terça-feira, 16 de novembro de 2021

Engravidei

Dias atrás, uma amiga me disse que dar match em aplicativo de relacionamento é que nem engravidar: quanto mais se tenta, menos se consegue.

Achei a comparação perfeita. Isso traduz muito de como são as coisas. Existem pessoas que nascem com o fiofó virado pra lua. Casais abençoados com trigêmeos inesperados. Em contrapartida, pessoas que não conseguem usufruir do direito divino de perpetuar a espécie. Recorrem a mecanismos in vitro pra poderem procriar. Acho meio que maldade do Criador. Um pouco de bullying do todo-poderoso, que decide na base do sorteio quem vai semear a Humanidade.

Tá certo que o desespero, o nervosismo e os cálculos matemáticos atrapalham um pouco a inseminação. Tudo seria muito mais fácil e maravilhoso se ocorresse com naturalidade, espontaneidade, deixando o improviso roubar o lugar do roteiro. O mesmo ocorre num primeiro encontro entre dois seres desconhecidos. 

Me veio à cabeça uma música dos anos 80. Não sei o seu título. Composta por Chico, interpretada por Bethânia e parodiada por Didi Mocó. Pela letra, supõe-se tratar de uma prostituta à procura de seu futuro marido. Entre seus clientes, cabe a ela escolher o par ideal. Dar um like em quem tem o potencial de fazê-la feliz pra sempre. Na fila do coito matrimonial, encontram-se candidatos ao cargo. Ouço mentalmente a música "Vou tirar você desse lugar", de Odair José. Visualizo uma espécie de Tinder de bordel. Pretendentes dispostos a oferecer à messalina um punhado de flores e de mentiras. O primeiro é um playboy. Traz joias e dinheiro. O segundo é um ogro bebaço. E o terceiro é um nada.

Nada é uma palavra que vem fazendo muito sentido pra mim. Tenho me identificado bastante ultimamente com o vazio existencial. Nada mudou. Nada consta. Nosso país é um nada. Nada temos a ganhar, muito menos a perder. Isso me fere a medula. E, assim como os poseurs de aplicativos, ou os fregueses do sexo pago, também apelei à possibilidade de um happy ending por meio de algoritmos. Fiquei quase um biênio trancafiado, encarcerado em mim mesmo. Acho pouco digno, mas muito justo buscar a redenção nem que seja com um cêntimo de gozo e de alegria. Voltei ao app como quem tenta a sorte do eterno amor com um bilhete da Mega Sena.

Para a concubina versada pelo líder Trapalhão, foram necessários apenas três concorrentes. No meu caso, enumerar uns 57 seria um número considerado razoável. Não por excesso de exigências criteriosas de minha parte. Talvez por azar mesmo. Ou por pura demonstração sádica do Altíssimo. Conheci mulheres legais, claro. Mas foi contundente a quantidade de roubadas nas quais me deparei. Num desses encontros furados, recebi no dia seguinte o presente de uma mensagem por WhatsApp com 14 desaforos, contadinhos. A pessoinha fez questão de me detonar, parte a parte, citando tudo quanto é característica minha que a incomodou numa primeira e única impressão. Meu último date não foi tão escroto assim. Mas esteve longe, quilômetros adiante de ser perfeito. Naquela praça de alimentação de um supermercado popular, a condessa em questão falou tudo sobre ela e dispensou a parte de me ouvir. De nada adiantou meu olhar atento, ornado pela minha melhor roupa e meu mais caro perfume. Nosso encontro durou menos do que uma partida de pinball. Após alguns minutos de monólogo a dois, ela olhou no relógio. Como se estivesse, literalmente, cronometrando a peleja. Ao se despedir, minha cara de consternação foi tão grande que até deve ter assustado a moça do caixa do Extra. Quase que o segurança fala "fica, vai ter bolo". Não ficou. Assustada, apressada e decepcionada, ela disse não.

Fico pensando o que seria necessário extrair de mim para que pudesse nascer um relacionamento de proveta. Outro dia uma ex-futura parceira romântica me enviou mensagem mandando eu primeiro resolver minha vida e, após me tornar verdadeiramente livre e feliz, aí sim poderia convidá-la a tomar um café. Minha sensação é mais ou menos essa. Não posso sair de casa levando menos do que a perfeição. Devo oferecer às moçoilas solteiras meu máximo, mesmo sabendo que esse máximo nunca será o suficiente. 

Porém existe o acaso, né? Talvez num momento de distração de Jeová eu tenha burlado as regras do fracasso. Ou uma coisa levou a outra. Se aquele instantâneo encontro tivesse durado um pouco mais, nada do que vem a seguir teria acontecido. Graças a Deus aquilo foi curto e grosso. Deu a oportunidade de arriscar um segundo jogo na loteria. Foi a melhor coisa que me aconteceu.

A história que fecha essa escrita quebrou todos os protocolos. Nosso tête-à-tête se deu por meio de uma live virtual. Estávamos de pijama, sem nos preocuparmos com as exigências e o dress code que regem as boas práticas. Embora distantes por questões circunstanciais, fomos o mais verdadeiro possível. Não nos preocupamos em exibir nossas virtudes em tom de ostentação. Joguei claramente meus medos, minhas angústias, minhas fraquezas. Não tive qualquer preconceito em mostrar a pessoa normal que sou. Levei a radiografia das minhas fraturas expostas. E não fui apedrejado com 14 difamações por causa disso.

E foi assim, imperfeitos que somos, que passei a enxergar a pessoa incrível que estava a descobrir. Com sua voz de menina, seu sorriso fácil e sua sagacidade fora dos padrões que me encantei. E passei a admirar cada vez mais. E sinto, ainda que infimamente, que sou suficientemente capaz de fazê-la, com minhas inseguranças e apesar delas, uma pessoa melhor. A felicidade fecundou entre nós.

A essa musa misteriosa sou eternamente grato. Quero cultivar cada instante desse rebento recém-nascido que nem nome ainda tem. Se depender de mim, nosso infinito será bastante fértil, amamentado por tudo aquilo que aprendi. E, é claro, com a ajuda de um pote de Häagen-Dazs de macadâmia enquanto a gente assiste a qualquer coisa na Netflix.


domingo, 10 de outubro de 2021

O Matemático

Stanislaw Ulam é um matemático polonês que trabalhou no desenvolvimento das primeiras bombas nucleares para os Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial. Esse é o mote do filme: trazer o desenvolvimento das pesquisas por um pequeno grupo de físicos, de forma até um pouco hermética, e acentuar o dilema entre eles sobre a finalidade desses estudos.

Usando um intimismo correto, porém cartesiano, O Matemático explora o comportamento amargo de Stan após os ataques nucleares ao Japão e sua resistência em entregar sua descoberta que viabilizaria a Bomba H. Isso se notifica pela cena inicial, quando existia um protagonista brincalhão que, no decorrer da história, vai perdendo essa essência pura e aos poucos também vai deixando de conviver com seu grupo de forma amistosa.

É um mérito e ao mesmo tempo culpa do diretor alemão Thorsten ‘Thor’ Klein: se por um lado ele evita os excessos dramáticos, por outro entrega um resultado frio. Trata-se de um filme bem convincente, e só.


sábado, 2 de outubro de 2021

Ligações

Sempre desconfiei que, quando a gente não encontra a resposta para as coisas, coloca a culpa na Física Quântica.

A definição que o Google traz não me pareceu muito convincente. Em todo caso, vou me apegar a ela. Quem sou eu pra discordar?

Então, vamos lá. Para entender o máximo, devemos ir a fundo até o mínimo do mínimo. Átomos, moléculas. Partículas insignificantes do nosso ser. Invisíveis. Desprezíveis - no que se refere ao seu peso.

Mas que exercem uma força magnética incalculável.

Por que tanta conexão elétrica entre dois seres que mal se conhecem no universo?

Como explicar a faísca que se solta dessa ligação?

Qual a química que rola?

Por que o berílio se apaixona loucamente pela amônia?

Por que a cetona largou o sódio pra ficar com o magnésio?

Seria o hélio tão nobre quanto se acha? Já que a única coisa que faz é deixar as pessoas com voz fina?

Que mundo estanho...

Ainda penso que o que une dois corpos no espaço é a ligação covalente entre eles.

A vontade de trocar energias.

A cumplicidade.

Mas será mesmo que dois polos opostos se atraem?

Existe sempre um lado positivo e outro negativo? Ou é tudo uma bagunça só?

Sou a síntese dessa bagunça. Essa mixórdia incompreensível.

De que adianta voltar aos ensaios dos tubos e não encontrar definição para nada?

Qual teoria melhor se aplica ao acaso das coisas?

Fico com a sensação de existir dentro de um buraco negro.

Quanto mais procuro, mais me perco.

Até agora só encontrei dúvidas pétreas e certezas líquidas.

Milhões de interrogações e um único ponto final:

A vida é pó.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Você

Você é meu mundo
Meu tudo
É por isso que me iludo
E quero cada vez mais.

Você me completa
Me conecta
Me conserta
Até me transformar num novo eu.

Você me ilumina
Me fascina
Me faz perder a rima
E achar o melhor da vida.

Me encanta
Me eleva
Me atrai
Me beija
Não me deixa!

Só quero você
E eu.


terça-feira, 21 de setembro de 2021

Cadê as flores?

A primavera chegou.
No meio do descaso com o ambiente.
Junto com a matança.
A desidratação dos rios.
E as fogueiras das florestas e das vaidades.
Como fazer uma flor crescer sem água?
Chegou a primavera.
No dia do discurso do imbecil.
Que não tem o que falar.
Não sabe falar.
Não cumpre regras.
Entra pela porta dos fundos.
E sai pela tangente, vaiado pelo mundo.
Nasce a estação mais colorida.
Nas cinzas da desgraça.
Do ódio.
Da tristeza.
Inflação alta e autoestima baixa.
No nível do volume morto dos reservatórios.
Acordou a primavera.
Mas cadê o amor?
Onde está a decência?
A esperança?
Estamos vacinados. Não caímos mais em mentiras.
Em ilusões.
Nosso coração endureceu.
E o que vem é a vontade de chorar.


segunda-feira, 20 de setembro de 2021

O que aconteceu?

O que aconteceu entre a gente? De onde vem essa cumplicidade toda?
Será que caiu um raio e seus efeitos elétricos produziram toda essa faísca? Será que trocamos de corpos com um extraterrestre ou com alguém que desconhecemos?
Eu desconheço a mim mesmo.
Sempre fui um duro de pedra, frio e calculista, que matematicamente procurava compreender a razão das coisas.
Hoje não encontro razão para nada.
E a razão se misturou com a emoção.
O que aconteceu?
A gente se via por uma questão de conveniência, apenas para não ficarmos sozinhos com o vazio de nossas existências.
Hoje estamos mais do que conectados. Entendemos perfeitamente um ao outro, mesmo sem entender nada.
Alguém pode me explicar?
Será que fomos abduzidos? Será que somos hoje uma versão do universo paralelo?
Versão melhorada, diga-se de passagem.
Comercial de margarina.
Escolhemos as músicas que marcam cada momento. Canções que fazem o programador da rádio morrer de diabetes.
Somos cafonas, e daí? É cringe que fala?
Rimos à toa, que nem bestas.
E choramos por causa de coisa alguma.
Em nosso espaço, não vemos o tempo passar.
Alguém em sã consciência tem a resposta, pelo amor de Deus?
Quer saber? Prefiro não entender.
Prefiro continuar andando cegamente, rumo a um lugar que nem sei onde fica.
É mais difícil. Mas é mais gostoso.
Não precisa me explicar nada.
Minha ignorância é que me faz viver com mais intensidade.

