quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Pagode

 - Senha número 384. Três oito quatro!

- Boa tarde. A gente queria registrar nosso filho.

- Pois não. Trouxeram todos os documentos?

- Sim, claro! Tá aqui: RG, CPF, certidão de casamento...

- E qual vai ser o nome dele?

- Pagode Nascimento dos Santos.

- Ah, senhor... aí não vai dar. Não posso registrar esse nome.

- Como não? Nascimento por parte de mãe, Santos por parte de pai. Como assim, não pode?

- Estou me referindo ao primeiro nome. Pagode. É lei. Artigo 2678, parágrafo 36, inciso quarto: fica terminantemente proibido registrar, para pessoas nascidas em território nacional, do sexo masculino ou feminino, nomes e/ou substantivos próprios alusivos, direta ou indiretamente, a palavras e/ou verbetes que façam qualquer tipo de correlação formal e informal a símbolos pátrios da arte e da cultura de nosso país.

- Mas... isso é um absurdo! A gente não tem o Rock? Aquele famoso assistente de palco daquele famoso apresentador de TV? Tem também o Rock lutador de boxe, mas esse é gringo. Não importa, a gente adotou como se fosse nosso. Ah, e tem também a Valsa.

- Valsa?

- Valsirene, na verdade. Lá do bairro. Mas a vizinhança toda chama ela de Valsa.

- Meus senhores... pensem no sofrimento dessa criança quando for maior de idade. O bullying que ela vai sofrer na escola. Na hora da chamada. Quando for servir o Exército...

- Olha, por mim esse país estaria todo dominado por Pagode, Axé, Rock, Punk, Funk, Reggae, Jazz, Xaxado, Rumba, Bolero, Tango, Merengue, Rap, mil Macarenas de mãe solteira... e viva a diversidade! Só não curto muito o Blues. Dá uma tristeza...

- Vocês não estão entendendo. Artigo 4266, parágrafo único: é terminantemente proibido registrar substantivos próprios que, porventura, possam eventualmente acarretar algum dano ou mal à criança recém-nascida, de ordem moral ou social, em seu futuro próximo ou distante, que tragam como consequência direta ou indireta qualquer tipo de trauma ou abalo psicológico em decorrência do significado e definição vocabular de tal verbete.

- Dane-se o verbete!

- Calma, minha senhora. Sabe aquele último dia do mês, quando os funcionários de uma empresa não veem a hora de receber o pagamento? Como é informalmente conhecida essa data?

- Dia de pagode!

- Tá vendo? Vocês gostariam que o nome de seu filho fosse atrelado a uma prática mercantilista exploratória, que pouco valoriza a classe trabalhadora? Vocês gostariam que seu filho fosse lembrado uma única vez por mês?

- É, faz sentido... mas e a nossa liberdade de escolha?

- Senhores... pagode lembra feijoada. Já imaginou o filho de vocês ser obcecado por esse monte de comida, feijão que não acaba mais, carne de porco... pensem na obesidade dele!

- Tem razão. Mas a gente ainda quer que nosso filho seja registrado com um traço de brasilidade.

- Mas, pagode? Senhores... pagode é aquele som alto, que não acaba nunca, incomoda os vizinhos. Já pensou um dia o filho da senhora deixar cair a pipa no quintal da vizinha, ir lá tocar a campainha, e ela sai enfurecida, com toalha amarrada na cabeça porque acabou de sair do banho, olha pro rapaz e diz: quem é que veio atrapalhar a essa hora o que eu tô fazendo? Ah, tinha que ser o Pagode!

- É que...

- Pensem na educação do seu filho. Ele certamente vai frequentar uma escola de alto nível. Garotos e garotas estudando pra balé clássico, música erudita. Aí vem a professora fazer a chamada: João Pedro, Anthony, Clarice, Victoria e... Pagode!

- Tá bom, tá bom. Você nos convenceu. Então qual seria a sua sugestão?

- Bom... se eu fosse vocês, iria de Charleston.


