domingo, 29 de março de 2020

A sinuca de Mandetta


Não há dúvidas: Luiz Henrique Mandetta é o presidente em exercício do Brasil. É ele quem tem a incumbência de articular medidas de controle da disseminação do coronavírus. E carrega o fardo de não deixar o país cair no abismo de gráficos desastrosos.

Como político, tem um passado questionável, ligado a forças e interesses conservadores. Mas, como Ministro da Saúde, é inegável seu empenho 24 horas por dia em pensar e oferecer as melhores soluções possíveis e viáveis diante de um quadro ao mesmo tempo incerto e assustador. Muito mais preocupado em elucidar questões técnicas do que cair em emaranhados discursivos políticos, o ministro apresenta equações em sintonia com as orientações da Organização Mundial da Saúde e todos os governantes do mundo inteiro que adotaram essa linha de conduta. As barreiras e dificuldades são imensas. Desde a implementação de leitos em hospitais públicos em tempo recorde, até a liberação de verbas trilhardárias para multiplicar a estrutura do sistema de saúde no Brasil, coisa inimaginável de ser concretizada em épocas mais brandas. Seu maior empecilho, porém, é de outra ordem: Jair Bolsonaro.

É notório que existe uma queda de braço entre o ministro e o presidente. O primeiro ganhou os holofotes da mídia por sua competência em trazer informações à população em tempos de ponto de interrogação na cabeça. Já o segundo parece continuar em campanha eleitoral. Sai às ruas, cumprimenta e abraça comerciantes, contrariando as recomendações mundiais e colocando à prova sua tão propalada onipotência. Como se nada tivesse acontecido. A pandemia é um exagero da mídia, e Bolsonaro coloca-se despido de qualquer medida protetiva para mostrar, com seu heroísmo deslumbrado, que meros perdigotos não serão capazes de matar o corpo de atleta de um capitão que sobreviveu a uma facada.

O problema, entretanto, é que Mandetta está em linha com os governadores, com o Congresso, com qualquer tipo de autoridade com o mínimo de zelo e inteligência. Já Bolsonaro continua se amparando num texto de Trump que só passou em sua cabeça. E, com isso, isolou-se no poder. Bolsonarto tornou-se um tirano de si mesmo. E, enciumado com as repercussões, braveja recriminar seus súditos que pensam o contrário.

Após o pronunciamento pra lá de absurdo do presidente em cadeia nacional, na semana passada, ficou claro que as linhas de governo não se conversam. Mandetta, ao invés de manter a rigidez de sua postura ética para que a sociedade como um todo tome as providências drásticas e amargas necessárias, pegou bem mais leve. Em coletiva de imprensa, afirmou que a quarentena foi precipitada. Defendeu, sem defender, o isolamento vertical (aplicado somente a idosos, pessoas dos grupos de risco ou pessoas que apresentem algum sintoma da famigerada gripezinha). Tanto é que, nas redes sociais, foi apelidado de ministro-sabonete. Nessa época em que o sabão, o detergente e o álcool gel são artigos de luxo e de extrema necessidade, tal alcunha viria a cair bem. Não foi o caso. Passou-se a impressão de que o ministro falou conforme as conveniências e aderências das circunstâncias.

Mandetta se vê numa sinuca de bico. Se seguir as orientações médicas do planeta inteiro, vai bater de frente com Bolsonaro. Se fizer o contrário, vai de fato levar a saúde pública do país a uma irremediável situação de colapso. Então, o pulso-firme começa a desenhar um posicionamento meio de carta-coringa. Ele não pode ser o pivô de uma desestabilização do governo. Mas também não pode ceder aos ímpetos lunáticos desse déspota imbecilizado que nos preside. Um trunfo ele tem. Se demitido, o Brasil não possui um nome à altura para ocupar o cargo. Médicos competentes é o que não falta. Dr. Drauzio Varella seria um deles. Mas o Brasil fragmentado de hoje precisaria muito mais do que um doutor nas ciências. É necessário ter a virulência que o cargo exige num momento crítico como este e ao mesmo tempo fingir subserviência ao fascista desvairado pra não corroer o Estado de vez. Por enquanto, essas sabonetadas têm dado certo. Bolsonaro se vê num compulsório confinamento político, enquanto Mandetta e sua trupe de apoiadores atuam de forma a parecer que vivemos um parlamentarismo brando e temporário. Resta saber qual será o prazo de validade deste medicamento paliativo.


sábado, 28 de março de 2020

Meu perfil no Tinder

Antes da quarentena:
Sou alegre, divertido, amo a natureza, adoro praias, parques, viagens, encontrar os amigos, abraçar pessoas, sair pra conversar num bar. Sou amante das artes, adoro ir ao cinema, teatro, shows e exposições. Adoro cozinhar, sempre busco receitas novas e criativas. Se você gostou ou se identificou com meu perfil, vamos marcar de bater um papo descontraído e ver o que rola. Casadas e enroladas, por favor X.