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Dividir

Dividir é um ato de bondade, solidariedade, compaixão.

A gente divide o pão pra matar a fome de todos.

Dividimos alegrias.

Compartilhamos experiências.

Dividir pra multiplicar.

Mas não existe nada de bondoso em estar dividido.

Dividir a nós mesmos.

Isso é subtração. Fragmentação.

Dividir é duvidar.

Carne ou peixe?

Meia mussarela ou meia calabresa?

Casar ou comprar uma bicicleta? 

A gente já nasce dividido.

Rindo e chorando.

E rimos chorando - ou choramos rindo - até a morte.

Nosso cérebro é dividido.

Córtex e neocórtex.

Razão e emoção.

Hemisférios encefálicos que a toda hora se digladiam entre o querer e o não querer.

Nossos corações estão sempre divididos.

Sístoles e diástoles.

Glóbulos brancos e glóbulos vermelhos sendo rapidamente transportados pelo nosso sangue, que a cada instante se pergunta:

Amor ou paixão?

Parecemos irmãos siameses em eterna busca por certezas.

Mas elas não existem. Ou fingem não existir.

Seguimos adiante, ouvindo o som e a fúria de nossa consciência.

Rock ou valsa?

Até chegarmos ao topo de uma colina.

Lá encontramos o feiticeiro. 

Um preto velho, cego, de óculos escuros e barba grisalha malfeita.

Sentado num banquinho de madeira e tocando um blues na gaita, ele traz a resposta que queremos saber:

"O trem para Memphis acabou de passar".

E aponta o enrugado dedo para uma encruzilhada.

Esquerda ou direita?

Girando nossos olhos pra lá e pra cá, como bolinhas de pingue-pongue, folheamos loucamente as páginas mentais do nosso passado.

E as interrogações do nosso futuro.

Sem sair do lugar.

Enquanto o relógio da vida não para de funcionar.

Tic-tac... tic-tac...


sábado, 11 de setembro de 2021

Era uma vez

Era uma vez na minha vida
Uma história que fingiu acabar.
Tudo se passou em poucos capítulos
Entre um parágrafo curto e um suspiro longo.
Ainda não consigo juntar as palavras certas
Mas vou tentar mesmo assim.
Onde ela começou? Não sei.
Cadê o final? O tempo vai dizer.
E se não for feliz?
Cabe a mim reescrever.
Incansavelmente.
Lá vou eu, de novo, em busca da musa perdida.
Inspiração pra cada sílaba, cada vírgula.
Até chegar ao ponto de exclamar
E declarar, sem reticência alguma:
"Não quero ser o vilão dessa história".
Do prefácio ao epílogo
O motivo desse livro existir é você.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

O choro

Já não há mais água nos reservatórios.

Entramos na bandeira vermelha da fase preta.

A situação tá preta, tá grave.

Consumimos tudo de nós mesmos.


Falta água não por causa de nossos banhos demorados, que tiram a sujeira do corpo e da alma.

Ou porque lavamos as mãos, pra nos livrarmos do vírus e de todos os pecados.

Nem pela nossa necessidade de reidratar os sais minerais que se esvaem.


A água é escassa porque já choramos tudo o que tínhamos que chorar.

Sai a água, fica a mágoa.

A dor.

A chuva dos nossos olhos parou de escorrer.

Deixou no caminho do nosso rosto um rastro brilhante e efêmero.

Até morrer amargamente em nossa boca.


Choramos por não ter sido aquele que gostaríamos de ser.

Choramos pelos sonhos que não se realizaram.

Pela perda de amigos, de familiares e da esperança.

Choramos a despedida de quem vai e não volta nunca mais.


Entramos no racionamento das lágrimas.

Nossas emoções mais intestinas terão de ser comedidas.

Aos poucos, em soluços.

Não há mais rios de alegria.

Nem escoadouros da tristeza.

Apenas um pingo de dó.

A fonte secou.


terça-feira, 7 de setembro de 2021

De Volta para Casa

O veterano diretor sino-americano Wayne Wang traz um retrato mais intimista sobre a finitude, sem apelar para os exageros dramáticos que o tema poderia impor. Na primeira cena o corte de uma carne de porco, lento e cuidadoso, serve de analogia para o minucioso cuidado que o protagonista Chang-rae deve ter com sua mãe, que sofre de câncer. Ele é um escritor que abandona o emprego e volta para a casa de sua progenitora em São Francisco, somente para dar atenção a ela nesses momentos finais de vida.

Conciso nas emoções e econômico nos trejeitos, o filme vai crescendo sem a necessidade de apelos como músicas de fundo ou câmeras lentas. Tudo se encaixa na própria expressão cênica dos atores. Entre uma certa indiferença e a tensão máxima, é nesse viés que enxergamos a força do filme. Alguns flashbacks incorporam um relato mais saudosista da mãe gozando de boa saúde, principalmente no preparo culinário. Isso não quer dizer que De Volta para Casa evita situações conflituosas. Esses dilemas surgem de forma mais orgânica, natural, num crescendo, como se estivessem em tempo real, totalmente descolados da construção cronológica vai-e-vem do filme. É um trabalho que exibe seu capricho sem soar adocicado demais. E também mostra seu amargo sem soar indigesto.


quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Perdão

Desculpe estar incomodando

Eu poderia estar roubando, matando

Mas só vim aqui pedir um minuto do seu tempo

Que já vai servir de eternidade pra mim.


Peço por favor que me aceite do jeito que sou

Com meus medos, minhas dúvidas e fraquezas.

Em troca eu aprendo a aceitar você, do jeito que é,

Sem tirar nem pôr, 

E a gostar cada vez mais.


Não quero atrapalhar o trajeto da sua existência.

Serei breve como sempre fui.

E me arrependo de cada instante que deixamos de gozar.


Me perdoa por não a enxergar no fundo dos seus olhos,

Sentir seu cheiro, seu gosto,

Seu calor, seus sentidos

Até a vida não mais fazer sentido.


Me perdoa por não dar aquele abraço apertado e demorado,

Como se não houvesse amanhã.

Porque a gente sabe que o amanhã nunca chega

E, quando chega, já é tarde demais.


Sei que é pedir muito reconstruir uma história,

Passar a limpo cada rascunho dos nossos encontros.

Mas eu peço, encarecidamente.

É isso que me resta.

E qualquer centavo de riso e sorriso vindo de você

Vai me deixar muito feliz.


Tenha uma boa viagem.



domingo, 29 de agosto de 2021

Kairós

Cá estou eu, no recôndito suplício

A pedir um minuto do teu jeito.

Tentar a segunda chance é meu ofício,

Fazer de novo o que ontem foi perfeito.

 

Do teu hoje eterno minha alma carece.

Por tua voz melíflua meu urro se afina.

Todo o meu mundo tua vida merece

Pra cantar nosso amor, mulher menina.

 

Já não sei tirar a dor do meu peito,

Me entregar ao brilho que te aparece,

Me envolver no teu colo em nosso leito.

 

Contemos nossa história desde o início.

Tudo o que não fiz o tempo elimina

Porque és minha flor, meu calor, meu vício.

 

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O passado vai passar

 Vi ontem no noticiário que uma manada de elefantes asiáticos atravessou parte do sudoeste da China e invadiu casas e plantações. No mesmo programa, no bloco imediatamente posterior, falou-se sobre o desfile militar de carros blindados das Forças Armadas, que saíram do Rio de Janeiro e foram até o Palácio do Planalto, em Brasília, com o objetivo de se entregar a Jair Bolsonaro um convite para o treinamento dessa maquinaria pesada. Faz todo sentido. Intencional ou não, o telejornal estabeleceu uma analogia tão lógica quanto patética. Esse paquidérmico exibicionismo de tanques, lança-foguetes e outras carroças bélicas, bancado com o dinheiro público que saiu do seu bolso, mostrou o quão selvagens ainda somos diante das novas trajetórias mundiais. 

Esse ato anacrônico coincidiu precisamente com dois eventos na esfera política. Concomitantemente ao nababesco séquito estava sendo votada pela Câmara dos Deputados a PEC do sufrágio impresso auditável. Na outra ponta, generais e coronéis estavam sentados no banco dos réus e investigados para depor na CPI da Covid, na condição de intermediadores de negociatas. Por essa razão, o cortejo verde-musgo foi interpretado, além de descabido e desnecessário, como uma demonstração de força de Bolsonaro, uma ameaça, uma provocação à democracia e suas instituições. Discordo. Esse ato ridículo está mais para um retrato do que uma afronta.

É notório que Bolsonaro tem um apego exacerbado pelos costumes conservadores. Nutre uma obsessão compulsiva por fardas. Bate continência quase como um tique nervoso. Assistir a uma demonstração como essa enquanto o país se desmonta, portanto, não é nenhuma surpresa ou novidade. Essa é a prioridade de seu não-governo. Nos tempos da informática, das redes sociais, um convite poderia muito bem ser feito por e-mail ou WhatsApp. Ou, na pior das hipóteses, por meio de um impresso a ser entregue por courier ou enviado pelos Correios. Não era você que queria provar mais eficácia e agilidade da estatal após a privatização, senhor presidente? 

Como já sabemos, o Brasil é um pária universal na questão ambiental. Enquanto as nações desenvolvidas discutem em caráter de urgência, no ano em que estão ocorrendo as maiores catástrofes climáticas da história, os líderes do nosso trespassado território parecem não dar a mínima. Coloca-se em pauta a redução da emissão de gases poluentes na atmosfera, a desaceleração na fabricação de equipamentos movidos a combustíveis fósseis, o desenvolvimento de fontes de energia renovável, e por aí vai. Aqui, não. Muito pelo contrário. Vivemos no eterno retorno do retrocesso. No saudosismo de meio século atrás. Ostentar pelas ruas essas engenhocas ultrapassadas é, portanto, uma questão de coerência. Essa passarela de enfileirados répteis rastejantes, rotundos, morosos e poluentes, trouxe ao nosso imaginário o  tragicômico festival de horrores, como se o país tivesse acabado de ser convocado para batalhar na Primeira Guerra Mundial. Não vejo nenhuma prerrogativa de golpe de Estado quando nosso líder se mostrou hipnotizado e embasbacado por meros canhões de Navarone atrapalhando o trânsito do progresso. Não há uma articulação programática para isso. O que assistimos foi apenas um ritual de culto e endeusamento a um passado carcomido de ferrugem. Datado e antiquado como o voto em papel, prestes a rodar num mimeógrafo e ser enviado ao TSE por fac-símile. Bolsonaro é a selfie polaroide desse retardo, 

sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A letra Y

 Ali na rua principal de um pequeno bairro da periferia, na geladeira do mercadinho do Seu Luiz, residia a letra Y da latinha de Coca-Cola. Era uma lata exatamente igual às outras, a não ser por um detalhe: ela não era tão desejada quanto suas metálicas irmãs. Quem passava perto do translúcido refrigerador optava por esticar suas mãos a fim de pegar unidades alfabéticas mais comuns. Letra A, por exemplo. Mesmo disponível em grandes quantidades, esses gêmeos invólucros logo sumiam do congelado andaime. "A" de amor. "A" de alma. "A" de Andréa. Sua agregada mais nova, a letra B, também era relativamente bem disputada. "B" de bondade. "B" de Beatriz. Até mesmo a tortuosa letra S tinha seu fã-clube que a fazia pernoitar por poucas horas no congelante domicílio. "S" de saúde, algo muito mais do que valioso nos dias de hoje. "S" de saudade. "S" de Salvador, nome e adjetivo ao mesmo tempo. Já a nossa protagonista não gozava do mesmo destino. É muito difícil ser Y no Brasil.

