terça-feira, 21 de abril de 2020

No RH


- Cassandra? Prazer, Elisabete. Sou a gestora de RH aqui da W Corp. Aceita um café, uma água?
- Oi, tudo bem? Não, obrigada.
- Então, eu tenho boas notícias. Você foi aprovada na primeira fase do processo seletivo.
- Puxa, que ótimo!
- Super, né? A gente ainda tá acertando uns detalhes, logo mais eu te envio um invite pra participar da segunda fase, que vai ser uma dinâmica de grupo. Mas antes disso, eu precisava fazer umas perguntinhas, pode ser?
- Sim, claro!
- Então, Cassandra... como você pode ver, o Brasil está passando por um novo momento. Dentro dessa nova realidade, a gente precisou adequar a estrutura aqui do departamento e acrescentamos algumas questões para verificar se o candidato se encaixa no perfil da empresa, dentro desse panorama. Lembrando que não existe resposta certa nem resposta errada. É mais pra conhecer seu perfil mesmo. Tudo bem?
- Opa, vamos lá!
- Cassandra, você já contraiu o COVID-19?
- Não!
- Tem algum parente que foi contagiado pelo novo coronavírus?
- Também não.
- Se por acaso a W Corp recebesse um lote de testes rápidos para aplicar a seus colaboradores, você se submeteria a fazer o teste?
- Perfeitamente!
- E se por ventura a W Corp precisasse ajustar seu sistema de trabalho para essa nova realidade, como medidas de adoção de férias coletivas, home office ou redução da jornada de trabalho, você aceitaria?
- Sim... fazer o que, né?
- (Anotando)... só mais um momentinho... próxima pergunta: você é a favor do AI-5?
- Oi??
- Você é contra ou a favor da volta do Ato Institucional número 5, que entre outras coisas implementa a censura e o controle dos órgãos de imprensa?
- Claro que não!
- (Balbuciando enquanto anota) postura radical... OK... próxima pergunta: você é contra ou a favor do fechamento do Congresso Nacional, mesmo não tendo votado nos candidatos que venceram as últimas eleições?
- Sério isso?
- É sim ou não. Lembrando, Cassandra... que no dia a dia aqui da empresa vão surgir situações novas a cada momento, e você vai precisar tomar decisões rápidas. Aqui o que menos tem é rotina.
- Tá... então eu sou contra!
- (Falando baixinho enquanto anota) comportamento agressivo... outra pergunta: você é contra ou a favor da intervenção militar?
- Absolutamente contra!
- (Sussurrando e anotando) OK... subversão patológica...
- Não, pera! Veja bem: eu sou contra o regime militar, mas sou a favor do Exército atuar em casos extremos.
- (Baixinho) Falta de clareza... OK... ah, aqui, outra pergunta: se o seu chefe ou superior imediato apresentasse algum sintoma do coronavírus, como tosse ou espirro, mesmo não sendo confirmada a doença, e ele viesse te cumprimentar após tossir ou esfregar o nariz esticando a mão pra você, o que você faria?
- Eu nem chegaria perto!
- (Baixinho) Insubordinação... OK...
- Não, quer dizer... errr... depende do contexto, né?
- (Baixinho) Falta de posicionamento...
- Não! O que eu quis dizer é que eu seguiria as normas... mostraria o cotovelo!
- (Falando baixinho cada sílaba que anota) In-ci-ta-ção à... vi-o-lên...
- Um momentinho, Elisabete. Isso faz parte do processo? Eu estudei, fiz o teste, passei, vou pra segunda fase... mas essas questões de cunho ideológico... meio desnecessário...
- Dona Cassandra, eu vou explicar. Nossa avaliação segue rigorosamente o protocolo e os padrões dos testes aplicados pelas maiores empresas do mundo inteiro. Google, Oracle, Unilever, General Foods... se a senhora não está contente, tudo bem. Tem mais de 400 pessoas que se candidataram a essa vaga. Inclusive gente com Doutorado em Oxford. A senhora é que sabe. Lá fora tem gente fazendo uma enorme fila pra ganhar os 600 reais do Governo. Aqui a gente testa nossos candidatos até mesmo em situações-limite. Pra extrair o melhor de cada um. Somos uma empresa séria. Ou a senhora acha que conseguiria o emprego imitando um gato?
- (Conformada) Não, tá bom... tá certo... vamos lá...
- Última pergunta: você já deu o furo?


