinha de um olhar menos generoso (e posteriormente mais caricato), trazendo analogias concretas para defender sua tese de que o indivíduo é, literalmente, fruto de uma deformidade social. Comparado a eles, Uli Edel concretiza um registro meramente morno e apático da juventude alemã. 

Eu, Christiane F., enquadra-se na tríade sexo, drogas e rock and roll das festas e dos rolês. Mas parece ser meio que um convidado deslocado dessa patuscada. Sobre as drogas, enfia a agulha mas não atinge a veia. Lança um olhar apenas epidérmico. Na questão do sexo, parece usar preservativo duplo, de tão asséptico e distante que se posiciona. Já o rock and roll parece surgir de modo mais orgânico. A cena dos jovens roubando uma loja ao som de Heroes é o momento mais genuíno e emblemático. Afinal, quem são os heróis dessa sociedade letárgica e moribunda?


quinta-feira, 16 de junho de 2022

Armadilha Explosiva

Quando se pensa em filmes franceses de ação, nos vêm à cabeça as megaproduções capitaneadas por Luc Besson. Armadilha Francesa é, de fato, produzido pela equipe do cineasta. Só que aqui não rolam cenários futuristas, assassinos de aluguel ou perseguições de carros. A relação do filme com automóvel é diferente.

Tudo se passa num estacionamento de prédio residencial. Fred tenta ligar seu carro de manhã e não consegue. Sai do veículo e quem se incumbe disso é sua companheira Sonia. Ao fazer isso, Sonia ativa uma bomba-relógio escondida no motor, que inicia a contagem regressiva de 30 minutos até o momento da explosão.

O cenário está todo ali. Um casal, dois filhos pequenos dentro do carro e uma equipe de colegas de profissão de Sonia, especialista em desarmar minas. Essa delimitação de espaço quase minimalista, entretanto, não tira o suspense. Pelo contrário. O diretor e roteirista Vanya Peirani-Vignes mostra-se habilidoso em criar tensão suficiente com poucos recursos e dimensões cênicas mais contidas. Aqui neste caso, menos é mais.


sábado, 11 de junho de 2022

Um Dia para Sempre

Está comprovado que o forte dos alemães não é a comédia. Eles até tentam, mas o resultado fica meio duro, calcado em fórmulas já feitas. 

Um Dia para Sempre conta a história de Zazie, que recebe um convite para o casamento de seu melhor amigo Philipp com sua arquirrival Franziska. Contrária à ideia, ela tenta salvar o amigo e sabotar o matrimônio. Por causa de um loop temporal, isso acontece repetidamente, todos os dias.

Essa modinha do universo paralelo, metaverso, conseguiu chegar ao cinema germânico. Não se restringe mais aos heróis da Marvel. Na prática, é como se Zazie estivesse enfrentando a mesma situação em infinitos mundos diferentes e simultâneos.

Mas o filme não se debruça nas teorias da Física Quântica. Ele mais parece um repeteco do clássico O Feitiço do Tempo. Até mesmo no close do relógio tocando na hora de acordar.

Lançado para aproveitar o Dia dos Namorados, o filme tem gosto de bombom Caribe. Não é exatamente ruim. Mas é sempre o último a sair da caixa.


sexta-feira, 3 de junho de 2022

Tempos pastelões

Domingo passado, um visitante do Museu do Louvre atirou uma torta no quadro da Monalisa. Não me atualizei sobre a notícia, mas me parece que não dá ainda pra saber ao certo as motivações do infrator: se foi um surto psicótico, uma vontade efêmera e midiática de ter sua fama por 15 minutos ou uma manifestação autêntica de protesto à arte exibida.