Os dias foram se passando. As latas do mais famoso refrigerante mundial foram desaparecendo do estoque, o que deixou o Seu Luiz ainda mais rico e mais contente. Várias correligionárias contribuíram para o constante tilintar de moedas na caixa registradora da mercearia: R, E, T, C, M, D... menos Y. A penúltima espécie da linhagem do abecedário se sentiu tão órfã quanto um pet de feira de exposições, preterido em última instância no momento da adoção.

Essa sensação de abandono foi crescendo no coração de Y. As baixíssimas temperaturas do inóspito frigorífico que se perpetuavam ao longo das datas deixaram a personagem ainda mais gélida e frígida. A cada hora, Y ia perdendo um amigo que se via acolhido por algum sedento consumidor. À medida que novos companheiros de cela chegavam, Y ia sendo colocada ao fundo do reservatório, num ambiente ainda mais congelante. Era praticamente impossível enxergar Y debaixo de uma espessa camada de névoa, atrás de tantos novatos pescoços.

Em certa ocasião, um desastrado movimento de mãos desconhecidas fez com que Y voltasse à primeira fileira de exibição e ganhasse novamente os holofotes Ali restava uma nesga de esperança. Y poderia ser o prólogo de "you". De "young". Ou, ainda, a representação iconográfica de braços levantados ao alto, comemorando a alegria da vitória, num derradeiro e emocionado gesto de superação. Esse repentino contentamento fez com que Y perdesse o equilíbrio e se tombasse na prateleira, permanecendo deitada por alguns instantes. Foi nessa visão horizontal de mundo que a renovada protagonista conheceu K e W, seus mais novos amigos igualmente estrangeiros. Era o que bastava para Y acreditar que a união das minorias faz a força. Achou que, juntos, o inseparável trio poderia despertar mais a atenção dos transeuntes. Enfim, a diversidade. Y ganhou colegas, outrora rejeitados, e passou a crer que a língua é tão universal quanto a vontade de matar a sede.

Dias depois, porém, o trágico aconteceu. Numa tacada só, seus amigos foram simultaneamente acolhidos por mãos quentes e apaixonadas. A poucos centímetros de distância Y viu a liberdade, muito longe dela. Wesley ofereceu a lata K para sua namorada Karen. Em troca, recebeu a lata W de seu eterno amor. 

Ao ouvir o borbulhante chiado do refresco gaseificado após o curto estampido da tampinha que se abriu, Y se deu conta de que o que rege o nosso planeta é a sorte. Por que, meu Deus? A latinha estava lá, o tempo todo, à espera de ser abusada pela Yvone ou pelo Ygor. 

E foi assim que Y permaneceu reclusa em seu canto. Sem vontade de olhar sequer para o estonteante colorido das vizinhas Fantas e Guaranás. Nossa rejeitada Coca-Cola foi envelhecendo. Perdeu o brilho ofuscante nos olhos de alumínio. Perdeu o gás de viver. Estava prestes a perder o prazo de validade. Só queria desaparecer, no meio do novo lote de latas sem letra alguma que acabaram de chegar. Cada abre-e-fecha da emborrachada porta da geladeira provocava nela uma avalanche de lágrimas que escorriam pelo seu corpo vermelho.

Essa foi a história da nossa latinha. Tentou ao máximo seduzir os fregueses do mercadinho do Seu Luiz, exibindo seu corpo estonteante na vitrine transparente, como se estivesse do lado de dentro de uma cabine de peep show. Demonstrou a todo custo sua vontade de ser tragada, de ser lentamente sorvida por ávidos atletas ou até mesmo obesos em estado de diabetes. Não se importou em saber que seu funeral poderia ser num depósito de recicláveis, e que seu cortejo seria realizado por catadores de lixo. Não baixou a guarda quando descobriu que poderia servir de cinzeiro, que sua boca poderia ser obstruída por um chiclete, e que poderia sofrer sérios acidentes em colisões que danificassem sua cintilante lataria. Mesmo assim, nessas condições ainda haveria vida. Nossa coitada Coca, entretanto, nasceu e cresceu cheia, completamente cheia, transbordando até a medula o vazio de sua existência.


quarta-feira, 21 de julho de 2021

Libertas quae sera tamen

 E agora?

Dizem que quando você deixa um pássaro preso na gaiola por muito tempo e depois solta, a primeira coisa que ele faz é voltar pra gaiola. Talvez pelo medo do mundo. Ou por um reflexo condicionado do behaviorismo. Ou por sentir que a gaiola é seu habitat. Não sei. Nunca tive passarinho. O máximo que tive foi um papagaio. Demos a ele o nome de Severino. Viveu por uma semana. Na época eu, que era bem pequeno, não entendi essa morte súbita. Nunca lhe faltou água nem comida. Hoje meu campo de compreensão é um pouco maior. Um animal silvestre, transportado ilegalmente dentro de um canudo de diploma universitário, vendido em feira clandestina, trazido e criado sob o controle de uma tornozeleira eletrônica 24 horas por dia, amarrada por uma corrente ao poleiro, não poderia mesmo ter vivido com dignidade. Morte e vida severina foi a parte que coube ao latifúndio do meu periquito de estimação. Claro, fiquei chateado. Queria ter em casa uma ave que repetisse tudo o que eu falava. Mas, vamos combinar. Se é pra ficar ouvindo a reprodução sonora das minhas palavras, eu não precisava destruir a fauna amazônica e trazer pra selva de pedra um psitaciforme. Bastava um gravador.

Apesar de não passarem por esse tipo de contrabando venerado por Ricardo Salles, os demais passarinhos comercializados dentro da mais transparente legalidade, com direito a nota fiscal e pedigree, devem sofrer a mesma clausura. Nas gaiolinhas domésticas ou nos espaçosos viveiros. Estes talvez sejam ainda piores. Dão à espécie voadora a falsa sensação de conforto, lazer e tranquilidade. É como se estivessem promovendo um Residencial Fasano com vista para a natureza e entregando um Bangu 9. 

Hoje nós estamos que nem esses passarinhos. Mesmo não sabendo voar. Ganhamos a liberdade, ainda que tardia. Poderíamos estar livres desse maldito vírus muito tempo atrás, quando o pessoal lá de cima recusou as inúmeras tentativas de contato dos representantes da Pfizer e abriu as pernas - ops, portas para verdadeiros trambiqueiros de plantão. Chegamos a mais de meio milhão de mortos, quando esse número poderia beirar os 100 mil. O que já é um absurdo, diga-se de passagem. Quem diz isso não sou eu. É o epidemiologista e professor Pedro Hallal, com seu estudo minucioso apresentado na CPI da Covid. Ganhamos a liberdade porque ganhamos a luz. Voltamos a usufruir um pouco do Iluminismo depois de um longo período (que pareceu ser muito mais longo) de obscurantismo, decisões tomadas com base no ocultismo, no negacionismo, no curandeirismo, nas declarações de cercadinho, nas conversas secretas travadas em gabinetes das trevas, lotados de integrantes que queriam colocar em prática suas ideias estapafúrdias com verbas de orçamento paralelo.

De uns dias pra cá, o Brasil passou a dar o exemplo de um bom Brasil. Aquele país que já foi referência na vacinação em massa e na descoberta de novos imunizantes. Aquela nação que desenvolveu uma logística séria de inocular anticorpos no braço de 1 milhão de brasileiros por dia, e não aquele rascunho atrapalhado do general rastaquera dia D e hora H. Finalmente a maioria de nós já recebeu a primeira dose. Estamos a poucos passos de nos vermos livres do vírus e do verme - torcendo muito aqui pelo impeachment. Não somos mais afetados por fake news robóticas, nem por depoimentos sem comprovação científica. Muito menos pelas teorias conspiratórias medievais, já que excluímos nossos ex-amigos bolsominions de nossas bolhas. Enfim, vamos tirar nossas tornozeleiras e voltar a viver. Voltar a exercer nosso direito de ir e vir. Mas, ir pra onde?

A gente meio que se acostumou a essa vida em solitária. Durante quase dois anos, estivemos encarcerados em nossos próprios lares. Ficamos prisioneiros do home office e das videochamadas. Trocamos o "oi, tudo bem?" pelo "cês tão vendo minha tela?". Nossa vida agora cabe em um monitor 16 polegadas. Nossas roupas, nossas comidas, nosso transporte é solicitado por um aplicativo. O celular é o nosso shopping center. Temos a sensação de que o mundo está ao nosso alcance, quando na verdade desfizemos o hábito de ir até a esquina. A única coisa que não abrimos mão foi descer do prédio e tomar aquele solzinho de presidiário.

Só que agora tudo vai ser diferente. A gente vai voltar a voar. Claro que durante esse biênio todos nós demos as nossas escapadinhas. E o que vimos não foi nada bom. As tradicionais ruas do comércio ostentam uma fileira de portas fechadas. A gente já nem sabe mais se fecharam de vez ou se estão cumprindo aqueles horários estapafúrdios de funcionamento, em que cada semana essa flexibilização é de um jeito diferente. O Comedians fechou pra sempre. Meu sonho era se apresentar lá, pelo menos uma única vez na vida. O Zais fechou pra sempre. Não fazia parte dos meus sonhos frequentar a casa mais dançante de São Paulo, mas confesso já ter ido lá uma noite. Não foi exatamente pra dançar tango e bolero, mas revelo que meus objetivos foram alcançados. Em compensação, a gente se depara com uma série interminável de farmácias. Desde as recém-inauguradas, até as gigantescas que ficaram ainda maiores. Em São Paulo, farmácia é o novo bingo. Tem uma em cada esquina.

Sim, já estamos vacinados e praticamente imunizados. Mas isso não significa que sairemos em ritmo de comemoração. Comemorar o quê? As perdas de amigos e familiares? O desemprego recorde? A recessão com inflação? O abismo ampliado entre os mais ricos e os mais pobres? O aumento da violência doméstica? Sei lá. Precisamos ir pras ruas, cheirar fumaça de óleo diesel, sentir que ainda estamos vivos. Nem que seja pra daqui a cinco minutos voltarmos pras jaulas da nossa pequenez. Assim como faz um canarinho.


sábado, 10 de julho de 2021

O Charlatão

Em tempos de cloroquinas, azitromicinas, ozônios retais e demais terapias alternativas e curas milagrosas sem comprovação científica, trazer às telonas brasileiras uma história da metade do século passado faz todo sentido.

O foco recai em Jan Mikolásek, um bem-sucedido curandeiro tcheco que atendia a população do país comunista após a Segunda Guerra mundial. Prestava serviços não só para a comunidade carente, mas também para os altos cargos da república, como, por exemplo, o ex-presidente Antonin Zápotocky, que aparece em seu leito de morte logo na primeira cena. 

Jan usa métodos pouco ortodoxos em seus diagnósticos. Ergue frascos de exame de urina dos pacientes, olha contra a luz e, de acordo com o que aparece no interior do recipiente observado a olho nu, prescreve medicamentos homeopáticos e à base de ervas. Daí o título do filme serve como um questionamento: estamos diante de um salvador da pátria ou de um embusteiro?

A premiada diretora polonesa Agnieszka Holland traz a esse contexto um retrato cuidadoso, evitando exageros ou maniqueísmos precipitados. Tudo é muito árido, contido, encenado por gestos quase mecânicos, e a fotografia esmaecida dá conta de traduzir uma época e um povo de poucas alegrias. 

