terça-feira, 21 de dezembro de 2010

À prova de Godard

Detesto projeção digital. Nunca escondi isso. Quem me conhece melhor já sabe o quanto eu reclamo sobre essa aberração. A última Mostra de Cinema, por exemplo entre outros exemplos, foi a prova concreta do quanto esse tipo criminoso de exibição compromete o produto artístico final. Mas eu e meia dúzia de gatos pingados somos voto vencido. Os heróis da resistência simplesmente abandonaram a luta. A resposta da assessoria de imprensa do festival sobre o assunto (por acaso, publicada no Guia da Folha), dentre inúmeras justificativas indefensáveis no decorrer dos tempos “modernos”, funciona como um atestado de óbito. Algo como “é o que temos”. Sabe quando você entra no boteco, pede uma esfiha e uma Coca-Cola, e o atendente mal-humorado avisa que só tem Pepsi e coxinha amanhecida? Pois é. Então você entendeu. Não sou contra avanços tecnológicos ou tendências de formato, pelo contrário. Também não sou a favor. Se o digital veio para democratizar o meio, reduzir custos e trazer o poder de ampliar a arte a um maior público, perfeito. Mas o que me incomoda muito é o jeitinho brasileiro de fazer tudo de qualquer jeito. Do jeito que dá. Do jeito que interessa somente a quem produz, comercializa e detém o monopólio de mercado (pensou em Auwe Digital, ex Rain Network? Acertou!). O cinema dito “de arte” (melhor seria dizer “de pouca bilheteria”) perdeu feio essa batalha. Resta aos felinos aspergidos o deleite de contemplar essa morte lenta e agonizante.
Enfim... sobre essa questão, faço uma reflexão retrospectiva que me chamou a atenção, particularmente em dois casos. Duas boas e duas más notícias, ou quem sabe dois problemas sérios inevitáveis e dois atenuantes. Nem vou entrar no mérito da qualidade de projeção, da fidelidade de cores e de tamanhos, definição e nitidez de imagem, ajuste de contrastes, nada disso. O buraco é mais embaixo. Depois de um tempão de promessas não cumpridas, de um atraso homérico, de vencimento de contratos e burrices estratégicas da distribuidora, eis que o tarantinesco À Prova de Morte é lançado em circuito neste ano. Aleluia. Todavia, a película limitou-se a apenas uma sala. Isso não poderia ter acontecido. O filme não só faz uma homenagem ao cinema de rua e reverência aos gêneros considerados trash de décadas passadas, mas também se vale da forma para fazer este retrato. Exibir em digital as trocas malfeitas de rolo, a bolinha no canto do quadro, as distorções cromáticas que nos fazem embarcar numa viagem ao tempo, os hiatos e delays na sonorização, tudo isso não faz sentido algum no formato citado. É o mesmo que limpar os chiados do vinil, justamente nas músicas que precisam deles para expressar sua arte. À Prova de Morte não foi concebido para ser equalizado ou remasterizado. Fazer por conta própria esse tipo de remixagem é, literalmente, uma prova de morte despejada em Tarantino.

Outro caso que merece particular atenção é o recente lançamento de Filme Socialismo, em homenagem aos 80 anos de Godard. Na melhor interpretação de “não se pode ter tudo”, esse trabalho foi lançado em duas versões: uma em película, porém com uma legendagem especial, a pedido do próprio diretor, que traduz apenas fragmentos do texto original. Para quem não entende lhufas de Francês, essa tradução torna o filme ainda mais incompreensível do que realmente é. A outra versão contempla a legendagem integral, porém, foi lançada em digital. Como muitos sabem, Godard faz a desconstrução do cinema usando o próprio cinema. Suas imagens (independentemente da beleza embutida ou não) não servem apenas para ilustrar o roteiro, mas são o artifício principal para essa conhecida iconoclastia. Godard faz o cinema da reflexão, e a metalinguagem é um dos mecanismos para defender (ou quebrar, ou até mesmo reinventar) suas ideias e proposições. Transformar a imagem originalmente pensada, neste caso, não significa apenas esmaecer seu vigor estético e deturpar sua concepção final. É muito mais que isso. É validar uma incoerência sobre a qual o filme não trabalha. Podemos até não gostar do filme, ou questionar a validade de sua desordem narrativa. Mas pensar em Filme Socialismo no formato digital é levantar a bola de uma ruptura que não existe. Isso é mais do que um descaso. A meu ver, está mais para o deboche.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Hora extra