Metáfora

- Doutor, é grave?
- Calma, fica tranquilo. Tomando todos os cuidados necessários e os medicamentos que eu recomendar, isso aí logo, logo vai passar.
- Mas... o que eu tenho, doutor?
- Você foi acometido por um quadro de metáfora aguda. 
- Ai, meu Deus... e agora... é como se... os ponteiros do relógio da minha vida estivessem se movimentando mais rápido... é como se o badalo final estivesse mais próximo!
- Não se preocupe. O que você anda sentindo?
- Sei lá, doutor. Meu coração pulsa com a força de um touro e a velocidade de um cavalo. Meu peito dilacerado inspira e expira os ventos gelados da desilusão. O sangue que jorra em minhas veias se transformou num fluido espesso de lubrificante de segunda categoria. Minhas pernas cansadas parecem levitar sobre a aridez cáustica do nosso solo de esperança.
- Mas e a cabeça, como está?
- O que dizer desse globo espelhado de uma discoteca decadente? Essa bola de cristal rotunda e cintilante já não consegue mais prever o futuro. Só se alimenta do ódio e do desgosto do passado. Frequentemente ela é acometida por flechadas certeiras de um guerreiro medieval em plena batalha.
- Estou me referindo ao psicológico. Como estão suas emoções?
- Ai, doutor... é como se as páginas viradas da minha história estivessem voando para os céus e se esvaindo nas estrelas. Difícil conviver com essa bagunça de quarto de criança. Já não consigo mais controlar as intempéries e as tempestades que nascem sem avisar. Momentos de calmaria, raros como uma joia antiga, têm a duração de um contido aplauso de espetáculo, de tão efêmeros e fugazes. O que reina em minha ignóbil existência é a tormenta dos pássaros, a fúria do cárcere, a ira dos deuses.
- OK, anotado... agora me conte um pouco mais das suas relações. Tá tudo bem com sua família? Fale um pouco do seu relacionamento com sua esposa nos últimos dias.
- Doutor, doutor... o que dizer daquela víbora endiabrada? Todo dia, desde que acordo, ela me despreza tal e qual um cachorro faz com um pé de alface. Ignora tudo o que falo, assim como um advogado de acusação diante das declarações de inocência do réu. O negócio dela é me agredir com os açoites dos seus palavrões. Ela me provoca num tom de voz à altura de uma sirene de fábrica. E na hora de dormir? Eu, procurando o aconchego do ninho, com minha volúpia noturna de um gavião, me aproximo de sua pele macia como algodão, para dar o bote de uma serpente. Enquanto ela, na frigidez de sua nevasca, vira de lado, recusa a oferenda libertina, coisa que nem um mendigo faz diante de uma mísera esmola, e põe-se a dormir. Um sono rápido de coelho escapando da armadilha, porém, acompanhado do ronco de uma orquestra sinfônica dos ursos.
- E seus filhos? Me conta um pouco mais.
- Tenho uma filha, doutor. Uma única filha, o número 1 cravado no centro da moeda de real. Ela é tudo pra mim, do zero ao infinito. O problema é que no fim do ano passado foi morar no exterior. A cria decidiu abandonar o conforto do lar que seus algozes proporcionaram durante dezenas de giros da Terra em torno do Sol. Foi estudar Música. Foi aprender com os maestros da vida as duras partituras de crescer e se tornar mulher. De vez em quando a gente se fala. De vez em quando eu vejo de perto seu rosto tão longe quanto a colina de um reino das fadas.
- Perfeito. Só pra concluir: como está seu cocô?
- Desculpa, doutor... preciso responder essa pergunta íntima e secreta de um ritual maçônico? Olha, os pedaços terminais do alimento do meu corpo e da minha alma vão bem, obrigado. Sólidos e maciços como uma rocha, escuros como o azeviche do ébano.
- Então, tá. Vou prescrever essa receita aqui. Tomar duas vezes ao dia, até sentir que os sintomas estão diminuindo. Depois a gente marca uma nova consulta pra eu te avaliar. Ah, e não esqueça: alimentos saudáveis, com pouca gordura, beba bastante água durante o dia, exercícios físicos e boas horas de sono é fundamental.
- Perfeito, doutor. Muito obrigado. Ah, a saída: fica pro lado do comunismo ou do capitalismo?
 

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Como fazer um filme pra ganhar Oscar

- Segunda Guerra Mundial. Ótimo tema pra levar a estatueta. Esse assunto sempre comove os velhinhos da Academia. Pode ser um documentários sobre as vítimas e sobreviventes do Holocausto, ou um filme de ficção sobre os campos de concentração, ou sobre os países aliados, refugiados de guerra que ajudaram os judeus, enfim... Vale lembrar que metade dos produtores executivos de Hollywood é semita e a outra metade é de italianos convertidos ao judaísmo.