Depois da quarentena:
Sou solitário, passo quase o dia inteiro na cama. Estou à procura de alguém porque não aguento mais ficar ouvindo os noticiários. Sou introvertido e meu quadro clínico está entre a ansiedade e a depressão. Adoro ficar em casa vendo Netflix e estourando uma pipoca. Sou caseiro e organizado, já arrumei minha estante umas 4 vezes. Sou higiênico, lavo minhas mãos 52 vezes por dia. Adoro passar o dia compartilhando memes e postando minhas fotos de 2 anos atrás, quando eu podia sair pro barzinho - e era 10 quilos mais magro. Adoro cozinhar, sempre tento fazer algo improvisado com o Miojo e a salsicha que sobraram. Se você gostou ou se identificou com meu perfil, vamos trocar zap pra ficar horas conversando e quem sabe trocar nudes. Infectadas e pessoas do grupo de risco, por favor X.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Rotina na quarentena


Acordar – 6h
Tomar banho, escovar os dentes, tomar café, olhar no relógio – 6h40
Fazer alongamento, ligar o computador, ver as tarefas do dia, apagar os memes dos grupos de zap, olhar no relógio – 6h50
Limpar a casa, arrumar a estante, dar uma volta com o cachorro (de máscara e luva), cumprimentar os vizinhos de longe, voltar pra casa, olhar no relógio – 8h10
Fazer as tarefas do dia, enviar por e-mail, receber as alterações, fazer as alterações, aguardar aprovação, olhar por relógio – 9h
Subir no telhado, trocar todas as telhas quebradas, pensar na vida lá do alto, escorregar, ralar a mão, fazer um curativo, olhar pro relógio – 10h05
Receber e-mails, dar o toque final nas alterações, entrar no Facebook, ver 300 posts falando a mesma coisa, bloquear bolsominions, olhar pro relógio – 10h55
Ir ao banheiro lavar as mãos do jeito que a OMS recomenda – 11h10
Ir pra cozinha preparar o almoço. Descascar 10 batatas, fazer arroz, limpar o peixe, lavar alface, botar o peixe com as batatas e tomates pra assar, tirar do forno, olhar no relógio – 11h50
Almoçar, assistir TV enquanto almoça, ver o Dória tretar com o Bozo, emendar com Globo Esporte, descobrir que não tem Globo Esporte, preparar uma sobremesa, olhar pro relógio – 12h55
Tirar um cochilo, ter pesadelo, sonhar que o mundo tá acabando, sonhar que as prateleiras dos supermercados estão vazias, acordar assustado, olhar pro relógio – 13h15
Voltar pro trabalho, receber as tarefas, mandar mensagem pro coordenador das tarefas, fazer um call, digitar, diagramar, criar apresentação em Power Point, enviar, olhar pro relógio – 14h40
Ler mensagens de zap, apagar tudo, ver stories do Insta, pegar um livro, ler Crime e Castigo do início ao fim, olhar pro relógio – 17h
Ir pra TV, clicar na Netflix, assistir O Irlandês, olhar pro relógio – 17h30
Fazer ginástica na sala, levar o cachorro de novo pra passear, dar a volta no quarteirão, dar uma esticadinha até a Av. Paulista, voltar, olhar pro relógio – 18h30
Tomar outro banho, lavar a cabeça, fazer a barba, cortar as unhas, experimentar todas as roupas guardadas pra ver se ainda servem, perceber que engordou 5 quilos, ir pra cozinha preparar o jantar, olhar pro relógio – 19h
Fazer um risoto de arroz negro e salmão no papel alumínio, olhar pro relógio – 19h40
Ver TV enquanto come, reparar que as notícias são as mesmas da tarde, emendar com alguma reprise de novela, ligar pros pais, falar pra eles que não está infectado, olhar pro relógio 20h25
Lavar roupa, passar roupa, engomar camisa, olhar pro relógio – 21h
Começar a ficar com sono, ir pro computador e descobrir que não está com sono – 21h15
Ficar na net, entrar no Youtube, sair do Youtube, entrar no Mercado Livre, entrar no PornTube, ver vídeos de todas as categorias e ir pra cama achando que já é de madrugada – 23h