Tem gente que anda dirigindo na contramão. Inclusive em Propaganda. O último comercial do Honda City é bonitinho, tem um ritmo legal, mas, do ponto de vista social, traz uma mensagem repugnante. A começar pelo tiro no próprio pé: prova-se que o carro é caro pra caramba. Quem quiser ter um vai precisar fazer muitas horas extras. Até aí, nenhuma mentira. O sucesso tem um preço, e este aqui ultrapassa os R$ 50 mil. Mas o pior de tudo é ver que, enquanto se discute uma maneira mais saudável e prazerosa de se encarar a labuta diária, enquanto algumas nações estudam afrouxar a carga horária trabalhista, enquanto as empresas ditas de vanguarda procuram oferecer mecanismos para trazer maior qualidade de vida à sua equipe, o Honda City toca no ponto que os trabalhadores engravatados menos toleram: viver pra trabalhar, e não o contrário. Alguns setores (e muito provavelmente a agência que criou este filme) estipulam como regra a exploração com cara de produtividade. Nelas, sair no horário, deixar “cair o lápis”, como se diz popularmente, enquanto a dia ainda está claro neste horário de verão, é visto como sinal de preguiça, de acomodação, de estopim para uma rebelião sindicalista exigindo direitos rasurados na Carteira de Trabalho. Alguns empreendedores míopes creem que a pessoa que tranca as portas da empresa e apaga as luzes antes de sair é o exemplo de dedicação a ser seguido. Mas, podem acreditar, existe vida inteligente além dos biombos e dos tapumes que acobertam os laptops. Ainda mais nos dias de hoje, em que as referência para a inspiração no trabalho podem surgir no convívio com outros elementos mais divertidos do que uma planilha de Excel ou uma apresentação de Power Point. Torço muito para que os bipolares do ofício executivo comprem um Honda City antes de todo mundo. Mas o que me incomoda é o cinismo do comercial. Concordo que a Publicidade tem o dever de experimentar o novo, dizer coisas que ainda não foram ditas, e para isso valem ideias abomináveis como o riponga que se apaixona por uma ovelha, uma família que se comunica por telepatia, só para ficar em alguns exemplos do segmento. Mas este filme, especificamente, não traz avanço algum. Apenas reitera um modo de produção que até mesmo os donos de Vemaguete pensam em aposentar.

domingo, 24 de outubro de 2010

A culpa é da Nicole

Se você alimenta uma certa admiração ou interesse pelos primeiros filmes de Todd Solondz, Neil Labute, Greg Araki, Darren Aronofsky, Alexander Payne, Paul Thomas Anderson e toda a turminha do fundão do cinema norte-americano, certamente irá apreciar esse Sentimento de Culpa e toda a mesquinhez humana que ele incita. A cena inicial, closes de seios de idosas sendo submetidas a mamografias, com um fundo musical alegrinho que faz uma alegoria ao sul dos Estados Unidos, já denuncia boa parte das intenções da diretora Nicole Holofcener. Não existe, nem com muito boa vontade, um parecer que possa justificar a gratuidade desse registro, pois o que está em questão no filme não é o envelhecimento ou algum tema congênere, e a personagem que acompanha esses exames tem um papel secundário. Esse fetichismo sádico permeia o restante do roteiro e traz muitas semelhanças com a ironia física e leviana evocada pelos ícones da desgraça alheia citados no introito. É certo que a potência estadunidense hoje nada mais é do que um acúmulo de carboidratos e de desajustes sociais e familiares, e discutir a crise dessas relações pós-Obama seria algo bem-vindo. Mas o olhar cínico e superficial de Nicole, maquiado de cinema provocativo, não dá margem a essa leitura. Temos uma adolescente com complexo de peso e de espinhas, um casal acomodado com a rotina, um pai ausente, uma relação extraconjugal envolvendo uma alcoólatra frustrada, uma relação de ódio e de submissão envolvendo uma avó esclerosada, e por aí vai. Ninguém se salva. Apple city está contaminada por maçãs podres. Você acha que estou exagerando? Então tente encontrar uma justificativa plausível para a cena de uma equipe de jovens com Síndrome de Down treinando basquete. Sentimento de Culpa é a condensação frívola dos novos seriados da Warner, que tratam o ser humano como um aperitivo descartável para o talk show do horário nobre da televisão. E se você imagina que o título sugere uma redenção autopiedosa dos personagens, pode incorrer em erro. A única protagonista que se sente culpada pelo status quo da miséria social instaurada é Kate (Catherine Keener, a musa-coringa do cinema independente), que dá generosas esmolas a mendigos porque não consegue conviver harmoniosamente com a parasitose de sua profissão, que é a de comprar móveis e cacarecos das casas das pessoas que acabaram de morrer para revender como objetos de arte. Nesse contexto, tem-se a impressão de que a culpa é mais da Nicole do que de Kate (vocês se lembram da cena final de As Confissões de Schmidt?). No filme, os personagens estão acomodados no conforto de seus conflitos. Não há espaço para suas angústias. Estender a mão ao economicamente excluído, além de mostrar um falso altruísmo que o filme não questiona, talvez seja uma maneira terapêutica da diretora transferir seus remorsos à personagem. Está claro que o cinema low profile de hoje não precisa de donativos. Não é a esmola que vai curar a maneira sórdida e astigmática de Nicole enxergar seu mundo e as fraquezas de suas pessoas.