sábado, 18 de abril de 2020

Não existe grupo de risco


Falar em isolamento vertical a essa altura do campeonato é como pedir a volta do Fusca. Talvez essa estratégia fizesse algum sentido lá no comecinho do ano, na mesma época em que o dr. Drauzio Varella postou um vídeo falando que o coronavírus é uma gripezinha. Hoje, tendo em vista as estatísticas alarmantes e a experiência da Europa, principalmente Itália e Espanha, é provado pela ciência precisa do A + B que essa medida, ultrapassada e démodé, não é eficaz na atual conjuntura catastrófica.

Longe de mim querer ser mais um dos milhares de especialistas que espocam por aí nas redes sociais e nos canais de entretenimento. Mas existem argumentos, amplamente divulgados, que refutam esse tipo de confinamento tão frágil quanto o porte físico do novo Ministro da Saúde. Os defensores incondicionais desse tipo de isolamento pela metade acreditam que é suficiente deixar os velhinhos em casa, fazendo tricô, conversando com seus gatinhos e jogando bingo on-line com seus amigos, enquanto os fortões e destemidos possam sair às ruas, enfrentar o caos e abrir suas portas do comércio para salvar a Economia. Pois bem. Em primeiro lugar, é bem provável mesmo que esses heróis da sociedade, desbravadores do perigo iminente, não peguem o COVID-19. Ou, se pegarem, o máximo que vai acontecer é uma tosse ou um espirro. Uma gripezinha, conforme creem eles. O problema é que existem os tais transmissores assintomáticos, que contraem a doença, não manifestam suas características e são o carro-forte do vírus para que se propague pelo resto do ambiente. Esses hercúleos salvadores da pátria podem até não morrer. Mas certamente carregam consigo a bomba-relógio capaz de matar.

Outra questão é que, analisadas minuciosamente as estatísticas, já não dá mais pra se falar em grupo de risco. No Brasil, 25% dos óbitos foram de pessoas abaixo de 60 anos, sem doenças pré-existentes ou sem apresentar um quadro de comorbidades. Ou seja, de cada quatro indivíduos que bateram as botas, um deles é tão jovem, saudável e resistente quanto eu. Ou quanto você.

O isolamento total e irrestrito não serve apenas para acabar com essa discriminação de quem deve ou não deve ficar em casa. Ele é a maneira mais eficiente, até agora conhecida, de contribuir com o tão falado achatamento da curva. Pelo conceito de “curva” entende-se que, mais cedo ou mais tarde, todos nós seremos contaminados pelo vírus. O que ele promove é fazer com que o sistema de saúde não fique sobrecarregado no momento de pico. Situação em toda a sociedade precise ser atendida ao mesmo tempo. E você já está careca de saber: não há leitos, não há médicos, não há medicamentos, muito menos equipamentos para fazer tudo ao mesmo tempo agora. Afastar você do ambiente social não significa, em última instância e numa perspectiva mais pessimista, te proteger do vírus. Significa que as autoridades médicas estão te dando o recado de que vão te atender sim, só que mais tarde. Portanto, falar em isolamento vertical, horizontal ou diagonal é uma discussão inócua. Não se trata de “quem”. Trata-se de “quando”.