- Achou o assunto pesado ou batido? Tudo bem. Faz um filme sobre as lembranças de um judeu adolescente nos bairros suburbanos de Nova York que tá valendo.

- Ainda sobre o tema: dê preferência a ator goy para o papel principal. Presta atenção, a concorrência já saiu na frente. Anthony Hopkins, Paul Dano, Stanley Tucci, Mark Strong... Nada de me escalar Michael Rappaport ou Rob Schneider. Se conseguir fazer o Jackie Chan parecer um rabino convincente, o prêmio é seu.

- Temas relacionados aos negros também é uma boa opção. O cinema vem fazendo uma retratação histórica a fim de se tentar corrigir o racismo estrutural. A escolha é livre. Pode ser um filme sobre a Guerra de Secessão, ataques da KKK em grupos de coral gospel ou até mesmo a biografia de um jogador de basquete que sofreu preconceitos.

- Nem pense em gastar muito dinheiro com orquestra. O Oscar de Melhor Trilha já é do John Williams. Mantenha o foco em outras categorias.

- Categorias secundárias, como figurino ou maquiagem, podem ser uma boa estratégia pra se sair vencedor da cerimônia. Mas nada de usar as mesmas táticas do passado, como deixar o Brendan Fraser gordo ou a Charlize Theron feia. A academia já percebeu os truques dessa armadilha. Fique esperto. Próteses de silicone tem em qualquer filme B de terror. Isso você encontra até na 25 de Março, ainda mais que estamos perto do Carnaval. O lance aqui é deixar um ator MUITO parecido com o personagem real do filme. A tal ponto de até ele mesmo se confundir. Escalar o Will Ferrell pro papel do Chad Smith (batera do Red Hot Chili Peppers) seria muita preguiça de sua parte. Se o seu negócio é encarar desafios, faça o Dwayne Johnson ficar idêntico ao Woody Allen.

- Nunca, jamais, em hipótese alguma cogite escalar atores que já receberam precocemente o Oscar e tiveram suas carreiras enterradas por causa disso. Cuba Gooding Jr., Marisa Tomei, Hillary Swank, nem pensar,. Dá um azar da porra.

- Escolha sempre um ator da modinha, que daqui a alguns anos (ou meses) passará a ser tendência. E logo depois será esquecido, não importa seu talento. Jack Nicholson estava sempre na primeira fileira em todas as celebrações, estampando seus óculos escuros e seu sorriso sarcástico. Mas quem se lembra dele na era digital? Leonardo Di Caprio também já era. Bradley Cooper também já teve sua chance. Pense em algo como Timothée Chalamet um sorvete coloret ou a pseudoesquisitaça Millie Bobby Brown.

- Esportes. Taí um outro tema que não é garantia de ganho, mas com certeza entra na lista dos indicados. Aqui é vale-tudo. E não estou me referindo à modalidade de socos e pontapés. Pode ser uma biografia de algum atleta famosíssimo, como Pelé, Maradona ou Serginho Chulapa. Mas pode ser também uma ficção sobre algum sujeito do qual ninguém ouviu falar. Um ex-drogado que vira lutador de boxe, uma tenista pobre e humilde que vai a pé pra escola durante sua infância, ou um jogador de beisebol que cai na bebedeira depois de virar figurinha rara. Só pra lembrar: Bolsonaro nunca foi atleta, tá? Se quiser ser mais criativo, dá uma pesquisada sobre personalidades do curling ou sobre a corrida de mula no Arkansas. Não importa. Mas uma coisa é certa: ao final do filme, durante a exibição dos créditos, é obrigatória a presença de fotos, imagens e som de rádio antigo do verdadeiro atleta.

- Roteiro é outra coisa muito importante. Dê bastante atenção e um cuidado especial aos diálogos. Ultimamente a Academia tem preferido falas densas, cheias de conteúdo. Nem ouse trazer de volta a nouvelle vague e suas conversas do dia a dia. Ou aquele olhar contemplativo e mudo de um Louis Garrel da vida. Esqueça de uma vez por todas o silêncio dos planos do Sokurov ou do Béla Tarr. Aqui o negócio é sério. Nada de frases vazias como "tá tarde, vou dormir" ou "tem cigarro?". Até porque cigarro virou um palavrão tão feio quanto Weinstein na indústria da Sétima Arte. Aqui você vai precisar contratar um roteirista que ganha por letra. Cada fala dos protagonistas deve conter um resumo da história dos Estados Unidos. Faça as associações mais complexas possíveis. Se o tema for um vazamento de informações do jornalismo, despeje toda sua verve mencionando Watergate e vacinas feitas à base de prótons. Não existe vacina de prótons, mas essa é a ideia. Ninguém vai ficar entrando no Google dentro do cinema a cada discurso rebuscado da Jennifer Lawrence. Se o assunto for os escândalos nos bastidores de Hollywood, faça uma correlação entre pedofilia e extinção das abelhas nos países de clima equatorial. De preferência, com falas na velocidade Tatá Werneck, que é pro público não entender porra nenhuma e acreditar em tudo o que está ouvindo.

