domingo, 27 de fevereiro de 2022

Adeus, Idiotas

 Se você leu em algum lugar que Adeus, Idiotas se trata de uma comédia, aqui valem algumas ressalvas. A frase que dá nome ao título foi extraída de um trecho do vídeo que registra a declaração de suicídio de um dos protagonistas, num momento em que ele desconta sua raiva e tristeza com o mundo e com a sociedade. 

Claro, existem várias situações tragicômicas. Cabeçada na parede, sobrenome pronunciado incorretamente, prateleira despencando. Algo trazido das comédias de erros e dos vaudeville teatrais. Mas o longa de Albert Dupontel vai além. Debruça com mais intensidade nas improváveis relações humanas criadas a partir de situações ao mesmo tempo tristes e insólitas. Tudo gira em torno de uma cabeleireira que descobre ter adquirido uma doença autoimune. Com poucos meses de vida, decide ir atrás de seu filho que não vê desde que engravidou, aos 15 anos, e o deixou para adoção. Encontra por acaso numa repartição pública um técnico em sistemas de segurança, dispensado pelo seu chefe de liderar o projeto, perseguido pela polícia por acharem que se trata de um terrorista. Junta-se a eles um cego encarregado de cuidar dos arquivos do governo.

É nessa jornada coletiva de buscas particulares que Adeus, Idiotas encontra espaço para diluir suas amargas ironias. O simples acaso cede lugar a um registro contundente da superlativização de fracassos individuais. O filme coloca uma lente de aumento no cidadão comum, invisível, e extrai dele a potência da transformação. 


Passagem Secreta

Difícil imaginar como Passagem Secreta possa ter sido bem recebido no último Festival de Tiradentes. Talvez tenha sido apenas uma enganosa estratégia de marketing para sua divulgação. O evento costuma abraçar trabalhos mais autorais, com amplo espaço para experimentalismos e exercícios estéticos fora do convencional. Não é o caso deste longa dirigido por Rodrigo Grota, que percorre um caminho bem didático em sua narrativa. Uma escolha perigosa, justamente por tentar alcançar terrenos mais seguros.

A história fala de Alice, que precisou se mudar para uma cidade pequena e, ao chegar, começa a morar com o tio. Lá, acaba fazendo um novo grupo de amigos e encontra um portal mágico em um parque de diversões. Ao invadir o parque em uma brincadeira para salvar um colega, Alice descobre segredos sobre sua identidade.

Embora tenha como inspiração o universo imaginativo, Passagem Secreta carece de soluções criativas. Tudo é muito duro, esquemático, gerando pouca graça e interesse. Fica muito clara a dificuldade em dirigir o elenco mirim, que olha para a câmera com suas frases decoradas como se estivesse num teste de comercial para a TV. Derivações de Crônicas de Nárnia e Castelo Rá Rim Bum podem até ser bem-vindas, mas é preciso tomar um certo cuidado. Passagem Secreta prova que existe um grande abismo entre o roteiro bem intencionado e a realização de uma obra. Aqui, a sensação que fica é de uma cópia genérica de D.P.A.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Calem a boca

 São Paulo, 9 de fevereiro de 2022.

Repetindo: maior metrópole da América Latina, dia 9 do segundo mês do 21º ano do terceiro milênio. Brasil.

Entra para os trending topics um podcaster, do qual nunca ouvi falar, que, em seu programa de entrevistas, comenta sobre a necessidade de existência de um partido nazista no país. Pouco depois, se retratou. Pediu desculpas, alegando estar bêbado. Mas o estrago já estava feito.

O influencer em questão parecia se justificar rebatendo que, na forma, o programete não tinha grandes pretensões políticas ou acadêmicas. Aquele episódio foi, de acordo com suas palavras, fruto de uns idiotas falando bobagem. Como se fosse uma conversa de bar. Com esse clima "solto", de descontração. E você já sabe: em papo de bar, bebe-se. Pra caralho. Para o alvo deste assunto, o tom ébrio do colóquio informal poderia servir de salvo-conduto para o vale-tudo. Neste botequim familiar pode se falar o que quiser. Só que tem uma diferença: ao contrário do minúsculo reduto pé-pra-fora de azulejos brancos na parede, o podcast concentra milhares de ouvintes. E anunciantes que pagam caro para que suas marcas sejam ali expostas.

Talvez para Bruno Aiub, pivô dessa unânime discórdia, o Brasil esteja mesmo politicamente mal representado. É preciso que a legislação em vigor reconheça a legitimidade de um partido nazista. Não que ele seja. pelo amor dos meus filhinhos. Não que ele saia por aí matando judeus, roubando seus ouros e colocando as vítimas dentro de uma câmera de gás. De jeito nenhum. Ele apenas quis demonstrar que essa terra de ninguém precisa urgentemente dar vazão a vozes oriundas do inferno. Só assim teremos, de fato, uma nação plural. Um país composto por partidos e coligações políticas que representem, por exemplo, em absoluta legalidade, as castas milicianas. Ou os membros da Ku Klux Klan. A volta dos integralistas. Talvez, quem sabe, os líderes das seitas que promoveram mundo afora o suicídio coletivo. Sim, o Congresso Nacional carece de uma diversidade religiosa diante de sua maioria terrivelmente evangélica. É preciso trazer esses gurus do além para romper a hegemonia pouco salutar à democracia. Que o STF dê a eles o direito de pleitear um cargo aos poderes Legislativo e Executivo. Cabe à sociedade decidir, por livre arbítrio, se essas pústulas ambulantes são dignas e merecedoras de ocupar uma cadeira na Casa do Povo.

Por falar em guru, não me espanta nem um pouco o fato de que o Brasil desses desajustados medievais tenha decretado luto oficial em homenagem ao "pensador" que acreditava na Terra plana e na apologia ao comunismo nas letras das músicas dos Beatles. Faz todo sentido. Só mesmo essas ideias conspiratórias para regar a mentalidade de quem acredita que o genocídio parlamentar seja algo possível.

Volto a repetir, quantas vezes forem necessárias. Não se trata de opinião. De ponto de vista. De troca de ideias por meio de confronto. Não encaro como "tudo bem" um cidadão favorável ao fechamento do Congresso, embora ele mesmo não vá lá pessoalmente e atire bombas e fogos de artifício à instituição. Não aceito negacionistas se recusarem a tomar vacina, vestir máscara ou apresentar passaporte vacinal em prol de um suposto "direito de ir e vir". Não vejo como "normal" o indivíduo que corrobora com a proliferação de grupos de extermínio e de intolerância racial, mesmo que eles próprios não façam parte dessas seitas. Eles não são iguais a mim, apenas navegando em sentidos opostos. São inferiores, bastante inferiores.

Triste do país que se calou para as mais de 600 mil mortes. Que trouxe de volta o conservadorismo e o retrocesso em praticamente todas as suas áreas e competências. Que acabou de aprovar uma redução drástica no teto de patrocínio da Lei Rouanet. Um país que, entretanto, deu voz a esses energúmenos que pipocam por aí nas suas bolhas sociais. Não é à toa que o digital influencer carregue o apelido de um regime de governo pra lá de obsoleto. Ele, assim como os demais ratos de esgoto que emergiram nesse lodaçal de ideias estapafúrdias, merecem somente cair no esquecimento. A gente não precisa desse Absolutismo ideológico.