Por isso, meu caro, antes de sair por aí pra fazer aquela caminhada gostosa na Praça Pôr do Sol, participar de carreatas na Av. Paulista, chamar os amigos para um churras, dar aquele abraço apertado no dono do Bar do Seu Zé, ir até a feira e apertar a mão da tia do tomate (junto com o tomate), ou simplesmente agir como se nada estivesse acontecendo, pense duas vezes. Controle sua ansiedade causada pelo ócio e pelas milhares de informações falsas das redes sociais. Talvez você saia mesmo incólume dessa pandemia. Torço muito. Talvez a cloroquina ou o vermífugo resolvam seu eventual problema. Talvez não. Existe uma probabilidade, mesmo que ínfima, de você ficar agonizando em sua casa porque não há mais leitos nem respiradores disponíveis para te salvar. E você pode, Deus me livre e me guarde, ficar com a sensação de se afogar a seco. Por mais de uma semana. Quem fala isso não sou eu, são as pessoas que se curaram da doença. E existe uma probabilidade, mais ínfima ainda, de você não estar vivo para ler meu próximo texto. Não há grupo de risco. Há situação de risco.


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Não é metáfora


Falar que demitir o Mandetta agora é como sair de um carro em movimento é fazer o mau uso da metáfora. Pois não se trata de uma metáfora. Trata-se de um eufemismo. A coisa é muito pior.

Nelson Teich assume o Ministério da Saúde no momento em que o Brasil ainda nem atingiu o pico do contágio do coronavírus. E já encontra pela frente todo tipo possível de problemas. O fundo emergencial foi zerado. Não há mais de onde tirar dinheiro. Todos os recursos se esgotaram. As reservas cambiais já estão comprometidas. Não há qualquer possibilidade de se recorrer ao FMI para pedir empréstimos, pois a fonte secou no mundo inteiro. Não há qualquer chance de se pensar em uma nova carga tributária; a população está desempregada e as empresas estão renegociando suas dívidas. Ou estão falindo. A única saída imaginável para sanar os gastos que vêm pela frente seria, como o Gabinete do Ódio mencionou, fabricar dinheiro. O que, dependendo da quantidade de papel-moeda fictícia a ser impresso, seria o pontapé inicial de uma hiperinflação. Isso num momento em não só a futura recessão global é dada como certa, mas alguns já até falam em depressão. As conseqüências econômicas da pandemia farão o crack de 1929 parecer um jogo de pôquer. Quanto mais se estica o período de quarentena, maior será a destruição da Economia. Isso é fato. Mas não há outra coisa a ser feita. Como se não bastasse, a construção de hospitais de campanha, o aumento do número de leitos, a importação de equipamentos atingiram seu nível máximo. Os profissionais de saúde estão trabalhando no seu limite. Todos os esforços para reduzir os efeitos do COVID-19 estão caminhando em velocidade máxima. Apenas para ficarmos no mesmo campo semântico da metáfora supracitada. Só que o máximo é pouco. Toda essa corrente em torno de um único objetivo mostra-se insuficiente para diminuir as estatísticas. O que vem por aí é ainda mais grave. Por enquanto, estamos ainda assistindo a um trailer. O filme de terror propriamente dito vai começar a ser exibido daqui a mais ou menos duas semanas.

Essa conta não bate. Nem em reais, nem em dólares. Os investimentos mundiais, realizados em escalas estratosféricas, já não servem mais para salvar vidas, apenas para diminuir o número de mortes. Para que os médicos, lá na frente, não tenham que escolher quem será desintubado na base do par ou ímpar. Como nenhum profeta poderia imaginar, estamos enfrentando um novo tipo de malthusianismo: enquanto a quantidade de remédios cresce em progressão aritmética, a quantidade de doentes cresce em progressão geométrica.

Esse é o quadro otimista que Nelson Teich tem pela frente. Ainda dá pra piorar. O novo ministro precisa equacionar a distribuição desses parcos recursos para todos os Estados afetados pela doença. Precisa acompanhar, segundo a segundo, as orientações da OMS, anunciadas na velocidade galopante de um locutor de jóquei. Precisa de resultados imediatos para poder dimensionar o tamanho do isolamento, tanto na questão do tempo quanto do espaço.