Arte não foi exatamente o que vimos na última Virada Cultural, aqui em São Paulo e longe de Paris. Tumultos, roubos, furtos, arrastões, brigas e apresentações interrompidas marcaram o fim de semana que supostamente deveria ser o palco de confraternizações. Isso não é exatamente uma novidade. A gente não consegue esquecer, nos primórdios do evento, a pancadaria ocorrida durante o show dos Racionais MCs, na Praça da Sé. Mas a indigesta Virada de 2022 teve ingredientes extras que não podem deixar de ser mencionados, o que contribuiu drasticamente para o fiasco. Em primeiro lugar, a pandemia. Criou-se um falso testemunho na cabeça da população de que a doença foi embora. Não é verdade. A disseminação do vírus, é fato, está controlada. Mas não consigo imaginar, por mais que eu torcesse para que isso finalmente voltasse a acontecer, um pingo de segurança num amontoado de cerca de 10 mil pessoas sem máscara. Segurança foi uma palavra bem em falta na patuscada que adentrou a madrugada paulistana. Os principais tabloides noticiaram que faltou policiamento para conter atos de vandalismo ou agressões físicas. Soma-se a isso o reflexo da dispersão dos dependentes de crack por todo o centro da cidade, após uma apressada, atabalhoada e violenta ação da Prefeitura de intervenção na Cracolândia. E, já que o assunto é Prefeito, não dá pra tecer muitos elogios a Ricardo Nunes. O alcaide em questão quase não está fazendo nada no sentido de oferecer melhorias pra metrópole. Vejo o sujeito como um Celso Pitta, versão 2.2. Mais um vice que assume o comando principal do cargo na história republicana brasileira. Prefeito-tampão. Se a atuação dele é pífia e irrelevante no âmbito do transporte público, habitação, escolas municipais, segurança pública, reforma e manutenção de vias e logradouros, que dirá então em áreas tão historicamente adjacentes quanto Artes e Cultura? Por mais controverso que fosse, o falecido Bruno Covas ao menos tinha livre trânsito e exercia franco diálogo com lideranças artísticas. Nunes, nesse sentido, é quase tão opaco quanto Regina Duarte, só que sem dar escândalos ou pitis. E não podemos deixar de falar, é evidente, da recessão econômica. Estamos passando por uma sucessão bélica. Ligação em série de uma guerra biológica, seguida por uma guerra nuclear. A consequência disso, obviamente, é o alastramento da miséria. Não dá para figurar, portanto, um cenário tranquilo na hora de se assistir ao show da Luísa Sonza.

Mas calma que tem mais. Estamos em ano eleitoral. A polarização não só não deixou de existir, como temos a sensação de que se acirrou ainda mais. Na família, no trabalho, nas redes sociais. Não seria diferente num evento artístico, né? Pelas atrações anunciadas, a Virada teve mais a cara dos hinos e das hashtags "Lula lá" e "Fora Bolsonaro". Mas temos também o outro lado. O discurso armamentista de quem ocupa o alto comando deve ter incentivado facções mais radicais, nem tão abertas a uma saudável troca de ideias após goles de cerveja e cachaça.

Sinceramente? Eu estava torcendo para que tivesse acontecido um episódio bem retrô, típico dos nossos tempos. Que os embates ideológicos e as manifestações de protesto à arte fossem mais leves e mais cômicas. Que as brigas fossem de mentirinha, com direito a sopapos e tortas na cara. Igual à maneira como o maluquinho do Louvre se defrontou diante de algo que não gostou. Queria que voltássemos aos tempos cinematográficos do Gordo e o Magro, dos Trapalhões, dos Três Patetas. Falta um pouco ao seio de nossa sociedade esse revival grotesco, jocoso, patético. Instantes de ódio repentino, mas que no final tudo acabava em chantili. Mais bolo e menos bala, por favor. Chega de pregações de ódio contaminando nosso sangue. Chega de censurar a mamadeira de piroca e liberar a venda de pistola. O resultado disso você já sabe. Com o preço do leite, do trigo, dos ovos, sai mais em conta interagir com a arte carregando um trezoitão.


quinta-feira, 2 de junho de 2022

Está Tudo Bem

 Não se deixe levar pelo estado de espírito que o título do filme sugere. Contém ironia. Aqui, estamos falando de um personagem de 85 anos, magistralmente interpretado por André Dussollier, que sofre um AVC e, durante sua internação após o acidente, pede pras filhas o ajudarem em seu suicídio.