- Procure, sempre que possível, priorizar temas universais ao invés de assuntos mais regionais ou específicos. Fale sobre aquilo que todo mundo conhece ou entende, como amor, bullying ou vontade súbita de comer chocolate antes de dormir. Isso pode gerar mais empatia. Se houver mesmo uma intenção de tratar de assuntos mais herméticos, atente-se a fatos que foram mundialmente divulgados ou ganharam um destaque na mídia internacional, como a Guerra de Ruanda, os ataques terroristas em Brasília ou a traição do namorado da Shakira.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Amazon

Odeio marketplace. Começo assim esta pequena dissertação para encantar ou afugentar meus leitores. Quem está comigo nessa jornada ou quer simplesmente entender melhor os fatores, siga em frente. Quem acha o novo modelo de compras um universo lindo e maravilhoso, pode parar por aqui e pular para a próxima postagem.

Levar produtinhos pra casa de modo on-line, utilizando as ferramentas de e-commerce disponíveis, nunca foi um dos meus grandes prazeres. Só que, desde que os grandes conglomerados virtuais passaram a adotar tal modalidade, tudo (ou quase tudo) ficou ainda um pouco pior. Tá certo que, de um lado, esse megapólio se esforçou pra trazer um tiquinho a mais de segurança. Durante a viagem da sua mesinha de escritório, do seu par de tênis importado ou de suas cápsulas de emagrecimento com fórmula exclusiva, você fica sabendo todo o trajeto por tudo quanto é meio: SMS, e-mail, notificações push no aplicativo, e por aí vai. Se o entregador ficou parado no semáforo fechado ou parou pra abastecer o tanque, lá vem mensagem pra você. 

Só que, na balança, o contrapeso dos dissabores é maior. Não existe mais o famigerado "estoque". O cartel que domina o mercado simplesmente criou uma rede de parceiros fornecedores. Tudo é terceirizado: do fabricante ao serviço de entrega. Essas empresas cuidam apenas da logística de distribuição. Repare que, ao fazer uma busca num desses portais, o mesmo produto pode aparecer anunciado em duplicidade. E com preços diferentes. Se você fizer a mesma pesquisa em outro portal comparativo, como Submarino ou Buscapé, vai encontrar esses mesmos anúncios. Tudo não passa de um copia-e-cola. Essas empresas são, em última análise, nada mais do que agentes intermediários. Cambistas da Geração Z. Não produzem nada. Não guardam nada. E mal sabem o que estão vendendo. Mas onde elas ganham, se não é no lucro com a venda do produto? Criando um sistema próprio de distribuição, com custos de frete determinados por elas mesmas. Se você acha que elas entraram no mercado para cobrir as lacunas das falidas Mesbla ou Mappin, engana-se. Elas estão aí para ocupar o nicho deixado pelos Correios ou pela FedEx, por exemplo, que vêm acumulando prejuízos operacionais nos últimos tempos.

E o resultado disso? Bom, você sabe. Compra um produto que não sabe se existe, confia na descrição das características sobre as quais ninguém tem certeza, e ainda faz reza brava pra chegar direitinho em sua casa nos prazos e condições prometidos. Tudo na base do achismo.

Como vocês já devem imaginar, não nasci com o ânus virado para o satélite natural da Terra. Já tive alguns probleminhas com o comércio eletrônico. Assim como vocês provavelmente também. Na proporção compras efetuadas x satisfação garantida, a equação foi desastrosa. Tive que reclamar, e brigar, e chamar o Papa em diversas ocasiões. Só pra citar alguns casos: Editora Perspectiva, Americanas, Livraria Cultura e, recentemente, Amazon.