A interpretação ambígua do ator Ivan Trojan no papel principal é um capítulo à parte. Junto com toda essa benevolência de atender claudicantes aleijados que fazem filas ao redor de seu consultório, existe uma persona rancorosa, mal-humorada, reclusa e antissocial. Isso diz muito mais de um regime de governo e de um dos períodos mais conturbados da história do que meramente do médico oportunista em questão.

Entretanto, Holland atenua essa contundência minimalista por meio de flashbacks digamos, mais adocicados. Ao sentir a necessidade de rechear o filme com elementos que esclareçam melhor a contextualização histórica, a diretora perde esse poder de síntese e cai em artifícios mais convencionais. Na juventude, durante o aprendizado com uma controversa curandeira da região, Jan se mostra mais vívido e deslumbrado. Nessa parte, o filme sai do opaco sombrio e nele são inseridas matizes mais reluzentes. Os frascos de urina carregam um amarelo mais cintilante. É o momento de respiro ao espectador, mas também serve para mostrar que os bons tempos se apagaram.

Entre o claro e o escuro, entre o rígido e o frouxo, entre o bisturi e as flores, entre a cura e a enganação, tudo parece seguir uma lógica. Essa linearidade, entretanto, é desfeita com a introdução de um novo elemento. O assistente do médico, Frantisek Palko, até então mero coadjuvante, passa a ganhar uma relevância suspeita, diluindo um pouco mais a eficácia retórica do roteiro. Daí, O Charlatão torna-se mais uma panaceia do que um remédio amargo. Esse é o seu efeito colateral.


Supermercado

 Era pra ser simples. Escolher algumas marcas de gororobas pra abastecer a casa e matar a fome. Era.

Pego o primeiro carrinho, com suas rodas tortas e desalinhadas, devidamente desinfetado de todos esses vírus que circulam pelo ar, e começo minha busca como quem acaba de entrar na página inicial do Google. A oferta é muito maior do que a demanda. Me perco no meio de tantas cores, sabores e tamanhos. O que é liofilizado? Salmão de planta, como assim?
Nas esquinas da vida e do pet food, cruzo várias vezes com as mesmas pessoas que nunca vi. E provavelmente nunca mais as verei. Elas passam, apertam a embalagem do pão de forma e vão embora, carregando apenas o pedestal do seu desprezo pela mercadoria.
Continuo minha peregrinação pela melhor relação custo-benefício. Cartazes amarelos gritando "de tanto por apenas" é o que não falta pra chamar minha atenção. Escapo de todos. A não ser de um: vale muito a pena pagar R$ 1,99 pela felicidade de adoçar a boca com uma água gaseificada sabor gengibre.
Como num círculo vicioso, repleto de zumbis drogaditos procurando as mesmas coisas que eu, deparo-me novamente com aquele rotundo e espaçoso consumidor que se acha o proprietário do estabelecimento. Só que agora nossas rotas se travam em outro capítulo: sabão em pó com nova fórmula hipoalergênica.
Prestes a desistir, continuo minha jornada em busca de saciar meus desejos que eu nem sei exatamente quais são. E de repente, não mais que de repente, no perigoso cruzamento entre as fileiras dos palmitos em conserva e dos glutamatos monossódicos, eis que surge ela, distraída, em busca da melhor azeitona azapa, e colide frontalmente com meu veículo. Felizmente, ninguém se feriu. A não ser meu pote de margarina sem sal, ligeiramente danificado por causa de tal imperícia da condutora. Na hora, pensei em acionar as autoridades e fazer um boletim de ocorrência. Desisti assim que a olhei furtivamente. Foi amor à primeira vista.
Estúpido eu. Burro, burro. Por deixar de aproveitar a promoção de creme dental com eucalipto? Não. Por não expressar tudo o que senti por aquela deslumbrante imagem assim que a avistei. Sou craque nisso. Coloco nas minhas redes sociais, nos meus blogs e nas minhas anotações as palavras, os verbos e os objetos diretos pra todo mundo ler. Menos ela. Trago aqui pra você todas as minhas metáforas, hipérboles e catacreses, mas sou incapaz de dizer a ela ao pé do ouvido um simples "gostei de você mil vezes mais do que aquele chocolate meio amargo".
Mudo, extremamente calado e cabisbaixo, dirijo-me obstinadamente à geladeira dos produtos próximos ao vencimento. Espécies que perderam a validade de existir e de encantar. Aqueles que já começam a sentir a temperatura fria da própria morte. Estão ali, desesperançosos como cachorro dentro da carrocinha, cientes de que sua hora está para chegar. Valem menos da metade do que valiam nos seus tempos áureos, quando acabaram de vir ao parque de compras. Escolho o invólucro menos roto e sofrido das linguiças de frango. São esses cilíndricos pedaços corados de acidulantes que vou salvar do abatedouro. Ainda penso nela, e nem o mel do iogurte grego me faz esquecê-la. Queria encontrá-la casualmente, muito mais vezes, nas coincidências do destino e nos corredores de inseticidas. Eu preciso dessa segunda chance. Mas nossos descompassos falam mais alto. Não fomos feitos um para o outro. Meu interesse é pelo queijo camembert. O dela, pelas palhas de aço. Entre engasgar com o soluço do próprio choro e escolher o melhor grano duro integral tricolor, fico com a segunda opção.
Olho para os filés de atum com azeite de oliva e para os isotônicos sabor lichia sentados no banco de passageiro do meu quadriculado possante. Eles me entendem. São cúmplices da minha tristeza. Espremidos pelo pacote de 24 unidades de rolo de papel higiênico dermcare, aconselham-me a seguir a vida. Bora procurar o mais delicioso presunto parma pra apaziguar essa angústia.
Satisfeito com o volume de badulaques pra preencher minha pança e meu ócio, conduzindo meu lotado quadriciclo em direção ao caixa, ouço de longe o estilhaço metálico de uma nova colisão acidental. Subo minha cabeça por cima das caixetas de aveia em flocos, com o objetivo de se obter a visão mais privilegiada do infortúnio. É ela, novamente ela. A culpada e responsável por aquele agudo estrondo oriundo da junção entre os fios de alumínio em sentidos opostos. Antes que a infratora se desculpasse pelo estrago causado ao quilo de maçãs argentinas do motorista prejudicado, sinto um clima estranho no ar. E não estou me referindo a nenhum tipo de borrifadas de purificador fragrância jasmim. Seus olhares se entrelaçam, e nessa troca meu coração sente que houve um mútuo perdão. Saem de mãos dadas, acompanhados pelo ritmo desafinado das rodas danificadas dos carrinhos. Rastros de detergente líquido neutro que se soltou de uma embalagem avariada desenham no chão o caminho do amor.
Nesse exato momento, eu ainda estava escolhendo um vidro de molho de tomate pra encerrar a compra. Era como uma espécie de bônus para o meu apetite pantagruélico. Numa mistura de susto e de ódio, obviamente deixei cair o recipiente no solo. Aquilo que restou na superfície do supermercado era eu. Um monte de cacos, em frangalhos, sendo lentamente banhados pelo líquido espesso vermelho-sangue da cobertura culinária que rege as refeições dominicais. O molho basílico morreu na contramão atrapalhando o tráfego da reposição de estoques.
A fila anda. Devagar, mas anda. Trava um pouco quando o freguês da frente resolve fazer uma recarga de celular ou adquirir um pacote de Marlboro Ultra Light. Mesmo assim, ela vai. A passos curtos, e apesar da desobediência de alguns desavisados em relação à quantidade máxima de 15 volumes no caixa rápido. E foi nesse frenético andar dos comboios prateados, acompanhado pelo sincronizado apito sentido pelas garrafas de cerveja pilsen que passavam pela esteira rolante, que me distanciei cada vez mais do prematuro casal. Ali estavam eles, com suas ecobags e suas lasanhas congeladas, acionando o bipe do chaveiro para destravar as portas da SUV 2020/2021 do rapaz. Sem máscaras, a essa altura do campeonato. Sem distanciamento social. Muito pelo contrário. E não me pergunte onde o álcool gel 70% se encaixa nessa história. Abriram o vidro elétrico, encostaram o código de barras do ticket de estacionamento no leitor e, passada a cancela, foram viver felizes para sempre. Ou, pelo menos, até quando o filé mignon suíno acabar.

 Buaaaá. Buaaaá.