1 lentilha

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Cala a boca

No meio da mais esquisita Copa do Mundo das últimas décadas, um grito soou mais forte do que qualquer vuvuzela distante dos solos africanos: “Cala a boca, Galvão”. Era mais do que um coro ululante. Era a voz de protesto e de indignação de mais de 150 milhões de pessoas (o novo Censo nos trará um algarismo mais exato) diante da mediocridade dos comentários do jornalista citado. Galvão Bueno e Dunga se merecem. São o fruto colhido de uma autarquia monástica e imperialista do futebol brasileiro, sem a arte e o tempero que caracterizam a beleza de nossa cultura e nossa ginga plural. A Era Dunga, graças ao bom Deus, acabou. Junto com ela, vão-se embora os Zagalos e os Parreiras que preconizaram o ludopédio pragmático, aquele ditame de passes feitos em nome do tão questionado futebol de resultados. Felizmente, esse fast-food insosso da bola não vai mais estar com a gente em 2014. Dunga e os zangados partiram, mas o mala-sem-alça da Rede Globo, campeão das bobagens e dos salários, continua rígido em seu altar.

Mais uma vez, as redes sociais não foram apenas a mídia, mas também o palco dessa passeata virtual. Já que o brasileiro anda tão abúlico quanto à política palhaça que invade nossos lares, pelo menos quando o assunto é paixão nacional alguma coisa se mobiliza neste país. E já que essas redes se beneficiam do marketing viral, do buzz ou de qualquer nomenclatura que defina esse contágio instantâneo, pode-se dizer que o grito de guerra antigalvanizador funcionou muito bem. Tanto é que, tempos depois, uma nova onda inflou os internautas em prol do silêncio de Tadeu Schmidt.

Até aí tudo muito legal. De fato, a alegria dos inflados 140 caracteres é bem mais interessante do que as análises científicas dos filósofos da futebologia. Mas essa irreverência toda, essa descontração típica de um país sacolejante se não é hipócrita, quem sabe esconde algo pior. Hoje um dos tranding topics (pra quem não está acostumado a esse jargão, significa um dos assuntos mais comentados) do Twitter é “Cala a boca, Sabrina”, uma alusão à desastrosa entrevista que a apresentadora do Pânico teve com o teen idol Justin Bieber. Arranhando um Inglês mais torto e truncado que o do Joel Santana, a caipira nipônica não sabia de onde vinha e pra onde ia. E o galã imberbe deixou muito clara a sua impaciência com aquele improviso com cara de pegadinha.

É claro que reagir e manifestar sua opinião é um direito de qualquer cidadão. Mas é bom lembrar que a sociedade brasileira em tempos de individualismo online não se caracteriza por sua atividade contestatória, muito pelo contrário. Mandar alguém calar a boca, mesmo que num tom jocoso e imediato que é a marca registrada do Twitter, reflete um comportamento autoritário que resgata, ainda que em fogo brando, os regimes de governo mais conservadores que já tivemos. Se a massa formadora de opinião se mostra tão indiferente sobre assuntos de máxima importância que poderão nortear os rumos do país, não acho que ela tem o direito de cercear ou travar essas aparições públicas da TV, por mais tacanhos e ingênuos que sejam seus pontos de vista. Ter o Galvão, a Sabrina, o Tiririca e a Pera calados faz bem aos nossos ouvidos, mas faz um mal danado e irrecuperável à democracia. Está certo que vivemos numa sociedade darwinista que só cede lugar aos bem-humorados, aos “espertos”, aos carismáticos que abrigam milhares de seguidores nas redes. É nosso direito de escolha aplaudir o Rafinha Bastos, a Bárbara Gancia, o Léo Jaime, a Rita Lee e tantos outros queridinhos da web. Mas não se esqueçam, retaliadores de plantão, que a melhor arma para combater a ignorância desses emergentes é mudar de canal, dar um unfollow, deletar de suas vidas. Querer angariar público para amordaçar essas pessoas é dar ainda mais força à censura que está louca procurando brechas pra voltar. E vocês entraram no Twitter justamente por causa da “liberdade de expressão” que a ferramenta estimula, correto?