Esse novo trabalho de François Ozon mergulha fundo nas relações humanas. Não se trata, portanto, de uma apologia ou levantamento de discussões e polêmicas sobre a eutanásia. Claro, algumas questões burocráticas são expostas, como a necessidade de se fazer uma viagem à Suíça para o descanso eterno premeditado. Mas o miolo diz muito mais sobre o convívio familiar e as indagações dialéticas do ser humano. Vida e morte são servidos no mesmo prato, assim como o amor e o ódio. Faz parte da nossa natureza.


segunda-feira, 2 de maio de 2022

Coronel Mostarda

Deixe de lado por enquanto a supremacia da pastelaria Yokoyama ou da lanchonete A Chapa, verdadeiros ícones pioneiros surgidos nas redondezas da Aclimação e Cambuci. Aqui, vou me dedicar a relatar minha experiência (palavrinha da moda, eu sei) em outro império da zona Sul paulistana: a papelaria Momotaro.

Hoje reduzida a uma portinhola de garagem, com uma abatida fachada de parede, essa loja marcou minha infância e adolescência. Principalmente a segunda fase, período em que passei a estudar num colégio estadual logo abaixo do venerado estabelecimento. 

Nos anos 80, a Momotaro era um dos meus preferidos parques de diversões. Na época ainda não existia a nababesca Ri Happy, mas a proposta e concepção de loja, guardadas as devidas proporções, eram parecidas. Tinha um pouco de tudo: material escolar, presentes, artigos importados, brinquedos... mais ou menos que nem as Lojas Mel, só que com uma diferença: nesta última você entra, se perde, avista de tudo mas não encontra nada. A Momotaro tinha um clima mais caseiro, familiar. Era grande e aconchegante ao mesmo tempo. 

Familiar não era só o tratamento dado aos fregueses. A loja pertencia a uma família mesmo. Tinha a matriarca, durona sem ser austera, que conhecia as prateleiras e corredores do introito ao cabo. A filha, simpática, que sabia embrulhar presentes como ninguém. Papel pra cá, fita pra lá, tudo se envolvia numa dança bonita de se ver. E com uma leveza e agilidade, como se estivéssemos assistindo a um espetáculo butô com o tema de origami. Se a memória não me falha, o pai ou o tio cuidava do caixa. E, é claro, fazia as contas de cabeça. Me parece que um irmão também ajudava na loja. Ah, tinha também o avô, um centenário ancião que vigiava o estacionamento. Sim, a Momotaro tinha estacionamento próprio nos seus áureos anos. Meus amigos do colégio abaixo onde estudei, típico de adolescente, jogavam pedras em direção ao telhado metálico do abrigo de carros, com o único objetivo de assustar o velhinho. 

A Momotaro me supria em tudo o que precisava pra me tornar um aluno melhor: régua, transferidor, borracha, cola plástica, compasso, caneta esferográfica, lápis de cor, normógrafo e quetais. Mas foi naquela loja, nos idos da década de 80, que comprei aquilo que faz uma criança passar para a fase adulta: o caderno universitário. Sair com um desses debaixo do braço é o que faz a diferença entre um menino e um homem. Estava mais do que na hora de aposentar os caderninhos de brochura, um de cada matéria escolar, caprichosamente encapados pela minha mãe com um plástico quadriculado. O livreto acadêmico tinha o imponente formato A4. E reunia, por meio de divisórias, espaço para se escrever sobre todas as matérias ensinadas. Num único compilado de papel. Caminhar pelas redondezas do colégio com um caderno desses era tão revolucionário e magistral quanto mascar chicletes, fumar escondido, usar gel no cabelo, tomar Coca-Cola sem ser no almoço de domingo ou andar de patins. Isso sem falar nas capas. Eu já não tinha mais idade pra fazer propaganda de graça exibindo o logotipo da Editora Melhoramentos. Era preciso ostentar uma imagem que tivesse mais a ver comigo. Um surfista pegando onda. Uma tatuagem bem acabada de um dragão. A língua dos Rolling Stones. Era na Momotaro que eu vivi a transição estética entre a Turma da Mônica e o Andy Warhol. E eu sofria por antecipação. A cada virada de ano eu ficava tentando imaginar qual seria a capa da vez desses opúsculos. Tratava-se de um fenômeno tão aguardado quanto tentar adivinhar qual vai ser a capa do novo disco do Foo Fighters. E foi nesses gigantescos e universais cadernos que eu aprendi a escrever e reescrever a história da minha vida. Entre vários rabiscos, rascunhos e garatujas, fui errando e acertando as equações do segundo grau. Foi nas linhas pautadas que copiei a fórmula das reações inorgânicas. Inspirado no Simbolismo, usei as linhas pautadas como chão para escrever minhas primeiras linhas poéticas. Arranquei a folha presa pelo espiral de alumínio na lateral do livreto e entreguei para o primeiro amor da minha vida. Não fui correspondido.