Onde estou? Por que tanto barulho? Quem são essas pessoas grandes? Por que olham tanto pra mim e dão risada?
Ah, essa aí é minha mãe. Bonita ela. Quero ficar no colo dela o tempo todo.
Tô com fome. Mãe, me dá leite. É desse cone do seu peito que sai bebida e comida? Gostei. Agora vou dormir.
Buaaaá. Buaaaá. Quem é ele? Meu pai? Que horas são? Tô com fome. Tô com caganeira. Ah, e dor de ouvido também.
Mãe, tô com fome. Ué, hoje o leite veio do cone de plástico?
Quero ser tão grande quanto vocês. Ei, já tô conseguindo me arrastar. Vou alcançar vocês, me aguardem. Quero ir lá pra longe, no outro canto da sala. Ei, fiquei de pé! Agora vou correr. Ih, o chão. Buaaaá. Buaaaá.
Hoje eu tô feliz. O que é isso que tá nascendo na minha boca? Esses pedaços de osso. Pra comer coisa mais dura que leite? Ah, legal!
Hoje eu acordei esquisito. Comecei a lembrar coisas de ontem. Mãe, pai, pra onde vocês estão me levando? Lugar pra brincar? Pra aprender? Não, eu quero voltar pra casa! Bua... quem são eles? Todos iguais a mim... só que diferentes... tenho medo.
Mãe, tô com fome! Bolo? Obaa! E o que é essa vela com o número 5 em cima dele? Vão cantar pra mim? Que legal! A Tia Cida vem? E o que é aquela caixa embrulhada? Presente? Nooossa!
Mãe, cheguei. Tirei 10 em Matemática! Ah, outra coisa. Caiu o primeiro osso que nasceu na minha boca pra poder comer coisa mais dura que leite. É por isso que chamam de dente de leite?
Mãe, cheguei. Hoje me bateram. Não sei por quê. Não fiz nada. Trouxe o Pedrinho. Ele vai comer com a gente. Foi o único da classe que não me bateu.
Mãe, cheguei. Tenho uma boa e uma má notícia. A má notícia é que eu tirei 3 em Matemática. Tá puxado. Esse negócio de equação de segundo grau é bem difícil. A boa é que toda vez que eu passo em frente da Luciana me sinto estranho. Não sei o que é. Fico vermelho, meu coração começa a disparar, as palavras fogem da minha boca...
Pra onde você e o pai vão me levar hoje? Aprender a andar de bicicleta? Obaaa! Depois eu quero experimentar o que todo mundo da classe falou que é gostoso: hambúrguer e Coca-Cola. Eu quero, eu quero! Olha, tô andando de bici! Vou correr até o outro lado do parque. Ih, o chão...
Mãe, lembra da Luciana que eu falei? Então, a gente começou a sair de mão dada em frente ao colégio. Ela encostou a boca dela na minha. Eu não sabia o que fazer. Mas foi sensacional. O melhor dia da minha vida. Ah, repeti em Geografia. E fui pra diretoria também. Apanhei dos colegas, mas soube bater neles também.
Calma, mãe! Já vou sair do banheiro! É que eu tô começando a pensar na Luciana de um jeito esquisito. Sei lá, deu uma tremedeira no corpo. E tô pensando bobagem também com a professora de Química. O que é isso que tá saindo de mim? Xixi é que não é.
Tô apaixonado, mãe. Eu e a Luciana trocamos aliança de brinquedo. E transamos pela primeira vez. Foi o dia mais feliz da minha vida.
Não, não vou pra escola, mãe. Hoje vou ficar no quarto o dia inteiro. É, é, briguei com a Luciana. Terminamos. Não quero ver ela nunca mais. Por mim o mundo pode acabar. Me deixa!
Alô, Pedrinho? E aeeê, brother! Vamos tomar umas? Trocar uma ideia, faz tempo que a gente não conversa. É, hoje a gente vai detonar. Pensa num bar legal, com um monte de gata. Nossa, lá no cursinho só tem modelo, cê não acredita!
Zuzo bem, mãe. Tô bem. É, eu sei. São 4 da manhã, e daí? Posso fazer o que eu quiser. Tô legal. Tá aqui a chave do carro. Dei uma raladinha na lateral. Não conta pro pai. Fumei, e daí? Não pode? Cabeça dói. Mas eu tô bem. Eu tô... bleeergh!
Passei, mãe! Passei, pai! Arquitetura. Uhuuu! Valeu, vocês foram super legais comigo. Me apoiaram em tudo. Obrigado mesmo!
Oi, mãe. Conversar o quê? Tá, eu tô bebendo quase todo dia, e daí? Virou minha médica agora? Tira... tira a mão. OK, achou bituca de maconha na minha gaveta. Bravo, parabéns! Vai fuçar em todas as minhas coisas agora? Fumo mesmo, qual o problema? Não aguento mais. Vou morar longe de vocês. Quero distância!
Oi, mãe. Tudo bem? Por que tá chorando? Cadê o pai? Hospital, que hospital? Mãe, desculpa. Eu não queria brigar com ele, juro!
Doutor, o que ele tem? Buaaaá!
Viva a revolução! Abaixo a ditadura! Por mais igualdades! Por uma sociedade mais justa e um planeta sustentável!
Pô, Pedrinho! Sério? Virou liberal agora? Vai votar naquela coisa mesmo? Você me decepcionou. Tô te bloqueando das minhas redes sociais.
Oooi, mãe! Que saudades. Deixa eu te apresentar, essa é a Bianca. Bianca, mãe, a melhor fazedora de brigadeiro do planeta! É, mãe. Deixei crescer. Tô barbudo agora. Então, mãe. Queria aproveitar pra te deixar o convite. A gente se casa em dezembro. Onde foi? Cê lembra, amore? Acho que a gente se conheceu naquele filme do Godard, não foi? Ou na festa do Clayton? Obrigado, mãe. Isso, pra daqui a 5 meses. Barrigão com um véu por cima, vai ser a coisa mais linda. A senhora vai, né? Se for menina vai ser Anita. Se for menino a gente ainda não decidiu. Eu quero João Pedro.
Alô, mãe? Tá meio ruim a ligação. Estamos aqui em Nova York. É, a gente veio... oi? A gente veio pra comemorar. Fui promovido a vice-presidente! Não é demais? Sim, eu sei, mãe. Muita responsabilidade. Sim, mãe. Tô me cuidando, pode deixar. Beijos, te amo.
Oiii, mãe. Saudades! Essa é a Anita. Não é linda? Pode segurar no colo se quiser. O cabelo da mãe, a bochechinha do pai. Mama que não para mais. E brava! Parece a senhora quando eu era criança. Esse olho azul puxou do vô. Se ele estivesse vivo aqui com a gente ia ficar muito orgulhoso.
Oi, amore. Bom dia. Que cara é essa? A mãe? O que tem a mãe? Hospital, que hospital? Buaaaá!
Calma, Bianca! Vamos conversar. Não é nada disso. Sim, eu tava trabalhando. Pra garantir comida na mesa! Que ideia maluca é essa? De onde você tirou isso? Então tá. Fim de semana sim, fim de semana não a Anita fica na MINHA casa. Pode ficar com a TV. Mas a coleção do Chico e Caetano eu vou levar.
Oooi, filhota. Que saudades! Vem dar um abraço no pai. Ah, é? Caiu o primeiro dente? Nooossa, 10 em Matemática?
Oi, filha. Tudo bem? Não repara a bagunça. Quer pedir uma pizza? Eu tô bem. Me virando. Sim, muita. Sinto muita falta da sua mãe. Mas não era pra gente ficar juntos. A gente se conheceu muito jovens, aos poucos fomos percebendo que somos bem diferentes. É verdade. Ela sempre foi linda. Mas me conta. Jura? Terceiro lugar? Comunicação Social? Parabéns! Sempre foi o orgulho do pai. Você merece.
Oooi, filha. Saudades. É, agora preciso usar. Não enxergo mais nada de longe. Quem é ele? O quê? Noivo? Vem cá, Marcelo. Vamos conversar de homem pra homem. O que você faz da vida?
Alô, filha? Tudo bem? Desculpa ligar a essa hora. Eu sei, eu sei. Mas é só por uns dias. Os filhos da puta me demitiram. Faltando menos de 1 ano pra me aposentar, acredita? E com as contas pra pagar tá meio difícil. Só até eu arrumar um lugarzinho menor e mais barato. Prometo não encher o saco do Marcelo. Mas que você merecia coisa melhor, merecia.
Oi, filha. Obrigado por me visitar. Tô bem, tô bem. Dói um pouco as pernas. Nada de mais. E quem é esse bebezinho no colo? Quem é o bebezinho do vovô? Glória? Bonito nome. Obrigado pela homenagem pra mãe. Parabéns ao casal. Vem cá me dar um abraço, Marcelo. Sei que fui duro com você, mas você é um bom rapaz. E esse é o dia mais feliz da minha vida.
Oi, filha. Entra, entra. Se a Glorinha pode ficar aqui 1 mês com o vô pra passar as férias? Lógico que pode! Pra onde vocês vão? Suíça? Uau! Vem pro colo do vovô, Glorinha. Sééério? Caiu o primeiro dente?
Oi, filha. Tudo bem, filha. Pode deixar a Glória comigo enquanto vocês resolvem a situação. É, eu sei. Muito difícil. Marcelo... Bem que eu não ia com a cara desse sujeito. Te avisei desde o começo, mas você não me escuta. Cof, cof... tô bem, filha. Só uma tosse. Deve ser de gripe. Logo, logo vai passar.
Oi, filha. Ah, vamos indo. Remédio pra pressão, remédio pro coração, colesterol, colírios... Remédio pro efeito colateral do remédio... isso nunca para. Mas eu tô bem, obrigado. Cof cof... onde eu coloquei meu relógio?
Oi... filha... que bom... que veio me visitar. Ai... dói um pouco quando eu falo... mas as enfermeiras estão me tratando bem... cof cof... e quem é essa... grandalhona? Glorinha, vem dar um abraço no vô... cof cof... Tô chorando não, filha. É o efeito do colírio. Vendo vocês duas... eu lembro da sua mãe... são muito parecidas, sabia? Fiquei contente que vieram me ver. Agora posso dormir mais tranquilo. Piiii…

terça-feira, 22 de junho de 2021

Indie 2020 - edição especial

 O INDIE20 vai dar uma segunda chance para que os espectadores possam assistir alguns dos destaques da última edição, realizada online em novembro do ano passado. O festival promove de 25 de junho a 4 de julho, no site www.indiefestival.com.br, a exibição de nove longas, de seis países, além de 12 curtas internacionais e nacionais. A cada dia, um filme da programação ficará disponível online e o espectador terá 24 horas para assisti-lo. No último dia, em 4 de julho, a programação é dedicada aos curtas que ficarão disponíveis durante todo o dia.

 

A programação traz filmes da mostra competitiva, inclusive o ganhador de Melhor Filme, o mexicano Sanctorum, de Joshua Gil, além de outros filmes do cinema latino como o argentino Edição Ilimitada e o cubano Agosto, de Armando Capó. E do cinema asiático, Lost Lotus, de Liu Shu; Love Poem, de Wang Xiaozhen, e o documentário Zero, de Kazuhiro Soda. Da sessão Première, o público poderá conferir PJ Harvey: Um Cão Chamado Dinheiro, documentário do diretor inglês Seamus Murphy, e o filme japonês Perfil de uma mulher, de Koji Fukada. Completa a programação de longas o filme O ato indizível, da retrospectiva dedicada ao diretor americano Dan Sallitt. O dia dedicado aos curtas traz obras de diretores como Jennifer Reeder, Apichatpong Weerasethakul, Dan Sallitt, Rodolfo Magalhães, entre outros.

 

Todas as sessões são gratuitas e começam a contar à meia-noite, basta acessar o site do festival, que ainda traz disponíveis dois filmes acessíveis com LIBRAS, audiodescrição e legenda descritiva.

As sessões especiais do INDIE20 têm o apoio da Lei Aldir Blanc, iniciativa do Ministério do Turismo e do Governo do Estado de Minas Gerais. Realização Zeta Filmes.

 

INDIE20
Sessão especial
(sessões gratuitas e online)
www.indiefestival.com.br

+info
instagram: @indie_festival
twitter: @indiefestival
http://www.facebook.com/indiefilmfestival

 

PROGRAMAÇÃO

25/06 (sexta) – Sanctorum, de Joshua Gil, 83 min., México/República Dominicana/ Qatar, 2019.

26/06 (sábado) -   PJ Harvey: Um cão chamado dinheiro (A Dog Called Money), de Seamus Murphy, 92 min., Irlanda/Reino Unid., 2019.

27/06 (domingo) -Edição Ilimitada (Edición Ilimitada), de Edgardo Cozarinsky, Santiago Loza, Virginia Cosin, Romina Paula, 74 min., Argentina, 2020.

28/06 (segunda ) - O ato indizível (The Unspeakable Act), de Dan Sallitt, 90 min, 2012, EUA.

29/06 (terça) - Perfil de uma mulher (A Girl Missing), de Koji Fukada, 111 min., 2019, Japão/França.

30/06 (quarta) - Zero, de Kazuhiro Soda, 128 min., Japão/EUA, 2020.

01/07 (quinta) - Agosto, de Armando Capó, 85 min., Cuba, 2019.

02/07 (sexta) - Love Poem, de Wang Xiaozhen, 114 min., 2019, Hong Kong/China.

03/07 (sábado) - Lost Lotus, de Liu Shu, 82 min., Hong Kong/Países Baixos, 2019.

04/07 (domingo) – Dia dos curtas:

1 > Jennifer Reeder: FFDF (FEMINIST FUTURE DREAM FEVER)A milhões de milhas distantes (A Million Miles Away) de Jennifer Reeder, 27:58, 2014, EUA. Marietta Brimble, de Jennifer Reeder, 8 min, 2016, EUA. Sonhei que você sonhava comigo (I Dream You Dream of Me), de Jennifer Reeder, 10 min., 2018, EUA. As dunas (The Dunes), de Jennifer Reeder, 6:21, 2019, EUA.

2 > Vapor (Vapour), de Apichatpong Weerasethakul, 21 min., Tailândia/ Coreia/ China, 2015, Sem som.

3 > Caterina, de Dan Sallitt, 17 min, 2019, EUA.

4 > Sessão FluxusLeo, de Fabienne Mahé, 30 min., Suíça, 2020. Noites mais longas (Longer Nights), de J Frisch-Wang, 4 min., Alemanha, 2019. O apicultor (The Beekeeper) de Mohammad Talebi, 10 min., Irã, 2017. O diário das árvores (Tree Time), de Alexandra Lerman, 7:34, EUA, 2020. Ritu vende online (Ritu Goes Online), de Vrinda Samartha, 15:50 min., Índia, 2020. Motriz, de Rodolfo Magalhães, 18:33 min., Brasil, 2020.

domingo, 13 de junho de 2021

Quem Vai Ficar com Mário?

