sábado, 29 de agosto de 2020

País gramatical

 

Brasil. Terra de muitas orações e pouca sabedoria. Sujeitos que roubam, que matam, que lavam dinheiro em álcool gel e são afastados de seus cargos. Gastam o verbo em campanhas – e gastam a verba onde não deviam quando são eleitos. Desmatam as nossas florestas, mas as provas são inexistentes e os locais, indeterminados. Agentes subordinados que racham seus salários para sustentar seus partidos, enquanto seus chefes racham o bico. Presidente diminutivo que governa em primeira pessoa do singular, no modo imperativo, cercado de adjuntos adnominais sem valor sintático. Usa o pronome possessivo para se perpetuar. Vontade de tacar um objeto direto na boca de quem pergunta. Ministra que fala por metáforas, ministro que enxuga hipérboles. Equipe dos predicados mais sórdidos. Estatísticas pospostas, criando a silepse perfeita de uma dor aguda e uma situação grave. Denúncias de verbos irregulares. Decretos à revelia, com crase e com crise. Cheques pronominais depositados para a esposa. Verbos de ligação que conectam um esquema oblíquo entre uma família, a milícia e as falsas notícias. Planos de governo no modo gerúndio e o saudosismo no pretérito mais que perfeito de uma época das forças ocultas. A população agoniza na voz passiva. A corrupção deveria ser transitiva, mas não é. O país do futuro do presente é este, com todas as regalias garantidas pelos artigos definidos da lei.

 

domingo, 9 de agosto de 2020

Antítese

Definitivamente o Brasil é um país barroco. Reúne em si características tão contrárias e tão distantes e, por incrível que pareça, é essa a distância que compõe seu conjunto. Do clima muito quente ao muito frio. Da fala cantada ao jeito rápido de comer letras no final da frase. Esse país é tão diferente por dentro, que parece que é justamente essa síntese de oposições que melhor o define. Durante a pandemia, essa dualidade se acentuou ainda mais. Acompanhamos por meses e meses as filas nos bancos pelo auxílio emergencial. As dificuldades burocráticas implementadas pelo Governo para se ter direito ao saque mensal de 3 notas de R$ 200. E soubemos, recentemente, que os bilionários se tornaram ainda mais bilionários. Sim, durante a quarentena. Ricos cada vez mais ricos, na saúde e na doença. Moradores de rua morrendo de fome porque as doações acabaram. E os porta-vozes do Facebook compartilhando receitas de pão, ou reclamando que não param de engordar. Enquanto uns se deslocam em trens lotados, outros postam suas lives com um fundo de tela de fazer inveja à Biblioteca Mário de Andrade. Cabines de desinfecção e leitura infravermelha da temperatura corpórea no país campeão dos baixos índices de saneamento básico. Bastou um trimestre para entrarmos na pior recessão da história, com uma população dividida entre as palafitas e a Netflix.

Na política, o Brasil é igualmente barroco. Tão esquerdista e tão extrema-direita, sem a necessidade de um Muro de Berlim para separá-lo. É, em seu paradoxo, o convívio bipolar dos polarizados que torna o Brasil um país possível. Já não há mais espaço para se discutir a presença do Estado na Economia um pouco mais pra lá ou pra cá. Ou se defende os Estados Unidos, ou a China. E ponto final.

Até a Medicina entrou como pano de fundo para essa cisão ideológica. Fomos nos excluindo de nossos antigos grupos para dar lugar à criação de novos guetos. Afinal, estamos em guerra. De um lado do front, os cloroquiners. Do outro, os isolados aguardando a chagada da vacina, com a pouca paciência que lhe resta.

Nesse sentido, o Brasil só se faz cada vez mais transparente em suas contradições. Mesmo que se orgulhe da redução progressiva dos investimentos nas áreas técnicas da saúde, da pesquisa e do conhecimento, conseguiu num esforço hercúleo entrar na reta final para o ranking dos melhores. Em parceria com um laboratório chinês e alguns pesquisadores do mundo inteiro, vem desenvolvendo aquilo que daqui a uns meses pode ser considerado um milagre. É o Brasil brasileiro, pioneiro, líder, ainda que em sua ínfima minoria. Porque, em sua maioria absoluta, reina o Brasil que acredita em outro tipo de milagre. Na terra do em se plantando tudo dá, andam de mãos dadas a ciência e a ignorância. As escolas permanecem fechadas; já os templos religiosos, não. O número de ávidos por saber, que cresce em progressão aritmética, jamais vai conseguir dar conta de se igualar ao número geometricamente progressivo de obscurantistas, negacionistas, terraplanistas, antivacinistas.

Meu maior medo com a eleição do Bolsonaro era ver um país voltar atrás 40 anos. Errei feio. Nossa pátria amada retrocedeu 400 anos. De volta ao passado, fomos parar na Idade Média, época do surgimento do citado neoclassicismo propriamente dito. Aqui de onde estou só vejo trevas. Queima às bruxas e paulada nos médicos e jornalistas. Estão querendo curar a nova Peste Negra com vermífugo. Curandeiros foram recebidos no Palácio, com toda a pompa e circunstância, para divulgar suas receitas caseiras de chá de alho. E, mais recentemente, tapando os olhos para todo e qualquer relatório científico, estenderam o tapete vermelho para os teóricos da aplicação de ozônio no ânus.

Ontem o Brasil registrou a triste marca recorde de 100 mil mortos por covid-19. Mas aqui é terra de sol e chuva, meu caro. Nem deu tempo de ouvir o silêncio do luto. Logo vieram os fogos de artifício para abafar a tristeza que só alguns sentem e percebem: o Palmeiras foi campeão.

Também ontem o país perdeu o publicitário Ênio Mainardi. Amado e odiado na mesma proporção. Alguns profissionais do mercado o consideram um mestre da Propaganda, que deixou um rico e valioso legado e campanhas históricas, como por exemplo a da Tostines (“é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho”, pra quem não se recorda). Contudo, essa maestria toda também será lembrada por suas polêmicas. Mainardi deixava um cachorro solto em sua agência. Juntava sua equipe numa sala vestido somente de cueca. Fazia reuniões com o cliente e colocava um revólver sobre a mesa. Quando entrei na faculdade, Mainardi era uma espécie de inspiração. Porém, anos mais tarde, vi um debate no auditório dessa mesma universidade em que ele foi vaiado. Ele era isso mesmo: a faísca que se soltava dessa junção de opostos. Construiu sua sólida carreira numa das profissões que mais exigem a subversão criativa. Entretanto, passou seus últimos tempos defendendo ideias mais ou menos alinhadas ao conservadorismo do atual governo. Dizem por aí que também minimizou os efeitos da pandemia, concordando com o déspota genocida que tudo não passa de um exagero. Morreu de coronavírus, só pra deixar o assunto ainda mais barroco.