Como se não bastasse, o recém-contratado tem como chefe um lunático. Um líder de Estado que faz questão de contrariar e desobedecer a todas as recomendações da qualquer entidade idônea de saúde. Um ignóbil motivo de chacota na imprensa internacional. Considerado o pior presidente do mundo inteiro no combate ao novo coronavírus. O energúmeno está andando na contramão (apenas para manter a metáfora automobilística). Sai às ruas, cumprimentando populares depois de esfregar o nariz com as mãos, levando e trazendo o vírus como se estivesse brincando de passa-ou-repassa. Bolsonaro não está em campanha, mas age como se estivesse. Visita farmácias e padarias, sem ter uma palavra sequer pra dizer. Faz isso de pirraça. Apenas para provar para si mesmo a onipotência de seu físico de atleta. O Messias acha que é Deus.

Resta saber se, daqui pra frente, esse alinhamento, balanceamento e recauchutagem entre ministro e presidente é algo matematicamente possível. Porque o discurso do primeiro e a atitude do segundo são diametralmente contraditórios. Não, o Brasil não é um carro em movimento. É um carro desgovernado. Tentando subir a escalada do pico e ao mesmo tempo descendo a ladeira da Economia. Um veículo de segunda mão, sem freios e com a marcha à ré engatada.


quinta-feira, 9 de abril de 2020

A novela continua


- Alô, Flávia? É o Leandro, da Futuro Brasil Marketing de Conteúdo. Pode falar?
- Sim, sou eu. Pois não?
- Então, quem me indicou foi o Braz, grande brother meu. Parece que vocês trabalharam juntos na A2 Work. Seguinte, tô precisando de redator pra pegar um freela. Cê ta disponível?
- Sim, sim... dependendo das condições...
- A parada é bem maneira. A gente vai aproveitar esse momento coronavírus, essa parada toda, pra fazer uns informativos, conteúdo com dicas de prevenção, pílulas nas redes sociais. Topa?
- Então, vai depender da verba e do prazo.
- Prazo a gente negocia. É urgente, mas eu dou um jeito de segurar as pontas. Você NÃO precisa vir pra agência. É trabalho remoto, home Office mesmo.
- Sim, até porque, né? Quarentena. Ordem do governador.
- Beleza. Então, a gente ainda precisa ajustas uns lances, mas daria pra você adiantar um orçamento? São mais ou menos 20 peças. Coisa rápida, texto curtinho.
- Olha, se for coisa básica, que não precisa de muita pesquisa, meu valor é de 2 mil reais. Menos não posso fazer.
- Sei... OK... bom, vou falar com o pessoal aqui, qualquer coisa te retorno, OK?

(15 minutos depois...)
- Flávia? É o Leandro. Então, falei aqui com o diretor de criação, que falou com o gestor da área, que falou com o Financeiro, e a gente ta com um problema de verba, então teria que ser um pouco menos...
- Menos quanto?
- Me passaram 500 reais. Mas eu acho que consigo 600. É coisa boba, o Braz me falou que você tira de letra. Gente boníssima esse Braz.
- Bom, sei lá...
- Você não vai se arrepender. E esse é o primeiro job. Tem muita coisa pintando aqui na casa, se rolar você pega outros, aí a gente consegue negociar um valor maior. Esquema de parceria mesmo.
- OK. Vou confiar em você.
- Ótimo! Cê vai curtir. O cliente é legal, tem um trabalho bem maneiro na rua. É um lance meio educativo, dando um toque pras pessoas não saírem de casa, lavarem as mãos direitinho, essa parada toda. Pode atacar pelo lado emocional, fique à vontade. Um lance que pega na veia, sabe? Vou te passar por e-mail o briefing com tudo direitoinho. Se você puder me mandar amanhã, pelo menos a primeira parte pra gente começar a dar uma olhada antes de ir pra layout...

(No dia seguinte...)
- Alô, Flávia? Graaande Flávia. É o Leandro. Então recebemos seu e-mail. Show! Sensacional! O pessoal aqui AMOU seu texto. Única coisa: esse lance aqui. A palavra coronavírus. Eles querem que tira. Essa coisa de falar de doença, pode ficar meio triste, meio pesado, pra baixo...
- Ué, mas o job NÃO É sobre coronavírus?
- Sim, mas eles preferem ir prum caminho mais sutil. Teria como você tentar uma segunda opção?