Já está mais do que dito que de boas intenções o Inferno tá cheio. Baseado no longa italiano O Primeiro que Disse, de Ferzan Öspetek, Quem Vai Ficar com Mário? procura fazer uma crítica leve aos tabus sexuais, ao machismo e à homofobia. Mas o grande problema é que esse combate ao preconceito vem recheado... de preconceitos.

Dirigido por Hsu Chien, o título faz uma clara alusão ao sucesso noventista Quem Vai Ficar com Mary?, dos irmãos Farrelly. Mas essa paródia fica só no nome, mesmo. Logo no começo, o lettering dos créditos iniciais aponta Com Quem Mário Vai Ficar?, antes da troca pelo título verdadeiro. Faz mais sentido. O filme trata do dilema do protagonista: ficar com Fernando, um diretor de teatro com quem mantém uma relação estável, porém secreta? Ou com Ana, uma coach recém-chegada à cidade gaúcha para dar um upgrade nos negócios da cervejaria da família?

Em seu propósito, o filme tem diversas referências bem-vindas. Dá pra ver um pouco de Gaiola das Loucas, ou Quanto Mais Quente Melhor, ou algo da remota chanchada brasileira. Tem até os ingredientes básicos de uma comédia de erros: uma casa com vários cômodos. Nada mais pertinente. Como resultado, entretanto, essa mistura heterogênea pouco funciona. Tudo parece já ter sido filmado antes. Não existe, de verdade, uma quebra de paradigmas conservadores que se justifique na linguagem apresentada. Ao querer trazer a brandura mastigável de um tema tão forte, ríspido e essencial nos dias de hoje, Chien parece cair numa armadilha. Enquanto procura a ruptura de valores moralistas, acaba sendo levado pela repetição desses signos alusivos à discriminação. Quem Vai Ficar com Mário? mais reitera do que estilhaça. Quando um motorista de aplicativo deixa o personagem em sua casa, logo no começo, e diz “Mário, que Mário? Aquele que...?”, não há nada de iconoclasta ou denunciador. Essa fala apenas redunda estereótipos, sem qualquer viés crítico, fazendo com que o longa mantenha do início ao fim o mesmo status quo.

 

Eu Estava em Casa, Mas...

Não procure linearidade nesse trabalho autoral da diretora e roteirista Angela Schanelec. A cena inicial de uma raposa caçando um amedrontado coelho dá poucas pistas sobre o verdadeiro tema do filme. Trata-se de um embarque a uma viagem que oscila entre o universo onírico, meramente subjetivo, e o plano cartesiano estritamente racional. Alguns conseguem mergulhar de cabeça; outros ficam à deriva, procurando explicações lógicas sobre um exercício de experimentalismo inflado de referências estéticas e literárias.

Apesar de parecer monótono numa primeira leitura, Eu Estava em Casa, Mas... se vangloria de não insistir numa mesma fórmula. Existe até um certo contraste, muitas vezes paradoxal, entre uma cena e outra. Tudo se constrói por oposições. Não se percebe uma costura formada pela similaridade ou contiguidade entre seus componentes fílmicos. Uma cena não elucida ou complementa a cena imediatamente anterior. Pelo contrário. Vamos de longos planos silenciosos, contemplativos, inseridos bucolicamente numa natureza estranha, a outros planos exageradamente discursivos e filosóficos nas ruas de uma metrópole. Sem dar spoiler, até porque não há como trazer aqui qualquer tipo de solução de charada, o filme é um compêndio que vai desde um burrico na varanda de uma casa abandonada até um grupo de crianças ensaiando Hamlet. Tudo é possível se coletar na intenção de se tentar entender o ser humano: da infinidade de citações psicológicas durante um passeio de bicicleta ao silêncio absoluto sobre uma mulher à beira de um ataque de nervos que não consegue ser tocada pelos seus filhos. Trazer esse tipo de ruído e provocação é um risco, e a diretora parece ter consciência disso. Abre-se mão de toda e qualquer simplicidade rasa na busca de algum tipo de compreensão. O resultado desse hermetismo exótico pode parecer tanto deslumbrante quanto igualmente enfadonho.

 

domingo, 16 de maio de 2021

Encontro

 

- Oi Samantha, tudo bem? Victor aqui. A gente deu match no Tinder agora há pouco e você me passou esse número do zap.

- Boa noite, Victor. Tudo bem, e você?

- Então, queria te conhecer melhor. Vamos marcar um dia?

- Excelente ideia! Eu topo.

- Tava pensando nuns lugares bacanas, bem descolados, cheios de gente bonita. Até dei uma pesquisada e queria passar pra você algumas opções pra ver se você curte.

- Opa! Que homem prestativo. Vamos lá, diga quais lugares.

- Eu tava entre Drogaria São Paulo, Droga Raia e Drogasil.

- Hã??

- É. Esses lugares estão bom-ban-do!

- Victor, você me chama pra te conhecer numa farmácia? Pensei que você ia me chamar prum bar, restaurante... sei lá, topo qualquer coisa. Do jeito que ta difícil encontrar homem interessante, até a falta de criatividade de um Sí Señor eu to aceitando. Eu queria mesmo é conhecer aquele hypado do casal... do porco... sabe? Não sei, se você tá meio sem grana até o Baixo Augusta eu tô dentro. Mas... farmácia?

- Samantha, em que mundo você vive? A gente tá numa pandemia, cara! Hello! Bar e restaurante fechou tudo com essa segunda onda aí.

- Que nada! Outro dia eu passei no Bar do Pedrão e tava mó lotado. Tinha até gente na calçada.

- Aquele da Zona Norte, né? Conheço, ia direto. Quando você passou por lá?

- Ah, sei lá. Tipo umas duas semanas atrás. Não lembro, tava com minhas amigas.

- Então, deixa eu te dizer... passei por lá ontem à noite. Tudo fechado. Aí hoje de manhã fui fazer uns negócios lá perto, e quando desci do carro vi que até tinha um papel colado na porta. Aquela porta de garagem, toda onduladinha, sabe? Tava escrito assim: “Contas de água e luz, favor entregar no 167”.

- Puxa, que triste...

- Então, a gente pode conhecer aquela Droga Raia nova, gigantesca, fica aberta 24 horas. Nem vai ter blitz porque é serviço essencial. E olha... dá pra se divertir bastante... cair na night... escolher uns drinks... vi que lá eles têm álcool gel 70%, pra quem não quer ficar chapadão, mas também servem spray antisséptico. E se quiser algo mais elaborado, lá também tem enxaguante bucal que só de colocar na boca e fazer bochecho já dá barato.

- Eu não tomo álcool.

- Não tem importância! Lá eles vendem também acetona, água oxigenada e merthiolate. Que, vamos combinar... já teve dias melhores, né?

- Victor, eu tava pensando num primeiro encontro diferente. Uma noite especial.

- Ah, então eu sei do que você ta precisando...

- Jura?

- Na Drogasil da rua de cima, se você levar duas caixas de Dorflex recebe na hora um cupom que dá 10% de desconto nas tinturas de cabelo. TODAS! Quer coisa mais especial que isso?

- Ah, não sei... tá muito estranho isso...

- Estranho? Pensa: no bar, qualquer bar... e olha que eu já fui muito do bar... pra você ser atendido precisa esticar a mão até o teto. O garçom sempre finge que não te vê. Ou faz sinal que vai te atender e simplesmente some. Na farmácia não. Assim que você bota os pés vem alguém, em questão de segundos, já perguntando: “Posso te ajudar?”.

- Ainda não me convenceu.

- No bar, ou na balada, geralmente toca música ruim. E sempre tem aquele momento do aniversário coletivo, em que a banda para tudo pra tocar a versão da Xuxa cantando parabéns. Meio ridículo, né? É tudo num som tão alto que você até sai meio surdo. Na farmácia não. É aquele silêncio sepulcral. Questão de respeito. Reparou que quando entramos numa farmácia a gente até fala mais baixo?

- É verdade. Mas sei lá...

- Samantha, Samantha... o bar é tudo meio escurinho, aquela penumbra toda. Eles acham que é moderno essa coisa de Idade das Trevas. Eles acham chique ninguém enxergar nada. Quando vem a conta você acha que deu R$ 80 quando na verdade tá marcado R$ 300. Qual a graça disso? Aí você tem que ficar ligando a lanterna do seu celular, que parece um farolete no meio do breu noturno do Oceano Báltico, e ainda paga mico praquele bando de universitário bebaço da mesa ao lado. Na farmácia é tudo muito claro. Branco total. Transparência total.

- Ah, Victor, tô confusa...

- E quando você passa mal no boteco? É cada um por si e Deus pra todos, certo? Cê tem que ficar torcendo pra não ter fila no banheiro. Caso contrário, chama o Hugo lá mesmo debaixo da mesa. E ainda corre o risco de respingar um pouco do seu vômito no tênis novo do seu crush. Puta roubada, né? Farmácia é outro esquema. Por acaso cê já viu alguém mijando na parede da Ultrafarma? Se por um acaso, Deus me livre, você não se sentir muito bem dentro de uma farmácia, tem uma gôndola inteira de Alka Seltzer que vai te curar pras próximas três gerações.

- Putz...

- Vamos lá, Samantha. É o que temos para o momento. Veja o lado bom das coisas. Na porta da farmácia não tem fila quilométrica com segurança selecionando quem entra pelo tipo de carro que deixou com o manobrista. Não tem aqueles grandalhões te revistando, te apalpando, fazendo cócegas no seu saco e ainda passando aquele detector de metais que mais parece uma lixa de sola do pé. E ainda pede pra você tirar as chaves do seu bolso. Porque, né? Vai que é uma bomba. Vai que eles pensam que no meio da noite você vai levantar seu iPhone pro alto e gritar: “Todo mundo parado! Isso aqui é uma palhaçada! Tô há mais de meia hora esperando! Se o meu cheddar burger e minha Heineken não chegarem em cinco minutos, prometo jogar esse XR no chão e acabar com a festa!”.

- Tá certo, Victor... tá certo. Te entendo perfeitamente. Mas eu queria assim, um lugar mais reservado, pra gente poder conversar à vontade, se conhecer melhor.

- Ótimo! A gente vai direto pra seção de cosméticos da Lancôme. Lá é tudo tão caro que nunca chega uma viva alma. Ainda mais com o dólar agora. A última vez que vi alguém procurando batom naquela seção foi na época em que o Neymar gozava de boa popularidade. A pessoa ficou indignada com o preço absurdo que a atendente falou pra ela. Se não me engano era a Bia Dória, não tenho certeza. Lá é tão vazio que até a Interpol tem dificuldades pra encontrar o local. Vamos lá que vai ser sucesso. Ninguém vai nos incomodar. Sábado que vem, reserva pra dois?

 

domingo, 2 de maio de 2021

Forrest Gump

 

Estou cada vez mais convicto de que a vida nada mais é do que um banco da praça. Ali você se senta como porto seguro para contar todas as suas histórias. Igual ao Forrest Gump. Não importa se são verídicas, se cada detalhe de fato aconteceu. São verdades para o personagem de Tom Hanks.