quarta-feira, 25 de março de 2020

Deu ruim


O pronunciamento do presidente da República, Jair Bolsonaro, foi equivocado em diversos aspectos. Inconsequente ao incitar a quebra da quarentena, ou confinamento em massa em suas próprias palavras, desobedecendo às recomendações da OMS. Temerário ao sugerir que as escolas e o comércio em shoppings não permaneçam fechados, contrariando as táticas de conter os focos de disseminação do vírus e, com isso, retardar os efeitos da proliferação até que o nosso sistema de saúde ofereça a estrutura necessária para enfrentar esse pandemônio. Perverso ao colocar a Economia em primeiro lugar, à frente da questão de saúde pública, muito embora saibamos que as falências generalizadas trarão efeitos colaterais igualmente letais ao país. E prepotente, ao se colocar incólume às ameaças, graças a seu corpo de atleta.

De resto, o tom do discurso foi mais do que previsível. E velho. Enquanto as autoridades médicas – e os governadores dos Estados – estão tomando providências à medida que os fatos se desenrolam, reciclando seus conhecimentos e se adequando às novas perspectivas, nosso chefe da nação continua teclando a mesma ladainha de sempre. Gripezinha, exagero da mídia, problema da China. Para os especialistas, o hoje é diferente do amanhã. Para Bolsonaro, não. Os números até podem aumentar em progressão geométrica. Mas o discurso do beócio é sempre o mesmo, calcado em suas convicções toscas. O hoje é igual ao ontem, que é exatamente idêntico a 1964. O único momento da história do país que desconstruiu essa narrativa progressista de crescimento foi entre 2003 e 2016. Bolsonaro é tão simplório em suas atitudes, e confiante de que isso seja um mérito, que confunde cadeia de TV nacional com Twitter. Com seu cinismo de praxe, usou parte do tempo ao qual tem direito como mandatário para lavar roupa suja e atacar, indiretamente, a Rede Globo e seu médico que entrevista e abraça travesti assassino, o dr. Drauzio Varella.

Mas o que me espanta de verdade não é esse palavreado monocórdico e repetitivo, como se o áudio do aparelho estivesse sintonizando uma estação de rádio com músicas tocando no modo looping. Ou mesmo as esperadas reações entre meus amigos de inconformismo, indignação e panelaços mentais individuais. Me chama muito a atenção em particular os apelos que passaram a eclodir em suas postagens. Em tons extremos e definitivos, um considerável contingente da minha horda de amigos, conhecidos, familiares e seguidores das redes sociais solicitou que os bolsominions, os direitistas ou simplesmente quem ainda apoia o presidente se autodelete do rol de amizades do autor da publicação. Aí eu já acho que a coisa perde um pouco o sentido. Claro, não dá para conviver com alguém que emporcalha nossa página com fake news, argumentos suspeitos ou posições ideológicas diametralmente contrárias. Mas o clamor em linguagem de ameaça, em tempos de confinamento social, é no mínimo perigoso e igualmente violento. Existem diferentes motivações que fizeram o eleitor optar por Bolsonaro. Desde uma fé cega e incondicional ao mito, até a percepção de que ele foi a única via possível para aniquilar o peso político do PT. Muitos eleitores do Bozo, hoje, estão arrependidos ou fazem o chamado “apoio crítico”, reconhecendo falhas e exageros, porém, em sintonia com sua política econômica neoliberal. E outra: se os extremistas continuam invadindo a página dos meus queridos, alguma coisa está errada na lógica matemática dessa ferramenta. Pois o Facebook consiste no paradoxo de agregar pessoas, criando-se uma rede, e selecionar por meios algorítmicos as possibilidades de interação. Ou seja, do ponto de vista prático, é o próprio Face que cuida para que suas ideias e opiniões sejam vistas pelos mesmos amigos e seguidores. Falar em bloquear pessoas com pontos de vista contrários é ratificar e intensificar esse movimento de criação de bolhas e redomas sociais, trazendo o indivíduo ao confinamento de sua zona de conforto que nada tem a ver com a ameaça do vírus.

