Definitivamente o Brasil é um país barroco. Reúne em si características
tão contrárias e tão distantes e, por incrível que pareça, é essa a distância
que compõe seu conjunto. Do clima muito quente ao muito frio. Da fala cantada ao
jeito rápido de comer letras no final da frase. Esse país é tão diferente por
dentro, que parece que é justamente essa síntese de oposições que melhor o
define. Durante a pandemia, essa dualidade se acentuou ainda mais. Acompanhamos
por meses e meses as filas nos bancos pelo auxílio emergencial. As dificuldades
burocráticas implementadas pelo Governo para se ter direito ao saque mensal de
3 notas de R$ 200. E soubemos, recentemente, que os bilionários se tornaram
ainda mais bilionários. Sim, durante a quarentena. Ricos cada vez mais ricos,
na saúde e na doença. Moradores de rua morrendo de fome porque as doações
acabaram. E os porta-vozes do Facebook compartilhando receitas de pão, ou
reclamando que não param de engordar. Enquanto uns se deslocam em trens lotados,
outros postam suas lives com um fundo de tela de fazer inveja à Biblioteca Mário
de Andrade. Cabines de desinfecção e leitura infravermelha da temperatura
corpórea no país campeão dos baixos índices de saneamento básico. Bastou um
trimestre para entrarmos na pior recessão da história, com uma população
dividida entre as palafitas e a Netflix.
Na política, o Brasil é igualmente barroco. Tão esquerdista
e tão extrema-direita, sem a necessidade de um Muro de Berlim para separá-lo.
É, em seu paradoxo, o convívio bipolar dos polarizados que torna o Brasil um
país possível. Já não há mais espaço para se discutir a presença do Estado na
Economia um pouco mais pra lá ou pra cá. Ou se defende os Estados Unidos, ou a
China. E ponto final.
Até a Medicina entrou como pano de fundo para essa cisão
ideológica. Fomos nos excluindo de nossos antigos grupos para dar lugar à
criação de novos guetos. Afinal, estamos em guerra. De um lado do front, os
cloroquiners. Do outro, os isolados aguardando a chagada da vacina, com a pouca
paciência que lhe resta.
Nesse sentido, o Brasil só se faz cada vez mais transparente
em suas contradições. Mesmo que se orgulhe da redução progressiva dos
investimentos nas áreas técnicas da saúde, da pesquisa e do conhecimento,
conseguiu num esforço hercúleo entrar na reta final para o ranking dos
melhores. Em parceria com um laboratório chinês e alguns pesquisadores do mundo
inteiro, vem desenvolvendo aquilo que daqui a uns meses pode ser considerado um
milagre. É o Brasil brasileiro, pioneiro, líder, ainda que em sua ínfima
minoria. Porque, em sua maioria absoluta, reina o Brasil que acredita em outro
tipo de milagre. Na terra do em se plantando tudo dá, andam de mãos dadas a
ciência e a ignorância. As escolas permanecem fechadas; já os templos
religiosos, não. O número de ávidos por saber, que cresce em progressão
aritmética, jamais vai conseguir dar conta de se igualar ao número geometricamente
progressivo de obscurantistas, negacionistas, terraplanistas, antivacinistas.
Meu maior medo com a eleição do Bolsonaro era ver um país
voltar atrás 40 anos. Errei feio. Nossa pátria amada retrocedeu 400 anos. De
volta ao passado, fomos parar na Idade Média, época do surgimento do citado
neoclassicismo propriamente dito. Aqui de onde estou só vejo trevas. Queima às
bruxas e paulada nos médicos e jornalistas. Estão querendo curar a nova Peste
Negra com vermífugo. Curandeiros foram recebidos no Palácio, com toda a pompa e
circunstância, para divulgar suas receitas caseiras de chá de alho. E, mais
recentemente, tapando os olhos para todo e qualquer relatório científico,
estenderam o tapete vermelho para os teóricos da aplicação de ozônio no ânus.
Ontem o Brasil registrou a triste marca recorde de 100 mil
mortos por covid-19. Mas aqui é terra de sol e chuva, meu caro. Nem deu tempo
de ouvir o silêncio do luto. Logo vieram os fogos de artifício para abafar a
tristeza que só alguns sentem e percebem: o Palmeiras foi campeão.
Também ontem o país perdeu o publicitário Ênio Mainardi. Amado
e odiado na mesma proporção. Alguns profissionais do mercado o consideram um
mestre da Propaganda, que deixou um rico e valioso legado e campanhas
históricas, como por exemplo a da Tostines (“é fresquinho porque vende mais ou
vende mais porque é fresquinho”, pra quem não se recorda). Contudo, essa
maestria toda também será lembrada por suas polêmicas. Mainardi deixava um
cachorro solto em sua agência. Juntava sua equipe numa sala vestido somente de
cueca. Fazia reuniões com o cliente e colocava um revólver sobre a mesa. Quando
entrei na faculdade, Mainardi era uma espécie de inspiração. Porém, anos mais
tarde, vi um debate no auditório dessa mesma universidade em que ele foi
vaiado. Ele era isso mesmo: a faísca que se soltava dessa junção de opostos. Construiu
sua sólida carreira numa das profissões que mais exigem a subversão criativa.
Entretanto, passou seus últimos tempos defendendo ideias mais ou menos alinhadas
ao conservadorismo do atual governo. Dizem por aí que também minimizou os
efeitos da pandemia, concordando com o déspota genocida que tudo não passa de
um exagero. Morreu de coronavírus, só pra deixar o assunto ainda mais barroco.