Quem se senta ao seu lado são a família, os amigos, os colegas, conhecidos e todo o círculo humano que você construiu. Ouvem atentamente seus flashbacks trazidos da memória. Comentam, aconselham, participam. São coadjuvantes da sua existência. Mas, é bom que se diga, muitos deles não estão nem aí para a sua trajetória protagonista. Estão lá para ler um jornal em paz, dar milho aos pombos, esperar o cachorro fazer cocô, aguardar a pessoa de um encontro marcado no Tinder. Ou simplesmente pousaram para descansar. O fato de vocês estarem lado a lado não significa necessariamente uma proximidade. Apenas era naquele momento o único lugar vago.

Durante a pandemia, nossas interações têm se tornado cada vez mais virtuais. É normal. Ou melhor, novo normal. Quem se encontra presencialmente é visto como um criminoso ou, no mínimo, irresponsável. E nas redes sociais tenho observado que esse comportamento fugaz é ainda mais frequente, fazendo com que a analogia seja ainda mais verdadeira. No começo disso tudo, dessa nova era tecnológica, acreditávamos que tínhamos muito o que dizer para centenas de milhares de pessoas. Que poderíamos chegar aos ouvidos do Presidente em apenas seis graus de separação. Ou, metaforicamente falando, que precisaríamos de um coreto e de um megafone para falar com a multidão que criamos ao redor de nós mesmos. Bobagem. Não é nada disso. Talvez no filme até haja essa passagem de um profeta conduzindo seu turbilhão. Na realidade distante das redes sociais, um banquinho de madeira para você expor suas ideias e seus sentimentos é mais do que o suficiente.

E essas pessoas, seus interlocutores, vão e vêm de modo tão natural quanto o voo de um canário. São seus comparsas por questão de efêmeros minutos. Te admiram e te ignoram solenemente na mesma proporção. Alguns vão embora sem sequer se despedir. Lembra daquele seu amigo de infância, com quem você se dava muito bem? Trocava suas íntimas e secretas confidências e, passado o cronômetro da vida, se dá conta de que hoje vocês não têm mais nada a ver? Ou aquele revolucionário colega de faculdade que, com o tempo e a necessidade de ganhar dinheiro, virou casaca? São eles os figurantes passageiros de sua história. Sentam-se e levantam-se para dar lugar ao outro.

Em épocas tão voláteis, líquidas e gasosas como a de hoje, basta uma fagulha para esse vínculo se esvair. Você pode até compreender esse afastamento por causa de divergências e incompatibilidades políticas e ideológicas. Só que esse banquinho da era digital é capaz de promover o distanciamento social até por questões de afinidade. Se as gerações X, Y, Z ou qualquer letra de um alfabeto vindouro mal conseguem ver um vídeo ou ouvir uma música até o final, o que dizer então em relação a suas histórias? Você se tornou chato, obsoleto, cansativo. É hora de elas procuraram outro lugar pra passar seus próximos 15 minutos.

Em compensação, é muito gratificante encontrar indivíduos dados como personagens mortos que reaparecem no banco da sua vida. Pessoas que lá atrás jamais seriam seus coadjuvantes. Ou nem estavam previstas pra entrar nesse roteiro. E de repente, não mais que de repente, chegam chegando e ocupam um lugar de destaque. Te indicam uma vaga de emprego sem você pedir. Te curtem não apenas para fazer número com o joinha. Te curtem de verdade. E daí surge, quem sabe, uma relação bem mais estreita que o espaço do banco.

 

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Fast food

 

- Boa taaarde! Já conhece o esquema da casa?

- Oi... é... tô só dando uma olhadinha...

- Fique à vontade. Aqui você escolhe os ingredientes e a gente vai montando o pedido. Tudo na hora, tudo fresquinho, ingredientes naturais, com baixo teor de sódio e de gorduras saturadas. É só entrar na fila. Qualquer coisa, meu nome é Júlio. Só me chamar que eu atendo você.

- Perfeito! Posso fazer o pedido?

- Claro! Vamos lá. Menino, menina ou cis?

- Oi?

- Primeiro você escolhe: quer menino, menina ou cis? Cis é novidade do cardápio e tá tendo boa aceitação.

- É... sei lá... menino, vai...

- Muito bem... branco, negro, pardo ou amarelo?

- Como?

- Cor de pele. Você pode escolher se quer mais branquinha, mais escura ou um tom intermediário. Temos amarelo também, um ingrediente importado. E infelizmente vermelho tá em falta. Se por acaso você escolher negro, vai demorar um pouquinho mais pra assar, tudo bem?

- Pode ser branco. Ou melhor, pardo. Pega bem escolher pardo hoje em dia. Ao ponto pra bem passado, certo?

- Perfeito... loiro, negro, castanho ou ruivo? O cabelo, no caso.

- Castanho tá ótimo.

- Castanho OK... liso, crespo ou ondulado? Ainda o cabelo.

- Ah, tanto faz. Liso, vai.

- OK... cor dos olhos: pretos, castanhos, azuis, verdes ou cor de mel? Hummm, esse aqui é uma delícia, experimenta.

- Tá bom. Pode ser.

- Olho estrábico por mais um real? Pra dar um charminho? Você pode escolher o esquerdo ou o direito.

- Não, obrigado.

- Qual tamanho? Baixo, mediano ou alto? Aproveita e leva o alto que tá na promoção.

- Não, médio pra mim tá bom.

- Perfeito. Agora vamos aos opcionais, tudo bem? Direita, esquerda, centro ou isentão?

- Não entendi.

- Preferência política. Mais pra direita conservadora, mais pra esquerda, centro ou dispensa esse item?

- Queria algo mais progressista, social-democracia... vocês têm?

- Temos sim, mas é cobrado à parte.

- Então deixa. Vai dire... não, esquerda... não... isentão, pronto!

- OK. Drogas acompanha?

- Hã?

- Se quiser a gente pode acrescentar um pouco de drogas. Maconha, crack, heroína, coca...

- Quero coca! Vocês têm de latinha ou copo?

- Não, no caso eu estava me referindo às drogas. Temos também chá de cogumelo, lança, ácido, doce...

- Doce de sobremesa, quero!

- Não, meu querido. Doce, a droga. Das raves, sabe? A gente tem uma porção de opções. Tem até orégano, se quiser. Quem pede gosta tanto que fala que até vicia.

- Não, de boa. Obrigado.

- Distúrbio psíquico?

- ?

- Tá incluso você adicionar ansiedade, depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, déficit de atenção, bipolaridade e até esquizofrenia. Esse no caso só a porção pequena.

- Também dispenso.

- Ótimo! Estamos quase no final do pedido. Pra fechar: coloco brinquinho, tatuagem ou piercing pra dar um up no seu pedido? Pode levar pra casa se quiser, não precisa consumir agora.

- Também não, obrigado.

- Só pra finalizar: quer levar gêmeos, com 50% de desconto na segunda unidade? Aproveita a promoção! Você pode optar por univitel9ino, a gente prepara igualzinho, ou bivitelino, aí você pode trocar até no máximo 3 ingredientes.

- Não, vou levar um só.

- Perfeito! Assim que estiver pronto eu levo na sua mesa. Se quiser acompanhar o preparo pelo vídeo de ultrassom, fique à vontade. Tá aqui sua senha: 342. Só aguardar.

(Rabicho)

- Oi...

- Ooooi... tava bom o seu pedido?

- Sim, sim. Tudo tranquilo, tudo ótimo. Só queria uma informação. É que eu procurei aqui na praça de alimentação e não achei. Por acaso vocês fazem pedido pet pra viagem?

 

domingo, 11 de abril de 2021

Sistema solar

- Bom dia, gente. Tudo bem com vocês? Cês tão me vendo?

- Bom dia, Sol. Sim, aqui dá pra te ver.

- Deixa eu ver se tá todo mundo presente... vou abrir um pouquinho a tela... tá sim. Bom dia, pessoal. Vamos começar a reunião. Queria discutir hoje com vocês a questão do alinhamento, saber se todos vocês estão alinhados, pra gente ver se estamos na mesma página. Infelizmente eu não convidei o Plutão, porque a Diretoria me parece que rebaixou ele e ele tá cumprindo aviso prévio. Semana passada foi bem turbulenta, muitos meteoros entraram na nossa pauta, foi bem difícil... Mas fiquei sabendo que vai nascer mais uma galáxia no nosso sistema...

(Todos) – Uhuu!

- Legal, né? A Via Láctea me disse que tem bastante leite pra amamentar. Ela me mandou um áudio no zap ontem antes de dormir, tá super feliz. Fez o ultrassom e vai ser menina. Então ela vai precisar tirar uns dias de licença e eu queria saber quem é que poderia cobrir ela. Mercúrio, cê que anda sempre tão próximo de mim e me conhece, pode quebrar essa?

- Vixe, Sol. Aqui o negócio tá pegando fogo. Todo dia a gente tem que apagar um incêndio. Né por nada não, mas se acumular função pro nosso lado a gente vai precisar chamar alguém pra ajudar. Hora extra todo dia. É que deu mais ou menos 6 da tarde você já vai se recolher e não acompanha a doideira depois, mas é sério: o pessoal tá varando noite direto. Todo dia eles pedem pizza. Aliás, queria ver depois com você pra quem do Financeiro eu passo as notas pro reembolso. Não é má vontade minha, juro. Bom dia.

- OK, depois a gente vê isso... eu chamei o Deus pra participar também da reunião, não sei se ele vai poder... tá resolvendo uns negócios... mas antes dele chegar eu queria que alguém começasse. Júpiter, pode ser você? Cê que tá há mais tempo na casa, é o líder da turma...

- Bom dia, pessoal! Todo mundo me vendo? É que eu troquei minha máquina, a tela nova tem só 1.236.789”, beeem menor que a da outra máquina. Tô ainda configurando direitinho. Ah, aqui tá tudo de boa. Sem perrengue nenhum. Semana passada foi bem sussa, minha equipe criou só 3.431 montanhas... parece que a demanda caiu bastante... então vamo que vamo. Suave na nave. Por falar em nave, ontem cês ouviram um barulho estranho no céu?

- Eu ouvi! Era tipo 11 da noite. Falei: “Ei, Vênus! Acorda, acorda! Vem ver!”. Ela nem tchuns, continuou dormindo. Eu não quis nem saber: peguei minha automática que deixo debaixo do colchão, peguei minha metranca que deixo na sala, peguei minha pistola que deixo na sala só de reserva, fui procurar meu fuzil na garagem mas tava escuro, aí saí na rua gritando: “Quero ver quem é macho aqui! Tenho corpo de atleta, viu? Seus covardes! Bando de maricas! Vontade de encher a cara de vocês de porrada, isso sim. Enfia essa nave no rabo de vocês!”.

(Risos) – OK, Marte. Sei que você é meio belicoso, perde a paciência de vez em quando, mas não precisava exagerar. Bom, então vamos continuar. Próximo tema é o congel... bom dia, Deus! Tudo bem? Conseguiu resolver aquela pendência?

- Bom diiia! Tuuudo beeem! Resolviii siiim, agora está tudo ceeerto!

- Deus, desculpa atrapalhar... mas acho que seu áudio tá com problema. Tá dando eco aqui. Com vocês também?

- Peraííí... melhorou?

- Agora sim!

- É que eu chamei o técnico na semana passada, mas pelo jeito ele não resolveu direito. Esses caras são tudo uma bosta.

- Então, eu chamei você aqui porque parece... peraí... Desculpe, gente, é que acabou de passar um asteroide... Então, voltando: parece que tá tudo nos conformes, mas deu ruim lá com a Terra e eu queria que você resolvesse com ela os próximos passos.