Eu sinceramente acho que a catástrofe não está lá fora, nas ruas e nos supermercados, com os vermes à espreita só esperando o momento certo de nos atacar. A pandemia real está aqui dentro do conforto dos nossos lares. No início, prometemos pra nós mesmos que, passada a quarentena, voltaríamos a nos beijar e abraçar muito. Até agora, deu o contrário. Estamos com um cagaço da porra. De contrair o corona, de perder o emprego, de zerar nossas economias domésticas e não encontrar qualquer tipo de auxílio do sistema financeiro em progressiva bancarrota. Pra completar, o porta-voz do nosso Brasil é um vomitório de asneiras. Estamos ociosos e ansiosos. Intranquilos a cada vez que ligamos o noticiário. Tudo isso só está nos levando ao abismo da neurastenia. Saramago foi profético em parte. Assim que nos curarmos da cegueira, continuaremos míopes. E cada vez mais hostis. As conseqüências do pronunciamento de Bolsonaro são incalculáveis, pois projetam para o futuro exatamente o que fizemos no passado. Voltamos às briguinhas de colégio de 2018. Pra mim, já deu.


segunda-feira, 23 de março de 2020

Começam as contradições


Alguns chefes de governo, autoridades e especialistas médicos estão recomendando para a sociedade não entrar em pânico. Nada mais justo. Se já é difícil controlar a pandemia em condições normais de temperatura e pressão, imagina num calamitoso estado de histeria coletiva. Nesse momento, a calma e a tranqüilidade são artigos tão essenciais quanto o álcool gel.

Para seguirmos nossas vidas de maneira mais ou menos segura, ou pelo menos com a insanidade controlada, basta obedecermos às recomendações dos profissionais que estão a toda hora, em todas as mídias. Em primeiro lugar, é muito importante lavar as mãos. Usamos essa orientação como se fosse um mantra. Só que mão é um conceito muito vago. Aí vem o update: lavar por 40 segundos a mão, as unhas, as juntas dos dedos e o pulso. E o vírus não escolhe só as mãos pra se instalar. Ele pode aparecer atrás da orelha, ou nos vincos das narinas, no umbigo e em qualquer reentrância sobre a qual você não costuma dar conta. E os recados médicos vão ganhando força e amplitude. Afinal, esses profissionais também estão aprendendo tanto quanto a gente. Eles nunca enfrentaram uma situação assim. Aí vem o update do update: a disseminação de posts falando pra tirar a barba. Ela é foco de bactérias (muito embora, como o próprio nome diz, o coronaVÍRUS não seja uma bactéria. Mas tudo bem. O importante são os hábitos higiênicos). E todo aquele feminismo de não depilar a perna ou deixar crescer os pelos das axilas cai por terra. Vamos juntos combater a proliferação desse malvado. Vamos procurar dentro de nós aquele mais recôndito orifício que a gente não ensaboa desde a greve dos caminhoneiros. Vamos raspar tudo quanto é pelo de contágio, eliminar nossos cabelos e tirar um selfie do novo look que parece que estamos entrando numa sessão de quimioterapia, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.

E as novidades continuam aparecendo. Não basta lavar as mãos ou usar álcool gel. A roupa que você usa pode estar contaminada, caso tenha encostado em outro foco infeccioso. Estudos recentes mostram que o corona não é um vírus de inverno. Ele resiste ao calor, à água, sobrevive no ar e pode ficar alojado em superfícies por um período ainda desconhecido, mas já se fala que alguns deles pretendem usar a Lei do Usucapião pra se instalarem permanentemente na sua bolsa ou mochila. Ou seja, quando você chega em casa (nem deveria ter saído), a primeira coisa a se fazer é tirar os sapatos. Se não tiver nenhum vizinho olhando, tire toda a roupa e coloque direto na máquina. Sem falar com ninguém, vá direto ao chuveiro. Isso vale pra hoje. Capaz de amanhã uma equipe de sanitaristas vestidos de uniforme da NASA e capacete espacial dar banho em você usando um esguicho de agentes químicos. Lavar as roupas guardadas é bom também. Nunca se sabe se aquele  vestido que você usou no casamento de sua prima que hoje está com 50 anos está infectado. Medidas de precaução. Hoje você joga uma ducha no seu Nike, amanhã você taca fogo no seu guarda-roupas inteiro, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.