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Permanecer correndo

Quem me conhece sabe que eu tô sempre correndo. É normal. Meu passo é naturalmente acelerado e, não sei por que cargas d’água, tô sempre atrasado pra alguma coisa. Não foi diferente da última vez em que pisei no shopping Center 3, na esquina da Paulista com a Augusta. Como não poderia deixar de ser, a grade de programação dos filmes das salas do Bristol foi planejada com horários ingratos e, como é de praxe, eu quis correr atrás do prejuízo imaginando as costumeiras filas que se formam diante da lerdeza das bilheterias. Acelerando um pouco mais o passo, eu conseguiria, talvez, nessa angústia metropolitana no pique de Fórmula 1, ultrapassar uns dois ou três possíveis interessados em ver algum filme. E, como rege a Lei de Murphy, certamente se trataria de pessoas que perguntariam os filmes, o gênero, a duração, não teriam dinheiro trocado ou tentariam passar seus cartões de crédito/débito no sistema congestionado ou inoperante. Sei que a culpa é 100% minha. Eu é que não consegui me livrar dos afazeres em tempo hábil e fui obrigado a fazer essa compensação de minutos na boca do caixa. Quis dar uma de esperto, na tentativa de perder o menor número possível de frações de tempo de um filme previamente começado. Foi durante essa maratona relativamente taquicárdica que ouvi de um daqueles seguranças vestidos de urubu me dirigir a palavra. Aquele tipo de profissional que não faz nada a não ser te proibir de fazer qualquer coisa, sabe? Em tom parcialmente austero, ele me chamou a atenção, dizendo que era proibido correr. Nem dei bola. Fui até o fim da fila, que dobrava a bilheteria e quase encostava o quiosque de alguma marca qualquer de celular. Percebendo a abordagem mal-feita, ele se retratou e voltou a mim dizendo, de uma maneira mais polida e condizente com sua função, mais ou menos isto: “O senhor me desculpe pelo modo como falei com o senhor, mas é proibido permanecer correndo aqui nas dependências do local. Muito obrigado”. Ponto para o segurança. De fato, eu não dei motivo algum para ser tratado como um meliante. E o arrependimento, a retratação, são atitudes louváveis e bem-vindas na nossa cultura cristã. OK, tudo bem, a mudança de comportamento, a abordagem mais branda, o modo educado de falar, tudo isso conta pontos a favor do distinto. Nem vou entrar no mérito linguístico em relação ao erro semântico da frase. Mas me incomoda muito essa confusão de valores que se faz em todas as esferas sociais. Por um lado, temos o faroeste da terra-de-ninguém das metrópoles, a selvageria bandida que nos amedronta. Isso questão de uns 20 passos do ponto onde ele me repreendeu. Mas o descaso policial do lado de fora em nada justifica essas proibições gratuitas em ambientes mais fechados, ou que, pelo menos, procuram causar impacto com uma suposta e falsa imagem de organização. Isso pra mim não é o exercício da cidadania, muito pelo contrário. Seria precipitado de minha parte afirmar que se trata de um ranço da ditadura, mas a atitude do indivíduo de fazer questão de mostrar quem manda em nada condiz com os riscos do ato acelerado em si. É bem provável que o tal funcionário não tem a mínima noção do que faz, e foi treinado por empresas e equipes que não deram a ele o mínimo preparo nesse sentido. Eu não ofereci riscos à segurança de ninguém. Não me foi apresentado nenhum estatuto interno do shopping de rua determinando o que se pode e o que não se pode fazer. Provavelmente essa “lei interna” nem existe. Certamente o guarda me chamou a atenção pelo simples fato de eu fugir dos padrões da maioria circulante. Pessoas como ele, que precisam muito do dinheiro pouco, aceitam empregos, cargos e determinações sem ao menos questionar esses tais valores sociais. Vestidos de farda, sentem-se tão autoridades quanto os milicos do nosso país. E, na cabecinha deles, inventar normas e procedimentos e abusar do poder nada mais é do que valorizar o seu trabalho. Se o Brasil está, do ponto de vista ético, de cabeça pra baixo, não é esse ato arbitrário do nosso soldado raso em questão que vai desentortar as coisas. Muito pelo contrário. São atitudes pequenas como essa que me fazem ter a plena convicção de que vivemos numa nação ridícula.