segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Samuel e a Luz

Melhor documentário no Festival de Guadalajara, o filme acompanha a vida do menino Samuel, que vive em Ponta Negra, um vilarejo de pescadores na costa de Paraty, Brasil.

Aos poucos, surge uma realidade mais complexa e contraditória. A chegada da eletricidade e do turismo na comunidade são um elemento de choque.

Com poucos diálogos e uma direção que pouco interfere na narrativa, deixando a coisa o mais natural possível do cotidiano daquela família, o filme transpira uma notável beleza interior. Por outro lado, não traz elementos muito inovadores para que encontremos respostas sobre a relevância desse trabalho no atual cenário cinematográfico brasileiro. 

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Elas por Elas

Esquece o Mário Fofoca. Este filme nada tem a ver com o remake da novela protagonizada por Lázaro Ramos. 

Elas por Elas na verdade é uma compilação de sete histórias curtas, dirigidas por diferentes diretoras do mundo inteiro, que têm em comum o protagonismo feminino em diversas frentes, como por exemplo apoio psicológico a prisioneiras viciadas em drogas e amparo a vítimas da Covid-19.

Esse compêndio que enaltece e valoriza o empoderamento tem nomes de peso, como Catherine Hardwicke e Lucia Puenzo por trás das câmeras. Atravessa diferentes matizes, indo de um realismo interpretativo que reproduz o sistema carcerário da primeira história, até uma animação fabular que traz uma espécie de extraterrestre na última.

Como a maioria das coletâneas, há pontos fortes e pontos fracos. Não existe aquela desejada uniformidade e coesão, já que cada realizador encontra a liberdade poética a seu modo. 

segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Mostra de Cinema SP

A 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, vulgo Mostra, teria tudo pra me provocar as melhores sensações possíveis. Porém, como minha relação com o cinema é de amor e ódio, com ela não poderia ser diferente.

Minhas ternas lembranças vão lá pra 1995, quando ganhei minha primeira permanente integral do meu pai após ser demitido de uma agência. Naquele ano, devo ter visto mais de 100 filmes. Prometi nunca mais repetir a dose, dado o meu estado exaustivo pós-maratona. Entretanto, voltei a fazê-lo, comprando a permanente com meu próprio dinheiro, até meados dos anos 2000.

Mas minha incursão pela Mostra veio antes disso. Em plenos anos 80, quando estava na faculdade, lembro de ter visto um ou outro filme a cada ano. De cinco a 20, dependendo do período. Frequentei o festival nos extintos cine Majestic, Arouche, Paulistano, Metrópole, Vitrine. A melhor sessão pra fechar o dia começava por volta das 23h, na sala de cinema do hotel Maksoud Plaza. Meus pais me contam que meu primeiro filme de Mostra foi no cine Palmela. Você se Lembra de Dolly Bell?, do Kusturica. Que, por sinal, vai ser novamente homenageado neste ano.

Nos primórdios, eu ainda era um coadjuvante da família. Um apêndice, uma extensão, um ser sem vida própria. "Ah, você que é o filho da Anette?". Pra quem não sabe, minha mãe foi praticamente a "musa" da Mostra. Frequentou o festival desde a primeira edição, quando os filmes passavam exclusivamente no Masp. Deu entrevista pra tudo quanto é veículo de comunicação. Inclusive para o site Cinemascópio, do Kléber Mendonça Filho, quando ele ainda era "apenas" crítico. Foi convidada pelo próprio Cakoff a entregar o troféu para o diretor italiano Marco Tulio Giordana, no ano em que seu filme 100 Passos foi eleito o melhor pela votação do público. Já apareceu na TV. Em matéria da Vejinha, sua foto foi acompanhada da legenda "estoque de bifes", devido ao fato de preparar toda a comida da família e guardar no congelador pra não precisar fazer absolutamente nada durante 20 dias. Inclusive bife à milanesa. Em três semanas, seu único afazer era ver filme do meio-dia à meia-noite. 

Conheci muitos amigos da minha mãe, a D. Anette, que automaticamente se tornaram meus amigos. Pessoas do Rio que vinham pra cá durante as férias, só pra acompanhar a Mostra. Médicos, dentistas, advogados, bancários, aposentados. Pessoas 10, 20, 30 anos mais velhas do que eu. Ah, como era bom reunir esse povo aqui em casa à noite, no último dia de exibição, para fazermos uma votação paralela dos melhores e piores enquanto comíamos um sanduíche de metro que meu pai escolhia na padaria.

A partir de 95 comecei a ganhar protagonismo. Fiz meus amigos próprios. Minha programação era diferente da agenda dos meus pais. Inventava circuitos nada a ver com o roteiro deles. Entrava livremente nas sessões de abertura do Bristol, vão livre do Masp, Sala São Paulo, Credicard Hall. Sem precisar confirmar nada antecipadamente. Apesar do cansaço, e de uma coleção de filmes irremediavelmente ruins, ouso dizer que foi minha melhor época de Mostra.