Supermercado é outro fenômeno a ser estudado. Roga-se para as pessoas evitarem as aglomerações e se dirigirem a locais públicos somente em casos de extrema necessidade.  Tentemos entender a lógica. Com exceção dos hindus, ninguém vive de luz. Se um freguês vai ao supermercado e lota seu carrinho de compras, isso quer dizer que ele vai diminuir a freqüência de voltar ao estabelecimento, seguindo as recomendações. Só que, em tempos de zumbilândia, carrinho cheio virou sinônimo de egoísmo. De ostentação. Colocar 2 rolos de papel higiênico na cestinha significa que o próximo da fila vai ficar sem. Mas não vamos falar de cocô. Vamos falar de comida. Durante essa quarentena de 20 dias, que pode durar 1 mês, ou quem sabe esticar até as Olimpíadas, as pessoas estão em casa sem nada pra fazer. E com o cu na mão porque não sabem como vai ser amanhã. Se ainda vão ter emprego. É a ociosidade que estimula a ansiedade. E, na maioria dos casos, pessoas ansiosas tendem a comer mais. Está rolando um vídeo nas redes sociais em que, dentro de um supermercado abarrotado de gente, um sósia do cantor Péricles tem um ataque de fúria, sobe num carrinho e começa a gritar com as pessoas. Ele fala pro povo ir pra casa, pra não entupir o carrinho de mercadorias. Seu discurso até que faz sentido. O problema é aquela imagem, a cena típica do Apocalipse. As pessoas não sabem, então, se devem se munir de estoque pra evitar o contato físico ou se devem ser solidárias e viver como sobreviventes de Auschwitz, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.

Ah, tem também o movimento pra parar o Brasil. Sim, frear completamente. Numa realidade em que PIB zero virou uma projeção otimista. Num desses vídeos que o amigo do vizinho nos encaminha em grupos de WhatsApp, e a gente acaba clicando por falta do que fazer, o Marcos Mion faz um apelo sério pra sociedade. Começa falando calmamente sobre os cuidados que devemos tomar, mas depois vai aumentando seu volume de voz. Num surto de empolgação, grita para as pessoas não saírem de casa. Parece que a única maneira de as pessoas entenderem o recado é pelo modo berro. Frases apelativas e ululantes que nos fazem parecer idiotas. O apresentador tratando seus seguidores como se eles fossem os piores clipes do mundo. E aí, meus caros, temos médicos aprendizes, políticos oportunistas, consumidores ensandecidos e celebridades esquecidas que nos entopem de informações novas e diferentes a cada dia, mas NÃO VAMOS ENTRAR EM PÂNICO.


O fim ou o recomeço?

Que lição divina estão querendo dar pra Humanidade? Qual o aprendizado que carregaremos após isso tudo? É o fim dos tempos, ou só mais uma gripezinha que se tornará cada vez mais constante pra mostrar que o Homem não cuida bem de sua casa chamada planeta? Nesse clima que mistura Copa do Mundo com Apocalipse, passamos a adotar comportamentos e conviver com situações que jamais poderíamos imaginar, e tenho certeza de que não estávamos preparados para elas. Mas, e aí? Essa reclusão vai ser capaz de mudar a chavinha do nosso cérebro? Vamos parar pra pensar em outras possibilidades de convívio? Passado o surto, seremos pessoas melhores? Ou daqui a 1 mês vai voltar tudo do jeito que era antes? Repara que, de uns poucos dias pra cá, em esquema de terapia de choque, tivemos de forçosamente encarar uma outra perspectiva, como se estivéssemos em outro mundo, numa realidade paralela em que não pedimos licença pra entrar.

#tamojunto é ficar bem separado.
- As ruas estão sem trânsito nenhum. E ficamos tristes por isso.
- As autoridades proibiram o baile funk.
- Em vez de planos de aceleração do crescimento, criou-se um movimento pra parar o Brasil.
- Beijos e abraços estão proibidos, mas cotovelada pode.
- As pessoas estão reclamando de ficar em casa sem fazer nada.
- Isolamento virou uma forma de demonstrar calor humano.
- Álcool gel e máscara viraram objetos de ostentação.
- Os shoppings estão às moscas e os supermercados estão lotados.
- Papel higiênico virou artigo de luxo - e objeto de briga. A comunidade alheia está mais preocupada com o quanto você caga do que com o que você come.