(2 horas depois...)
- Flávia? Leandro. Então, o pessoal curtiu essa nova proposta. Só tem uma coisa: quando você fala “fica em casa”. Acharam meio impositivo, autoritário.
- Cara... é o que você falou ONTEM por telefone. É o que tá no briefing!
- Esquece ontem, esquece briefing. A diretoria entrou na parada desse job e eles estão fazendo um novo direcionamento. Imagina só o cara lendo isso e alguém mandando ele ficar em casa. Fere com a liberdade de escolha. Com o direito de ir e vir. E não é toda cidade que vai ficar em quarentena. Essa campanha é nível nacional. Quebra essa, vai...

(1 hora depois...)
- Flávia? Leandro de novo kkkk. Então, acho que estamos no caminho. Mais uma coisa: quando você fala em álcool gel. A agência aqui não pega conta de bebidas alcoólicas. Um dos sócios é evangélico, o outro é muçulmano, então já viu... a gente não pode EM HIPÓTESE ALGUMA mencionar álcool, cerveja ou qualquer outra bebida no nosso material de comunicação. Tenta achar um sinônimo.
- Difícil, viu...
- É, eu sei que é difícil. Essa época de isolamento não ta fácil pra ninguém. Mas vai passar. E depois que passar esse corre a gente quem sabe podia marcar de bater um papo, ir prum barzinho, trocar uma idéia...
- Isso é uma cantada?
- Não, de jeito nenhum. Para com isso! Mais pra gente se conhecer, pra eu ver um pouco do seu material, seu portifa, por onde você já trabalhou, se manja de redes sociais... puro networking, nada mais!

(15 dias depois...)
- Alô, Leandro? É a Flávia redatora. Então, queria saber sobre o pagamento daquele freela.
- Graaande Flávia! Não morre mais, ia te ligar AGORA! Então, passei sua nota pro Financeiro, mas eles falaram que não podem aceitar do jeito que tá. Eles são meio chatinhos mesmo. Quando você fala “serviços prestados”, precisa especificar o tipo de trabalho, a quantidade de peças criadas, a quantidade de laudas, o nome do cliente e o nome do projeto. Senão eles não aceitam. Teria como fazer uma carta de correção e me mandar? Aí eu encaminho IMEDIATAMENTE pra eles.

(1 mês depois...)
- Alô, Leandro? Flávia. E aí?
- Flavinha, Flavinha... tudo bem contigo? Comigo, maravilhosamente bem. Melhor agora. Mas me diga: e aí o quê?
- O PAGAMENTO!
- Ah, sim... veja bem... encaminhei sua nota pro Vinícius... grande Vinicão... que deu uma olhada, aprovou e pá... aí ele enviou pro chefe dele, o Robson, que é o pica do Financeiro... agora tá na mão dele...

(2 meses depois...)
- Leandro? Flávia...
- “No momento todos os ramais estão ocupados. Por favor, aguarde um de nossos atendentes...” kkkk te peguei! Flavinha coração, diga lá...
- Coração o cacete! Quero saber da minha grana.
- Cê num vai acreditar. Eles decidiram que NÃO Vão te pagar. O job foi CANCELADO! Kkkk A gente foi mandando as versões, os caminhos criativos, era um tal de aprova-reprova, daí a pandemia passou! E o cliente decidiu cancelar a porra toda. Brasileiro não é sério mesmo... mas vem cá: tô aqui com um job de influenza. Te interessa?