Vou trazer um pouco mais de detalhes sobre a última experiência. A norte-americana com nome de floresta brasileira. Após fazer uma pequena pesquisa, inclusive em lojas físicas, vi que a Amazon oferecia o melhor preço. Eu, particularmente, sempre preferi as lojas de verdade. Você entra, escolhe o que quer, toca na mercadoria, sente seu cheiro, sente seu peso, sente seu gosto. Se informa sobre o que precisa saber. Se tiver dúvidas, chama um vendedor de carne e osso ao invés de entrar num chat e conversar com um bot que não entende nada do que você escreve. Abre a carteira, paga com dinheiro vivo ou cartão, escolhe se é débito ou crédito e sai da loja com uma sacola e duas coisas dentro dela: o produto e a certeza de que a compra foi um sucesso. Já na compra on-line, não. Você acessa a loja virtual, escolhe o que quer, confia nas informações, paga somente com a opção crédito, deixa lá no site registrados todos os dados do seu cartão, tornando isso um ponto vulnerável para eventuais hackers, recebe um e-mail, valida as informações do e-mail como um verificador de segurança, continua o processo, aguarda o recebimento de outro e-mail avisando que sua compra foi aprovada, paga o olho da cara pelo frete, acompanha o trajeto por um código de rastreamento e, mesmo já tendo pago, chama todas as divindades nórdicas para que sua compra chegue no prazo prometido (de 2 dias a uma eternidade, de acordo com disponibilidade do produto) e que você não esteja no banho durante os 5 segundos que o entregador te espera pra atender a campainha que ele tocou.

A compra em questão se tratava do lançamento do livro do indigenista Ailton Krenak, Futuro Ancestral. Era pra ser um presente de aniversário da minha mãe. Infelizmente, o livro não chegou em casa no tempo hábil. O aniversário dela passou, e nada de presente. No site, o aviso de um novo prazo de envio, sem mais especificações. No dia do aniversário dela, recebo um e-mail da Amazon pedindo minha avaliação sobre a experiência de compra. Tipo uma pesquisa de satisfação. Pra falar a verdade, nunca acreditei muito nisso não. "De 0 a 10, qual a sua probabilidade de recomendar...". às vezes até participo, na esperança de poder botar a boca no trombone ou, quem sabe, ganhar um vale-compras. Mas, de um modo geral, sou muito cético em relação a isso. Duvido que o Mc Donald's vá mudar a formulação do seu Big Mac ao ouvir de mim que não gosto de picles. Em todo caso, respondi a pesquisa e fiz uma avaliação insatisfatória, visto que não recebi aquilo que já paguei,.

Coincidência ou não, a encomenda chegou em casa no dia seguinte. E, um dia depois, recebo no meu WhatsApp uma mensagem da LT2 Transportadora pedindo breves desculpas pelo ocorrido e solicitando que eu "apague" minha avaliação negativa ou faça uma nova. Em troca, ofereceriam como cortesia um voucher de desconto na próxima compra ou um box do George Orwell. Num primeiro momento, pensei em recusar. Não sou corruptível. Acho muito importante que os demais consumidores fiquem a par da qualidade dos serviços prestados por esse truste e seus parceiros. Seria essa a forma educada de me calarem a boca? Estariam comprando meu silêncio? Ou será que esse canal de comunicação funciona de verdade, a tal ponto da empresa terceirizada ficar com o rabeto na mão sob o risco de ter seu contrato rompido com a Amazon?

Outra possibilidade de se enxergar a situação seria o reconhecimento de uma falha, seguido de uma recompensa por perdas e danos. Afinal, eles admitiram o erro. Pior seria simplesmente ignorar meu descontentamento. E, como tudo na vida tem seu preço, optei por ser agraciado com um mimo pelo aborrecimento ao invés de sair de mãos vazias. Continuo odiando o marketplace. Mas o box é lindo. Um pack com os livros 1984 + A Revolução dos Bichos + cards temáticos. Agradeço a gentileza.


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Bárbaros

Na primeira noite eles se acampam nos quarteis

Vestem-se com a bandeira da pátria

Cantam o hino para os pneus

Bloqueiam ruas e estradas

Insultam as instituições debaixo da chuva fina

E nós não fazemos nada.


Na segunda noite eles invadem o Congresso

Sobem a rampa da democracia com paus e pedras

Destroem a moralidade

Esfaqueiam o Di Cavalcanti

Cortam a cabeça do Brecheret

Dão um golpe fatal no Krajcberg e no Estado

Sangram um cavalo

Mostram suas caras

Mostram suas bundas

E a Polícia não faz nada.