Por quê? Até quando? Eu não nasci para viver isso.

domingo, 8 de março de 2020

Dia da Mulher

No ano passado, enviei por WhatsApp, para algumas mulheres com as quais mais convivo nos últimos tempos, uma lacônica mensagem desejando um feliz Dia da Mulher. A maioria me respondeu de maneira igualmente objetiva, retribuindo o carinho e a lembrança. Mas teve algumas, bem poucas por sinal, cuja reação foi, digamos, menos receptiva. Apareceu na minha tela o VV azul, ou seja, a pessoa recebeu a mensagem, leu e a ignorou.

Pois bem. Sempre que publico alguma mensagem no Facebook, o mais fascinante (e em alguns casos desgastante, diga-se de passagem), aquilo que me faz querer continuar a brincadeira, é a imprevisibilidade. Eu jamais sei a reação de cada um. E elas podem ser várias. Claro, como eu sou um apaixonado pela escrita, tenho em mente aquilo que quero causar, e isso é tudo muito calculado. Mas, diante de uma biodiversidade tão complexa, de um universo tão abrangente e diferente em suas partes, fica um pouco mais difícil esperar por uma reação em uníssono. Isso todo dia, em todo e qualquer post. De macarronada a Bolsonaro. Pois quem está agindo, reagindo e interagindo são pessoas das mais diversas formações, convicções, repertórios, experiências de vida, maneiras de pensar o mundo.

Com o Dia da Mulher não poderia ser diferente. A maioria delas, suponho eu, achou bacana a iniciativa. O fato de elas serem lembradas. Já a minoria que me deixou no vácuo (e continuo aqui trabalhando no campo das hipóteses) provavelmente deve achar que a criação de uma data como essa reforça ainda mais o machismo social. Não existe um "dia da mulher" que não sejam todos os dias do ano. A maioria deve achar que tudo bem. Elas sabem que mãe é mãe todo dia, pai é pai todo dia, e mesmo assim aceitam de boa a comemoração e, não só isso, vão às lojas comprar presentes. Algumas delas, talvez, devem achar que não se deve comemorar uma ocasião enquanto não houver de fato a igualdade. Já outras pensam que a estipulação desse dia é um marco fundamental para deixar registrado na história a luta e as conquistas alcançadas, ainda que isso tenha uma aspecto de martirização. Assim como o feriado de Tiradentes. Algumas mulheres devem achar que dar uma lembrança no dia 8 de março é como dar espelhinho pra índio. Mulher não quer saber de flores, nem de caixa de bombons. Mulher quer salários compatíveis com os dos homens. Quer exercer cada vez mais cargos de liderança. Quer o reconhecimento pelo seu valor, meritocrático mesmo, e não ter de ouvir em papinhos de corredor "foi promovida porque deu pro chefe".

Ouvir de mim um "feliz Dia da Mulher", para as minhas amigas, talvez tenha sido algo a calhar. Me colocou num patamar acima de quem simplesmente não escreveu nada. Mas, para a minoria (e sinto-me bastante compreensivo quanto a isso), talvez isso soa meio hipócrita. Não dá para emitir qualquer tipo de felicitação num país campeão mundial de feminicídio. Uma terra que registra um caso de abuso, agressão ou estupro a cada hora. Em que a violência doméstica mata mais do que os latrocínios. Isso sem falar nos índices absurdos de assédio, e seus incontáveis relatos de homem que passa a mão na bunda, ou qualquer outro gesto obsceno, e a coisa fica por isso mesmo. Está incutida na mente da população que mulher que sai de minissaia é pra provocar. Que vivemos na sociedade do fiu-fiu e do tomara-que-caia.

Um "feliz Dia da Mulher" pode ser tão vazio e impessoal, algo mercantilista como o "Feliz Natal" ou "Feliz Páscoa", quanto trazer consigo todo o peso e a importância da conquista do voto feminino, do incêndio na fábrica de sutiãs. A resposta para essa equação vai estar sempre na cabeça do interlocutor. Talvez a sociedade de hoje esteja mais tolerante e perceba que, de felicidade em felicidade, podemos construir um mundo melhor. Outras, ainda que em menor escala, devem achar que, enquanto não houver um país mais justo e mais tolerante, impossível existir qualquer tipo de alegria num dia como hoje.

Eu sinceramente não sei. A única coisa que sei é que não vou conseguir agradar a todos e a todas. Bom, muitos de vocês já me conhecem. Sabem que eu prefiro correr riscos ao invés de me manter calado. Portanto, aqui vai. Só pra manter a emoção da imprevisibilidade, ainda que sob o risco de ser xingado, deletado ou o pior: ignorado. FELIZ DIA DA MULHER.