segunda-feira, 6 de abril de 2020

Muita teoria e pouca prática


Durante esse estranho período que mistura ócio e desespero, alguns especialistas recomendam que a gente não pare de colocar em prática hábitos salutares. Já que ir pra academia virou uma questão de risco, onde você pode encontrar inimigos muito mais fortes, poderosos e resistentes do que seu marombado instrutor, a orientação é pra usar a criatividade e fazer exercícios físicos em casa. Afastar os móveis da sala e fazer umas flexões de braço ou alongamento, por exemplo. OK, entendi a proposta. De boas intenções, o Inferno ta cheio. Só que o médico de telejornais não tem noção da dificuldade que é esse tipo de isolamento de mobílias. No caso específico, em que minha residência seja a questão. Aqui é um acúmulo de tranqueira. A tal nível de deixar um coreano assustado. Só o fato de eu arrastar um pouco a mesa de centro, puxar pro lado as cadeiras e retirar o que tem em cima delas JÁ É o exercício. Sábado passado tentei fazer uma faxina na sala. Meio que na onda do povo que anda falando pra gente dispensar a diarista e fazermos nós mesmos a limpeza. Aliás, quem vem dando esse tipo de dica são os mais preguiçosos, já reparou? Mas enfim, uni o útil ao desagradável. Durante a tarefa, meu convívio com a lordose foi tão intenso que acabei adicionando ela no meu Facebook. Primeiro precisei pegar o aspirador de pó. Um trambolhão que estava se desmontando todo. Parecia que foi fabricado pela Lego. Acho que minha mãe deve ter comprado numa promoção. Da Mesbla. Ou da Arapuã, talvez. Depois de reconstituir o Frankenstein, tirei o pó debaixo dos tapetes, dos móveis e de um pufe. Achei debaixo dele um aparelho de telefone fixo da época do Plano Cruzado.

Outra prática que os especialistas nos recomendam é manter uma alimentação saudável e equilibrada. Falar é fácil. Para essas apresentadoras dos programas vespertinos de TV, casadas com donos de startup ou com o próprio dono da TV onde ela apresenta o programa, é bem tranqüilo pedir pro piloto do helicóptero dar um pulinho no supermercado e comprar quinoa. Aliás, jamais poderia imaginar que um dia voltaria a assistir a programas à tarde em TV aberta. A última vez que liguei o aparelho às 3 da tarde estava passando Lagoa Azul. Isso depois do Miguel Falabella juntar as mãos e fazer o sinal da oração. Aí vêm essas recauchutadas me mandando comer brócolis. Aqui é clima de guerra, comadre. A comida mais saudável que tem na despensa é um pacote de Ruffles. Salsicha é que nem cocô do Bolsonaro: dia sim, dia não. Tô deixando pra comer o Miojo sabor galinha caipira na ceia de Páscoa. Se é que a Páscoa não vai ser adiada. Que mané cenoura e beterraba, minha filha. Se eu sair de casa, capaz de todo o bando de vírus atrás do poste perceber minha movimentação e me atacar. Ou então, corro o risco de ser atropelado. Pelo único carro que vai passar na rua durante o dia inteiro. Prefiro ficar recluso, eu e minha caixa de Bis. Outro dia achei uma lata de atum. O invólucro metálico estava bem estufado. Parecia camisa de gordo quando sai de um rodízio.  Desconfio que quem estava morando na lata nem eram mais os peixes. Acho que aquela embalagem virou um albergue de botulismo. Sei lá. Fui procurar a data de validade. Venceu no dia do impeachment da Dilma. Abri a lata. Até o gato da vizinha teve ânsia de vômito. Ontem fui abrir a geladeira. Só tinha água num jarro de vidro da minha avó, copo com um fundinho de requeijão e pilha. Quase comi a pilha.