- Porra, de novo, caralho? Não aguento mais arrumar as cagadas da Terra. Todo dia, todo dia... um monte de gente buzinando na minha orelha: “Deus, me ajude...”. “Deus, me salve e me proteja...”. “Deus isso, Deus aquilo, nhem nhem nhem...”. Já me chamaram de tudo quanto é nome nessa bagaça: Pai do Céu, Todo Poderoso, Senhor, Altíssimo... É pelo amor de Deus, meu Deus do Céu, se Deus quiser, fique com Deus... porra, que inferno! Saco cheio, viu? O que foi que a Terra aprontou desasa vez? Trouxeram os dinossauros de volta? Eu já falei que NÃO É pra brincar de ficar mexendo no DNA, nos genomas, mas não adianta! Parece criança!

- Não, meu caríssimo. Parece que agora é um pouco pior. A Terra tá meio perdida...

- Perdida não! Perdida não! Cês me respeitem! Deus criou essa caralha em seis dias, quando o prazo no orçamento inicial era de 40... Eu avisei, vai dar merda... mas não! Deixa que a gente resolve! Aí deu no que deu! Fiquei ligando DIRETO pra ele no sábado, porque não parou de dar B.O. Mas só caiu na caixa postal. Aposto que deu sexta-feira ele foi pras baladas e no sábado desceu pro litoral... que ele disse que criou... mas sei lá...

- Calma, Terra. Estamos aqui pra resolver. Me explica o que tá havendo. Por que a pandemia fugiu do controle?

- Não fugiu, Sol. É só uma questão de logística. Tá tudo certo. O que houve foi um bug que entrou no sistema...

- Em qual sistema? No meu aqui não deu erro nenhum. Por enquanto! Graças a Deus, que por sinal está aqui nos assistindo. Resolve logo essa parada pra não infectar o MEU sistema com esse vírus. Já passou antivírus? Já sabe se foi um hacker?

- É que esse pessoal de TI é meio lento mesmo. Cê pede uma coisa simples e TUDO eles falam que no mínimo vão demorar três dias.

- Três dias?! Já faz MAIS DE UM ANO que a gente vê isso acontecer e até agora nada! Só piora! Eu quero prazos! Quando é que vocês vão consertar esse troço que já era pra deixar de ter acontecido desde o começo do século passado?

- Fica tranquilo, Sol. A gente resolve. No dia D e na hora H.

- Tranquilo? Tranquilo?? Tem gente morrendo por falta de oxigênio!

- Desculpe atrapalhar, Sol. Mas aqui a gente nunca recebeu esse tal de oxigênio e tá todo mundo de boa. Nunca precisamos dele.

- Tudo bem, Marte. Mas agora a questão é outra.

- Só tô avisando. A gente até se preparou. Vai que a Terra faz uma merda gigantesca e espalha isso aí pra gente. Compramos vários lotes de cloroquina, azitromicina, ivermectina...

- Gente, eu sou uma só! Não dá pra resolver tudo ao mesmo tempo! Eu tenho culpa que o vírus fica toda hora se reproduzindo? É nova variante pra cá, nova cepa pra lá... O pacote antivírus ficou desatualizado e ninguém de vocês aí autorizou a compra da nova versão. Cês acham que é fácil? Ano passado, no meio disso tudo o Deus aí ainda resolveu jogar DE NOVO uma nuvem de gafanhoto, não sei por quê.

- Não bota a culpa em mim, Terra! Eu criei as florestas, vocês foram lá e destruíram. “Passa a boiada, passa a boiada...”. Criei os animais e o que vocês fizeram com eles? Hambúrguer! Criei os peixes e vocês botaram em aquário pra ficar de enfeite. A responsa é sua, Terra! Assume o erro! Agora além de tudo eu tenho que ficar ouvindo de vocês aí “vem logo, meteoro...”. Já tô avisando: eu NÃO VOU fazer a versão 2.0!

- Bom, então é isso, pessoal. Tudo certo e nada resolvido, né? Vamos então deixar essa pauta em aberto pra semana que vem? Cês vão pensando com calma, de cabeça fria, e aí me tragam as respostas. Agora cês me dão licença eu vou participar de uma outra reunião. É um povo de fora, eles vão querer discutir realidades multidimensionais, universos paralelos, tão fazendo uma pesquisa pra saber se o nosso sistema oferece o vale-teletransporte de benefício aos colaboradores, começaram a desenvolver um protótipo de vida por meio de ondas magnéticas no lugar de moléculas de carbono, enfim... depois eu mando pra vocês um ppt na rede com essas novidades. Ah, eles também estão querendo desenvolver um projeto de uma nova forma de reprodução da vida, mas ainda não sabem se isso vai envolver sexo. Boa semana, pessoal!

 

segunda-feira, 5 de abril de 2021

A pureza e a vantagem

 

Para os adeptos da escrita, não deixa de ser trabalhoso o processo de busca pela palavra certa, no lugar certo, na hora certa. Nossa língua, tão rica quanto vasta, felizmente nos oferece um punhado de opções. Eu acesso os sistes de sinônimos mais do que minha conta do Instagram. Estou constantemente à procura de termos e significados que mais se assemelhem ao meu pensamento. Sempre tem uma ou outra palavra que “não cai bem” naquele contexto. Palavras que “soam feio”. Termos que caíram em desuso. Ou não correspondem à fala do público ao qual nos dirigimos. Quando encontramos a palavra considerada ideal, é importante observar também se não foi exaustivamente usada no texto. Enfim, o trabalho da escrita é um exercício, às vezes cansativo, muitas outras glorioso, de pincelar a jóia dentro do vocabulário, assim como faz um escafandrista.

Já que eu falei sobre públicos específicos, voltemos a 1976. E aqui preciso fazer uma explicação para todos aqueles que nasceram depois do suicídio de Kurt Cobain. Não sabem como ligar um toca-discos de vinil. Não fazem ideia do que seja o gesto de Bebeto após marcar um gol, tampouco ouviram falar do grito “É teeetra!” do Galvão Bueno. Voltemos ao futebol. Nesse ano, o meio-campista Gerson, um dos melhores da Seleção tricampeã de 70, foi o garoto-propaganda dos cigarros Vila Rica. Numa suposta entrevista, ele descrevia as características diferenciais do tubete nicotínico e, no final, destacava seu preço inferior aos concorrentes. Nessa época, propaganda de cigarro passava em qualquer horário da programação televisiva e não havia quaisquer restrições ao se vincular o produto a práticas esportivas. Ah, e também os cigarros não tinham preços tabelados. Pois bem. Por ser mais barato, Gerson encerrava dizendo que brasileiro gosta de levar vantagem em tudo. A palavra “vantagem”, em si, em princípio não ofende ninguém. Tem até um significado positivo. Existem programas de vantagens que oferecem milhas em passagens aéreas e ingressos de cinema a cada compra realizada. Tem hoje uma campanha de banco digital que fala sobre a vantagem, fazendo uma analogia ao termo usado no vôlei. Só que, na ocasião da campanha do fumo mais em conta, “levar vantagem” soou pejorativo. Pegou mal. Trouxe à tona o pior do brasileiro: aquele que fura fila, ultrapassa o semáforo vermelho, coisas assim. Pra quem não sabe, a expressão Lei de Gérson veio daí.

Um pouco mais recentemente, coisa de 10 anos atrás, lembro de ter visto numa pizzaria do Shopping Paulista um slogan mais ou menos assim: “É no forno que os amigos se reúnem”. Não lembro com exatidão as palavras. A pizzaria já não existe mais. Fui buscar no Google e não encontrei nada parecido. Mas a frase ia meio que por esse caminho. Talvez, para a extensa maioria, isso não traz nada de mais. A assinatura deixa claro que se trata de um processo artesanal de fabricação da massa redonda – o forno – não deixando dúvidas em relação ao seu preparo. E, é lógico, para um bom apreciador de pizza e vinho, uma reunião de amigos torna o momento ainda mais reconfortante. Só que, dadas as minhas ascendências hebraicas, fiquei meio cismado com a frase. Não sabia se era coisa da minha cabeça, talvez uma encanação excessiva. Quiçá eu tenha “achado pêlo em ovo”, como vários amigos meus gostam de repetir cada vez que discordam de mim nas redes sociais. Por via das dúvidas, resolvi consultar uma amiga, também judia. Na hora, ela fez a mesma associação que eu. Portanto existe sim, e isso constata o fato, a palavra que pode soar perfeita para um e incomodar o outro. Porque vivemos realidades diferentes, temos repertórios de vida diferentes. Tenho plena convicção de que não houve nenhuma maldade no redator que criou essa assinatura. Creio que ele jamais faria parte de um grupo neonazista. Mas talvez, no calor da inspiração, essa referência tenha passado batido.

Pois bem de novo. Dia desses, a jornalista e escritora Cora Rónai publicou na sua página do Facebook um post em que demonstrou se sentir incomodada com o slogan da cerveja Império, que versa sobre a “pureza alemã”. Não vi, por parte dela, nenhuma intenção de revisionismo histórico, ou qualquer tipo de levante para algum tipo de justiça em relação ao combate ao racismo estrutural. Ela expressou que achou a frase mal colocada. E, logicamente, por se tratar de uma figura pública, choveram comentários. Muitos, mas muitos deles, apontando no sentido de que ela estava criando polêmicas desnecessárias. Que deveria apagar a postagem e pedir desculpas (!). Ela mesma reconheceu, por meio de um update, que a expressão denota a qualidade no preparo de uma autêntica cerveja alemã. É como se fosse o ISSO 9000 do fermentado líquido alcoólico. Só que é um pouco complicado debater com admirador cervejeiro. É mais ou menos como tentar encontrar um campo possível aos argumentos com um obtuso fã do Iron Maiden. E se for pra falar sobre a cerveja do Iron, essa tarefa torna-se praticamente impossível. Em boa parte das réplicas, Cora foi rechaçada e, em alguns casos, até desrespeitada. Não faltaram opositores, muitos deles de sobrenomes nórdicos, alegando “choradeira e mimimi”. Isso te lembra alguém?

Nos fins de 2017, foi lançado no Brasil um papel higiênico preto, Personal VIP. O mote da campanha era “Black is beautiful”, uma alusão à frase anti-racista norte-americana. Como não poderia deixar de ser, o material publicitário gerou muitos debates e muita polêmica. Uns achavam que a campanha era racista. Eu, particularmente, não vi problemas. Até porque, entendo, essa frase mais enaltece do que vilipendia a cor negra. Mas não pertenço ao tão difundido “lugar de fala”. Não tenho autoridade e conhecimento de causa suficientes pra lacrar o assunto.

Em relação à cerveja, creio que seria no mínimo plausível os tais participantes ouvirem diversas opiniões, oriundas de várias frentes, para poderem formular melhor sua linha de raciocínio. Ao invés disso, preferiram colar na testa de Cora o selo de qualidade da Império, justificando que essa prática é comum nos demais rótulos de cerveja. Até compreendo. Não vejo qualquer tipo de discriminação quando leio “puro malte”. Ou quando ouço a camionete de bairro gritando “o mais puro creme do milho”. Só que, diante dos vários movimentos ultra-reacionários ascendentes no mundo inteiro, falar de “pureza alemã” pode parecer, no mínimo, algo um tanto esquisito. Já que a Propaganda, essa mesma que vem incorporando a miscigenação de raças, de cores e de credos para mostrar a imagem de suas marcas “plurais”, já que a diversidade étnica e cultural virou o lugar-comum dos comerciais, falar que a casta nobre invadiu nossas terras para disseminar sua eugenia etílica é um risco ao bom senso.