Até que na última noite

O mais frágil deles

Em nome de todos os fracos e covardes

Fala em liberdade

Chora suas doenças

Grita em nome das mães, dos velhos e das crianças

Esconde sua vergonha

Apaga seu rosto das notícias

Aniquila seu caráter

Enterra sua dignidade

E, com as algemas nos punhos e a vacina no braço,

Já não pode fazer mais nada.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Arrombado

Não quero estragar a alegria de vocês. Estamos passando por um processo de reconstrução do país e, ao que tudo indica, as coisas prometem ser menos piores do que no quadriênio anterior. Aliás, feliz 2023 a todos.

Mas, ao passar pelas postagens do meu feed, eis que me deparo com o primeiro anúncio de vaga de emprego do ano na minha área profissional. E não posso deixar de compartilhar minha estupefação. Para o cargo de redator de conteúdo bilíngue, o contratante listou nada menos do que 29 responsabilidades necessárias para o dia a dia. VINTE E FUCKING NOVE. Além, é claro, de dois itens que a empresa considera desejáveis (o famoso "será um diferencial"). Em contrapartida, a descrição da vaga foi muito breve e evasiva ao enunciar o que de fato irá oferecer em troca. Não cita salários ou honorários, apenas esclarece que o modelo de trabalho é híbrido e o regime de contratação é PJ. Ou seja, aquele em que o empregado é patrão de si mesmo, deve se virar e abrir empresa, pagando por conta própria todos os tributos e encargos com serviços de contabilidade. Tudo pra fugir dos esquemas de contratação das antigas leis trabalhistas. E finaliza a postagem prometendo benefícios, mas sequer mencionando quantos e quais são.

Dentre a infinidade de critérios seletivos, não posso deixar de mencionar, para um vulgo redator de conteúdo, "criar plano e táticas para gestão de crise digital" (!!) e (pasme!) "analisar dados, métricas e tirar insights". Ora, ora, vejam só. Não curto muito requentar piadas velhas, mas isso me lembra muito o tipo de resposta que os internautas (outro nome antigo) davam a esse tipo de anúncio: "precisa também ganhar um Prêmio Nobel". O que mais uma vez prova que qualificações absurdas como essa só se encaixam em dois cenários: memes publicitários ou postagens na cômica e fictícia comunidade virtual Vagas Arrombadas.

Não quero aqui menosprezar a competência e as qualificações dos candidatos à vaga em questão. A gente sabe que não tá fácil pra ninguém. Eu mesmo já trabalhei com profissionais altamente capacitados em atributos mais técnicos, matemáticos. Mas o que me chama a atenção é a amplitude do escopo. Talvez a empresa entenda que, quanto maior a lista de exigências, menor a quantidade de pleiteantes. E mais assertivo será o processo de contratação. Na prática, isso tudo me soa como papo furado. É como se estivessem admitindo um cineasta que escreva o roteiro do filme, faça a direção, montagem e ainda atue nele. Profissional assim completo e ao mesmo tempo brilhante, no momento só me vem um nome à cabeça: Orson Welles.

Tá certo que a Propaganda como a conhecemos morreu faz tempo. Não é de hoje que venho dizendo isso. Sou redator publicitário raiz. Daqueles que mostravam o portfólio impresso dentro da pasta do Omar. E não vou dizer que tudo era mais fácil. A gente ficava horas na recepção da agência. Éramos atendidos muitas vezes de modo lacônico e protocolar. Antes mesmo de terminar a rápida entrevista, o premiado profissional nos entregava uma lista-padrão com outros tantos nomes de outros tantos publicitários premiados pra gente procurar. Mas foi nessas condições adversas que aprendi muita coisa. Frases e ensinamentos de algum low profile que se dedicava um pouco mais a ensinar quem estava começando na área ou procurando um lugar melhor. Devo ter visitado quase uma centena desses. E não me recordo de nenhum deles ter me perguntado sobre minha experiência com plataformas de metodologias digitais. Ali, na gigantesca sala de reuniões debaixo de um ar-condicionado em temperatura mínima, eu era elogiado e ao mesmo tempo espinafrado sob um critério único e não menos rigoroso: a criatividade.

Hoje, ao ver minha profissão respirando por aparelhos em seu leito sepulcral, me bate uma certa tristeza. Não pelo seu trágico epílogo em si. Mas por observar os critérios e requisitos da dita modernidade para um posto de trabalho análogo à escravidão.