A Momotaro teve um papel fundamental no meu desenvolvimento escolar. Mas não foi só nos estudos que ela foi importante pra mim. Vivi tempos de inflação alta, em que os estabelecimentos remarcavam os preços de seus produtos duas vezes ao dia. Mas, antes disso, lembro que ainda era possível juntar dinheiro em casa, nos cofrinhos em formato de porco, sem ter de recorrer ao overnight. E foi juntando as mesadas que ganhava da minha avó, de cruzeiro em cruzeiro, que abracei esse montante de cédulas e adquiri, por esforço próprio, o objeto de desejo da minha família: o jogo Detetive. Ah, como era bonito abrir aquele tabuleiro decorado, que simulava a planta baixa de uma casa onde havia ocorrido um misterioso assassinato. Cada suspeito tinha o nome de uma cor que, por sinal, era a mesma do pião que conduzia os jogadores até o centro do espetáculo. Dona Violeta, quem diria... uma senhora tão frágil e simpática. Ou até mesmo o erudito Senhor Black. E o que dizer então das armas? Réplicas perfeitas em miniatura dos mais diversos objetos cortantes, pontiagudos ou atiradores. Faca, revólver, candelabro...

Hoje, dentro do meu ônibus em direção ao Terminal Amaral Gurgel, passo quase todo dia pela Momotaro e percebo que ali reside uma vaga lembrança do que essa dinastia dos papeis já foi. Não sei qual é mais estreito e decadente: a loja ou o boteco ao lado. Tempos difíceis. Passamos um biênio trancafiados por causa da pandemia, e o comércio fechado. Passado o susto, vem uma inflação galopante, em parte impulsionada por uma guerra no leste europeu. E, antes mesmo da Covid, ou da Guerra da Ucrânia, as pessoas já estavam deixando de consumir esses derivados da madeira. Tudo é pelo e-book, pelo site, pelo grupo de zap. Por mais tecnológica que seja, a família Momotaro não se rendeu à venda de chips de celular. Seriam só mais um em um milhão. Prefiro guardar na memória esse império do passado com a mesma clareza e vivacidade que guardo os versos de Augusto dos Anjos. Não sei mais quantos deles ainda estão vivos. Mas tenho plena convicção de que quem matou parte dessa antológica família não foi o vírus, nem a inflação, muito menos os modernos recursos digitais. Foi o Coronel Mostarda, com uma chave inglesa, na sala de estar.


Klondike - A Guerra na Ucrânia

Em 2014, no momento em que começa a Guerra em Donbas, o casal de ucranianos Irka e Tolik vive na região da fronteira entre seu país e a Rússia. Ela está grávida e eles fazem planos para o futuro. Nesta primeira cena, uma grande explosão ocorre no local e destrói a casa onde moram, dando o tom dramático para o resto do filme. Irka se recusa a abandonar sua casa, mesmo quando seu vilarejo é tomado pelas forças armadas. Tudo fica ainda mais complicado quando um avião civil é abatido e cai na região.

A Guerra da Ucrânia, assunto bastante atual, serve de fio condutor ao filme. Mas não é nela que a diretora Maryna Er Gorbach se debruça. Os destroços da cidade, acompanhados por ruidosos estampidos de bombas o tempo todo, fazem o papel de um metrônomo, um marcapasso para as relações pessoais que se degringolam em progressão geométrica. De um início supostamente feliz do casal vamos acompanhando um comportamento que beira o primitivo. Prova-se, aí, que a guerra tem o poder de destruir não só os bens materiais de uma sociedade.