No começo dos anos 2000, a coisa começou a mudar um pouco de figura. Nessa época me tornei crítico de cinema. A Mostra foi uma espécie de portfólio que usei pra adentrar esse universo. O pontapé inicial foi ser colaborador do site Contracampo. Comecei a frequentar cabines de imprensa. Imagine só. Em cada dia de festival eram duas cabines de manhã, mais a programação "normal" (cerca de cinco filmes). Chegava em casa nos primeiros minutos do dia seguinte. E ainda tinha que acompanhar as centenas de e-mails dos demais críticos da revista eletrônica citada. Análises científicas eufóricas, entusiasmadas. Tanto pra falar de Manoel de Oliveira, Kiarostami, quanto pra se debruçar sobre cada plano de um filme do nível Trolls 3. E ainda tinha que encontrar tempo para escrever sobre os filmes. Textos que não demonstrassem erudição e lugar de fala eram sumariamente descartados.

Fiz isso também nos anos seguintes. Dessa vez, como colaborador do Omelete. Os editores dos ovos mexidos não eram tão rigorosos assim. Na ocasião, eles ainda se davam ao trabalho de fazer cobertura da Mostra. E também iam às cabines. Como a gente viu juntos filmes medíocres... No Pain No Gain é um exemplo inesquecível. A gente tentou sair no meio. Mas nesse exato momento o diretor estava entrando na sala. Uma mistura de Dwayne Johnson com Henry Rollins. Não tinha como fugir. Se tentássemos, certeza que ele faria de nós uma bela galinhada.

Depois virei um dos editores do Cinequanon. E essa rotina se manteve. Havia uma obsessão muito grande do editor-chefe de fazermos a maior cobertura do Brasil. Nossa meta (mais dele do que minha) era fazer 100 críticas. Eu até tentei ajudar. Mais na qualidade do que na quantidade. Porém, por algum motivo que até hoje não sei dizer, os textos ficavam em banho-maria. Eram publicados depois que a Mostra acabava.

São boas histórias de se lembrar. Mas fui percebendo que esses novos hábitos foram me tirando o prazer. Havia pouquíssimo tempo pra se fazer outra coisa a não ser assistir a filmes. Certa vez, quis almoçar algo rápido, mais rápido que Miojo. Comi um sanduíche natural naquela pocilga chamada Rei do Mate, do shopping Frei Caneca, onde hoje funciona a Riachuelo. Além do péssimo atendimento, o sanduba estava estragado. Em outra ocasião, após voltar da Cinemateca, percebi que não estava passando muito bem. Fui medir a temperatura. Mais de 40 graus de febre.

Devo admitir que a Mostra até que se renovou. Entrou o formato digital, sessões para públicos específicos foram criados, atividades paralelas implementadas e tal. Mas o espírito mostreiro sempre foi o mesmo. Aquela bipolaridade. A alegria de reencontrar pessoas que você não vê há um ano, junto com o atraso de quase uma hora para o filme começar. A profusão de ideias em conversa de bar, junto com os cancelamentos de sessões em última hora. O abraço apertado, junto com a fila na bilheteria que parece fuzuê do Rock in Rio. Os funcionários, novatos, tão simpáticos quanto inexperientes. Pouquíssimos sabem dar informações precisas.

Da minha parte, acho que o que ficou foi o inevitável envelhecimento. Sobre os amigos, tanto os adquiridos por usucapião quanto os formados por conta própria, grande parte desistiu. Alguns deles nem estão mais nesse plano espiritual. Dos que restam, uns empobreceram. Outros envelheceram mal. O terno de linho e o cabelo engomado para compor o visual de uma pré-estreia ficaram na saudade. Dentistas perderam dentes. Oftalmologistas ficaram mais cegos. Professores passaram a cabular as sessões.

Um dos feitos memoráveis que consegui realizar foi uma festa temática dos meus 37 anos. Fechei o espaço de uma loja de discos que, à noite, funcionava como baladinha alternativa. Foi lindo. O tema você já sabe qual foi. Peguei uns pôsteres de locadora da minha coleção e preguei nas paredes. As músicas, discotecadas por mim mesmo, eram de trilhas sonoras de filmes. Foi um sucesso. Mais de 60 convidados estavam presentes. A maioria do ramo cinematográfico. Amigos que fui conquistando inclusive nas Mostras. Hoje, tudo mudou. Cada um foi pro seu lado. Uns casaram. Uns optaram por outras rotinas. Encontros e desencontros. Aos poucos, fomos percebendo que um não tem mais muito a ver com o outro. Talvez as divergências políticas tenham contribuído para esse afastamento. Talvez não. Vida que segue. Ao comemorar quase quatro décadas de vida, havia ali um grupo que fazia questão de tomar cerveja comigo. Hoje, no auge dos meus 55, duvido que alguém deles aceite meu convite para um café.