Se a prática anda bem escassa, já não se pode dizer o mesmo da teoria. Elas pululam nas redes sociais igual às pulgas no colchão do meu quarto. É uma mais bizarra que a outra. Tem gente acreditando que é coisa de alienígena, que usou os terráqueos como para pesquisas científicas. Outros acham que é coisa do Satanás. Grande parte dessas teorias culpa os chineses por esse pandemônio. Umas dizem que o corona é cria de laboratório, e que essa nova espécie seria levada aos Estados Unidos pra disseminar a população inimiga. Outras falam que é pra valorizar as ações da soja local no mercado mundial. Ou para estimular a economia interna, como foi o caso da construção de hospitais em tempo recorde. Uns dizem que o desmoronamento de um hotel que servia de abrigo para os infectados foi uma ação orquestrada pelo governo. Tem muita, mas muita gente relacionando o vírus aos hábitos alimentares do povo mandarim. Que o fato de eles comerem animais, digamos, exóticos, fez com que a doença se alastrasse pelo mundo. Não entendi direito a associação. Até ontem você aí comia yakissoba feito na rua e tava tudo certo. Ou vai me dizer que foi hipnotizado pelo cheiro de fritura do óleo de gergelim? Acho um pouco complicado propagar hipóteses precipitadas. Já tivemos um exemplo da família real, um dos três patetas filhos do presidente, que fez uma declaração que deixou as relações entre os países bem estremecidas. Sem provas, fica difícil validar esses fluxos paranóicos de pensamento. A Fox News andou divulgando vídeos que comprovam uma relação de causa e efeito entre a doença e os chineses. Mas também, né? Fox News. Foram eles que anunciaram o teste positivo do Bolsonaro. Eles são a parcela da mídia mais reacionária do mundo. Pra eles, Paulo Maluf é um bolchevique. Eu confio mais nas notícias narradas pelo Marcelo Adnet do que qualquer noticiário dessa emissora. Vamos aguardar um pouco mais. Em casa. Trancafiados em nossas loucuras.


sábado, 4 de abril de 2020

Bom Brasil X mau Brasil

Dias atrás, relatei que o entregador de gás não adotava NENHUMA medida preventiva em relação ao coronavírus. Nem entrei no mérito do valor cobrado pelo botijão, pois minha mãe falou que costuma pagar mais caro do que o valor estipulado pelo governo, em qualquer época do ano, independentemente da situação. Mas andei vendo e ouvindo reclamações sobre o abastecimento. A demanda aumentou, é óbvio. Ficando em casa, as pessoas cozinham mais. Um burocrata da empresa esclareceu gaguejando no rádio que houve um rompimento de um duto, o que causou a falta da matéria-prima. Mas acho que o buraco é mais embaixo. Em recente reportagem do SP TV (sim, nessa época de quarentena ando vendo o César Tralli mais do que o Vin Diesel), a equipe foi até um depósito na Zona Leste e averiguou que algumas pessoas, se passando por funcionários das distribuidoras, faziam a rapa no estoque e lotavam suas caminhonetes de botijão, vendendo o produto por aí cerca de 50% a mais do valor. Inclusive com veículos clonados e falsos adesivos colados na lataria. Três deles foram autuados e presos. São os golpistas, oportunistas, gatunos. Aproveitam-se de uma situação de escassez no mercado e, pela lei da oferta e da procura, querem sair ganhando ao invés de se sensibilizaram com a calamidade pública que reina sobre o mundo. O entregador que veio aqui na rua era desconhecido. Não era o que costuma aparecer. Simplesmente estacionou seu carro e começou a vender, sem parecer ter atendido a algum chamado telefônico de entrega. É, muito provavelmente, um desses aproveitadores, ou talvez um subalterno dessa gangue de estelionatários. Entrei no site da Liquigás pra fazer a reclamação, somente no que diz respeito aos procedimentos higiênicos do entregador. Ao clicar no Fale Conosco, o site automaticamente me redirecionou para a página da Ouvidoria Petrobras. Digitei a reclamação. Ontem recebi um e-mail automático dizendo que a situação relatada nada tem a ver com Petrobras, mas sim com a Liquigás. Esse é o mau Brasil.