É possível notar uma certa obsessão da realizadora para se alcançar esse retrato cru e primal do ser humano. O resultado, porém, ultrapassa um pouco as fronteiras, ficando no limite entre a economia dos signos e o exagero das interpretações. Um pouco menos de pólvora atingiria o alvo com a mesma precisão.


domingo, 24 de abril de 2022

Como Matar a Besta

Primeiro filme do projeto Sessão Vitrine de 2022. Nesta coprodução Brasil/Argentina, a jovem Emilia chega a uma cidade religiosa na fronteira entre esses dois países, em busca pelo seu irmão desaparecido. Ela se hospeda na casa de sua Tia Inés, próxima a floresta onde supostamente uma perigosa besta apareceu na semana anterior. Segundo a crença popular entre os moradores da região, a besta é o espírito de um homem mau que toma a forma de diferentes animais. 

Com um ritmo lento e sem dar explicações mais didáticas, o longa mergulha no universo mitológico e nas angústias pessoais. Existe um clima de mistério que nunca se resolve - o que talvez seja um mérito do filme. Os protagonistas ocupam um lugar de cena e somem com a mesma facilidade, como se eles mesmos fossem a reencarnação de sonhos curtos. 

A riqueza dramatúrgica desse ambiente bucólico e onírico, entretanto, pode ser um viés. Trata-se de um conjunto de imagens para trazer reflexões ou disfarçar as lacunas? Tudo é muito hermético e introspectivo demais, dando ao filme uma cara de mosaico, de coletânea subjetiva.


sexta-feira, 15 de abril de 2022

O Pacto

O veterano Bille August mais uma vez mergulha no universo das relações misteriosas. Aqui ele traz a literatura como pano de fundo para expor metalinguisticamente sua obra. Cada cena é como se fosse uma página, repleta de construções frasais. O núcleo da história é composto por Karen Blixen, no auge de sua fama e prestes a ganhar o Prêmio Nobel de literatura. Retornando à Dinamarca em ruínas depois de uma aventura na África, acometida pela sífilis e tendo perdido o amor de sua vida, ela se reinventou publicando vários best-sellers. Um dia, propõe um pacto a um poeta de 30 anos, prometendo a ele o estrelato literário e exigindo em troca sua obediência incondicional.

Preciso na construção de cenas e na evolução dos personagens, o filme entretanto carece um pouco de abusos dramáticos. Percebe-se um notável rigor formal, mas o resultado é meio morno diante dessa mise-en-scène mais cartesiana. 


quarta-feira, 9 de março de 2022

Fabian - O Mundo Está Acabando

Jakob Fabian trabalha no departamento de publicidade de uma fábrica de cigarros de Berlim durante o dia e vagueia por bares, bordéis e estúdios de arte com seu amigo rico Labude à noite. Quando Fabian conhece Cornelia, apaixona-se por ela e deixa de lado sua atitude pessimista. Mas logo depois é demitido, enquanto Cornelia faz carreira como atriz graças ao seu chefe e admirador.

Dirigido por Dominik Graf, o filme perambula por diversos estilos e estéticas. Começa com uma trilha de rock pesado, mesmo se passando em 1931. Traz referências ao cinema mudo e ao film noir, com locução em off reiterando as imagens mostradas. É como se a história do personagem acompanhasse, em paralelo, a história do próprio cinema.

Mas essa riqueza em variedades formais não deixa muito clara a intenção do autor. O filme mais parece uma colcha de retalhos e traz uma sensação de obra confusa, que vagueia pelas escolas cinematográficas assim como o protagonista vagueia por sua cidade decadente procurando dar um sentido à vida. 


quinta-feira, 3 de março de 2022

No Ritmo da Vida

Falta um pouco de ritmo a esse longa-metragem de estreia do diretor Phil Connell. Como obra debutante, é natural se esperar uma ou outra pisadela.

Começa com o protagonista Russell levando um pé na bunda de seu namorado. Para dar um novo rumo à sua vida, deixa a cidade e vai para o campo morar com sua avó doente Margaret, que resiste à ideia de parar num lar de idosos. Lá, Russell inicia um novo projeto como drag queen em uma boate local. 