Redes sociais podem ser juma boa explicação para isso. Elas vieram com o pretexto de aproximar e conectar pessoas, quando na verdade o que mais fizeram foi isolar indivíduos em seus cubículos. Mas creio que o que me fez brochar de vez da Mostra foi um episódio que nem envolveu diretamente a mim. Certa manhã, numa cabine de imprensa, o pivete do assessor comunicou, em alto e bom som, para todos os jornalistas ouvirem, que, a partir daquele dia, três pessoas estavam terminantemente proibidas de frequentar as cabines. Uma delas era minha mãe. Que, por sinal, nem estava presente. O incompetente fedelho, pouca-prática da função, nem teve tato para dar a notícia de modo mais cordial. Os outros dois expulsos, já falecidos, foram impedidos por motivos relativamente justificáveis. Um deles entrava pela porta dos fundos da sala para não ser percebido. Usava ingressos falsos. O outro via essas sessões exclusivas, em primeira mão, para depois dar spoiler ao público das filas da primeira sessão. Minha mãe, outrora rainha da Mostra, não se enquadrava nesse tipo de boca-livre. Ela jamais deixou de comprar sua permanente integral. Pelo contrário. Não se importava em sair no meio da sessão, quando solicitada, para dar entrevistas, fazer propaganda da Mostra, elogiar os organizadores, incentivar a iniciativa. Ir a alguma cabine, muito que eventualmente, era para simplesmente dar vazão a outros tantos filmes durante a extensa programação. Coincidentemente, naquele ano em que foi enxotada e tratada como uma meliante, escreveu uma crítica para o Cinequanon. Sobre um filme visto em... cabine.

Ainda sobre cabines: dia desses, um jornalista amigo meu perguntou que tipo de cobertura da Mostra eu iria fazer. Sinceramente, não soube responder. Disse que daria prioridade ao circuito alternativo, aos filmes B, exibidos em salas underground, como Olido e Centro Cultural. É uma promessa que venho fazendo há anos. E nunca cumpri de modo satisfatório. Só sei que vou fugir dos filmes mais aguardados. Não tenho mais paciência para aquele tumulto, aquele frisson, muvuca, filas intermináveis, confusão, briga por um assento para se assistir a uma obra que entrará em circuito comercial daqui a 1 mês. Por enquanto, a dúvida é minha certeza. Dizem que as cabines servem como um aperitivo da Mostra. Mas, pelo pouco que tenho visto, me deparado com filmes tão distantes do meu momento, tão desconectados da minha realidade, não sei se tenho vontade de ir ao prato principal.

Ouvi dizer que estão preparando um documentário sobre a Mostra, a ser exibido em sua 50ª edição. Fico contente em saber disso. No que puder, coloco-me à disposição para colaborar com depoimentos, descobertas, causos marcantes. Certamente ninguém sabe que, inspirado no jargão do futebol, eu é que criei o termo "repescagem". Pelo menos nunca tinha ouvido ninguém usar tal palavra nesse contexto. Soltei o neologismo para um grupo de amigos, que espalhou para outro grupo de amigos, que espalhou para outro grupo, e aí a moda pegou. Talvez seja mera coincidência. Eu duvido.

O problema é que ando fugidio. Não sou facilmente encontrado nas sessões da Mostra. Não abracei a tendência de se trocar críticos por influencers. Não vou usar hashtag pra ser localizado. Não vou abrir apps de redes sociais que usam imagens para fazer exibicionismo de egos. Por favor, não me peçam para substituir o garimpo do desconhecido pela diquinha de programa a dois. Adotei o escapismo. Passei a viver numa realidade paralela. E percebo que, no que diz respeito aos meus amigos, a recíproca é verdadeira. 

Em seu 47º ano de vida, a Mostra Internacional de Cinema tem motivos de sobra pra comemorar. Voltou a ser 100% presencial, depois de três anos chafurdada naquele conceito on-line. Arte é convívio, é existência. Não me desce muito bem a alternativa de fazer a Mostra ficar parecida com o streaming, o lanche on-demand. Além disso, ela voltou a contar com patrocinadores de peso, como Petrobras. Além do fôlego financeiro que ganha, essa retomada simboliza que estamos saindo do obscurantismo bolsonarista, que praticamente aniquilou a Cultura. Com isso, a Mostra volta a oferecer em seu cardápio quase 400 filmes. É um banquete e tanto. E só posso desejar a ela um feliz aniversário e muitos anos de vida. Pena que não fui convidado pra essa festa. Nem sei se tenho roupa pra isso.