Agora vamos falar do bom Brasil. Semana passada, fui ao Pão de Açúcar. Sim, eu sei. Quebrei a quarentena. Mas era inevitável: ou eu descanso ou eu morro de fome. O estoque de comida estava quase acabando. Poderia ter usado o delivery. Mas a fila de espera é absurda, em alguns casos o prazo de entrega é de 2 dias, o frete é mais absurdo ainda, podendo passar de R$ 20, e vizinhos me contaram que tem vindo bastante produto errado ou coisa faltando. Prefiro ver o que estou comprando. Se a lata está amassada, se o macarrão está quebrado, se o item zero açúcar é diferente do item zero adição de açúcar. Enfim, esse sou eu. Fui lá. O clima, de fato, era de começo de guerra. Não havia muitas opções de escolha. Algumas prateleiras relativamente vazias. Outras, com apenas um único tipo de produto, de uma única marca. Em alguns corredores, avisos limitando a quantidade de itens permitidos por consumidor. E quase nenhuma promoção. Comprei não exatamente o que queria, mas o que foi possível diante do presságio de fim de mundo. Saí de lá um pouco preocupado, mas ao mesmo tempo aliviado ao perceber que, não fossem as medidas do governo do Estado e todos os profissionais envolvidos nessa logística, o desabastecimento seria ainda maior. Ontem, voltei ao supermercado. Tive que. Já no estacionamento, encontrei uma fila de quase 20 pessoas. Estavam controlando e limitando a quantidade de clientes no interior da loja. Diante dessa cena apocalíptica,me sentindo o protagonista de Walking Dead, Mas, quando adentrei o estabelecimento, me lembrei de como era bom fazer compras em supermercado vazio. Me senti em fevereiro, ou seja, 589 dias atrás. Tudo muito fluido, organizado. Prateleiras cheias, com produtos de várias marcas, tipos e sabores. Nenhum sinal de alerta sobre o limite de peças por cliente. E o melhor: começaram a voltar as promoções. Coloquei no carrinho a quantidade de mercadorias que achei necessária, nem tão abusiva nem tão controlada, sem ficar com a consciência pesada ou me sentir culpado por desmunir o próximo da fila. E tudo isso dentro dos padrões recomendados: adesivos de chão marcando a distância mínima entre pessoas, álcool gel na entrada e na saída, a maioria dos atendentes de máscara, plástico-filme na maquininha de cartão.

Não quero fazer apologias. Dependendo da rede, da cidade, da região, do dia ou do horário de visita, a experiência pode ser totalmente diferente. Mas é diante de uma situação de crise que, trocadilhos à parte, caem as máscaras. E a gente consegue perceber melhor um pouco de cada um. Tem a empresa que fornece álcool gel aos funcionários. E tem a que não está nem aí. Tem o golpista que aproveita o pânico para enviar links falsos e maliciosos em grupos de WhatsApp. E tem a mobilização coletiva que impede o fechamento de um cinema de rua. Tem a tiazinha desempregada que faz quentinha pra morador de rua. E tem o tiozão do Madero que demite 600 numa tacada só. Tem o artista que faz seu show da sacada do apartamento. E tem o bolsominion que faz carreata pelo fim do isolamento. Tem os frades franciscanos que coletam e distribuem alimentos a comunidades. E tem os evangélicos que organizam o dia do jejum nacional. Tem o cidadão que se cuida, se protege e se confina. E tem a molecadinha que fica na rua, tomando cerveja e fazendo seu churrasco, aglomerada a outra molecadinha, como se nada estivesse acontecendo e tudo isso fosse apenas um feriadão. Tem as empresas que flexibilizam contratos de trabalho e renegociam dívidas de encargos para evitar um mal maior. E tem o véio da Havan.

Passada a pandemia e o pandemônio, teremos tanto a clareza e lucidez para enxergar o que de fato divide o país, quanto a cegueira para nos ofuscar sobre possíveis saídas. Mais do que os efeitos sobre a Economia, veremos os efeitos sobre as pessoas. Não de maneira simplista e maniqueísta. Ninguém é bom ou mau. Seremos solidários e egoístas na mesma proporção. Talvez nos tornemos veganos, mas continuaremos olhando com ódio o cara que coloca 2 pacotes de rolos de papel higiênico no carrinho. Ou, talvez, passaremos a olhar a tudo isso com total indiferença. Como se as ruas vazias fossem apenas o reflexo de uma Copa do Mundo. Em maio, junho, quiçá outubro, não teremos apenas um Brasil com fronteiras delimitando os bons e os maus. Teremos um Brasil novo. Para o bem e para o mal.