Embora com um argumento simples, o filme cria diversas oportunidades para explorar os dramas do personagem e suas relações conflituosas. Mas tudo fica nas boas intenções. De um modo geral, as atuações são muito duras, posadas. Connell não encontrou o timing para fazer os cortes certos e deixar as falas mais orgânicas. 

Apesar do retrato morno e insosso, No Ritmo da Vida encontra, talvez sem querer, uma potência além dos diálogos. A escolha do repertório musical supera as fraquezas do roteiro. A textura neogótica, os graves dançantes do clima soturno de uma balada, a excelência dos decibéis colocam cada música no pedestal do protagonismo. É a trilha sonora que faz o filme vibrar um pouco mais.


domingo, 27 de fevereiro de 2022

Adeus, Idiotas

 Se você leu em algum lugar que Adeus, Idiotas se trata de uma comédia, aqui valem algumas ressalvas. A frase que dá nome ao título foi extraída de um trecho do vídeo que registra a declaração de suicídio de um dos protagonistas, num momento em que ele desconta sua raiva e tristeza com o mundo e com a sociedade. 

Claro, existem várias situações tragicômicas. Cabeçada na parede, sobrenome pronunciado incorretamente, prateleira despencando. Algo trazido das comédias de erros e dos vaudeville teatrais. Mas o longa de Albert Dupontel vai além. Debruça com mais intensidade nas improváveis relações humanas criadas a partir de situações ao mesmo tempo tristes e insólitas. Tudo gira em torno de uma cabeleireira que descobre ter adquirido uma doença autoimune. Com poucos meses de vida, decide ir atrás de seu filho que não vê desde que engravidou, aos 15 anos, e o deixou para adoção. Encontra por acaso numa repartição pública um técnico em sistemas de segurança, dispensado pelo seu chefe de liderar o projeto, perseguido pela polícia por acharem que se trata de um terrorista. Junta-se a eles um cego encarregado de cuidar dos arquivos do governo.

É nessa jornada coletiva de buscas particulares que Adeus, Idiotas encontra espaço para diluir suas amargas ironias. O simples acaso cede lugar a um registro contundente da superlativização de fracassos individuais. O filme coloca uma lente de aumento no cidadão comum, invisível, e extrai dele a potência da transformação. 


Passagem Secreta

Difícil imaginar como Passagem Secreta possa ter sido bem recebido no último Festival de Tiradentes. Talvez tenha sido apenas uma enganosa estratégia de marketing para sua divulgação. O evento costuma abraçar trabalhos mais autorais, com amplo espaço para experimentalismos e exercícios estéticos fora do convencional. Não é o caso deste longa dirigido por Rodrigo Grota, que percorre um caminho bem didático em sua narrativa. Uma escolha perigosa, justamente por tentar alcançar terrenos mais seguros.

A história fala de Alice, que precisou se mudar para uma cidade pequena e, ao chegar, começa a morar com o tio. Lá, acaba fazendo um novo grupo de amigos e encontra um portal mágico em um parque de diversões. Ao invadir o parque em uma brincadeira para salvar um colega, Alice descobre segredos sobre sua identidade.

Embora tenha como inspiração o universo imaginativo, Passagem Secreta carece de soluções criativas. Tudo é muito duro, esquemático, gerando pouca graça e interesse. Fica muito clara a dificuldade em dirigir o elenco mirim, que olha para a câmera com suas frases decoradas como se estivesse num teste de comercial para a TV. Derivações de Crônicas de Nárnia e Castelo Rá Rim Bum podem até ser bem-vindas, mas é preciso tomar um certo cuidado. Passagem Secreta prova que existe um grande abismo entre o roteiro bem intencionado e a realização de uma obra. Aqui, a sensação que fica é de uma cópia genérica de D.P.A.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Calem a boca

 São Paulo, 9 de fevereiro de 2022.

Repetindo: maior metrópole da América Latina, dia 9 do segundo mês do 21º ano do terceiro milênio. Brasil.

Entra para os trending topics um podcaster, do qual nunca ouvi falar, que, em seu programa de entrevistas, comenta sobre a necessidade de existência de um partido nazista no país. Pouco depois, se retratou. Pediu desculpas, alegando estar bêbado. Mas o estrago já estava feito.

O influencer em questão parecia se justificar rebatendo que, na forma, o programete não tinha grandes pretensões políticas ou acadêmicas. Aquele episódio foi, de acordo com suas palavras, fruto de uns idiotas falando bobagem. Como se fosse uma conversa de bar. Com esse clima "solto", de descontração. E você já sabe: em papo de bar, bebe-se. Pra caralho. Para o alvo deste assunto, o tom ébrio do colóquio informal poderia servir de salvo-conduto para o vale-tudo. Neste botequim familiar pode se falar o que quiser. Só que tem uma diferença: ao contrário do minúsculo reduto pé-pra-fora de azulejos brancos na parede, o podcast concentra milhares de ouvintes. E anunciantes que pagam caro para que suas marcas sejam ali expostas.

Talvez para Bruno Aiub, pivô dessa unânime discórdia, o Brasil esteja mesmo politicamente mal representado. É preciso que a legislação em vigor reconheça a legitimidade de um partido nazista. Não que ele seja. pelo amor dos meus filhinhos. Não que ele saia por aí matando judeus, roubando seus ouros e colocando as vítimas dentro de uma câmera de gás. De jeito nenhum. Ele apenas quis demonstrar que essa terra de ninguém precisa urgentemente dar vazão a vozes oriundas do inferno. Só assim teremos, de fato, uma nação plural. Um país composto por partidos e coligações políticas que representem, por exemplo, em absoluta legalidade, as castas milicianas. Ou os membros da Ku Klux Klan. A volta dos integralistas. Talvez, quem sabe, os líderes das seitas que promoveram mundo afora o suicídio coletivo. Sim, o Congresso Nacional carece de uma diversidade religiosa diante de sua maioria terrivelmente evangélica. É preciso trazer esses gurus do além para romper a hegemonia pouco salutar à democracia. Que o STF dê a eles o direito de pleitear um cargo aos poderes Legislativo e Executivo. Cabe à sociedade decidir, por livre arbítrio, se essas pústulas ambulantes são dignas e merecedoras de ocupar uma cadeira na Casa do Povo.

Por falar em guru, não me espanta nem um pouco o fato de que o Brasil desses desajustados medievais tenha decretado luto oficial em homenagem ao "pensador" que acreditava na Terra plana e na apologia ao comunismo nas letras das músicas dos Beatles. Faz todo sentido. Só mesmo essas ideias conspiratórias para regar a mentalidade de quem acredita que o genocídio parlamentar seja algo possível.

Volto a repetir, quantas vezes forem necessárias. Não se trata de opinião. De ponto de vista. De troca de ideias por meio de confronto. Não encaro como "tudo bem" um cidadão favorável ao fechamento do Congresso, embora ele mesmo não vá lá pessoalmente e atire bombas e fogos de artifício à instituição. Não aceito negacionistas se recusarem a tomar vacina, vestir máscara ou apresentar passaporte vacinal em prol de um suposto "direito de ir e vir". Não vejo como "normal" o indivíduo que corrobora com a proliferação de grupos de extermínio e de intolerância racial, mesmo que eles próprios não façam parte dessas seitas. Eles não são iguais a mim, apenas navegando em sentidos opostos. São inferiores, bastante inferiores.

Triste do país que se calou para as mais de 600 mil mortes. Que trouxe de volta o conservadorismo e o retrocesso em praticamente todas as suas áreas e competências. Que acabou de aprovar uma redução drástica no teto de patrocínio da Lei Rouanet. Um país que, entretanto, deu voz a esses energúmenos que pipocam por aí nas suas bolhas sociais. Não é à toa que o digital influencer carregue o apelido de um regime de governo pra lá de obsoleto. Ele, assim como os demais ratos de esgoto que emergiram nesse lodaçal de ideias estapafúrdias, merecem somente cair no esquecimento. A gente não precisa desse Absolutismo ideológico.