Semana
passada, o radialista gaúcho Rogério Mendelski foi acusado de racismo ao fazer
um comentário sobre o cabelo da ex-vereadora Marielle Franco. Segundo ele,
aquele cabelo preso é “horroroso”. Sinceramente, não vejo nada de mais nessa
observação. Numa população tão biodiversa como a nossa, com tantas texturas,
tons de pele e cores de pantone, é natural gostar de alguma coisa e não gostar
de outra. Foi apenas uma opinião do radialista, a meu ver. O que se pode
discutir, talvez, seja a pertinência e relevância do comentário, se aquilo
realmente foi necessário diante do contexto. Fora isso, é um direito inconteste
do acusado. Da mesma forma, é natural aparecer quem discorde dele e ache o
cabelo da Marielle lindo. Faz parte do jogo democrático. Só que o problema é
que não vivemos um jogo democrático. As tonalidades genéticas são infinitas,
entretanto, as discussões são binárias e polarizadas. Dias atrás, joguei um
post no Facebook meio que pra alimentar uma polêmica. Falei que não gostava do
sotaque carioca. Aliás, tenho vários amigos cariocas, diga-se de passagem. E
nem todos os falantes do Rio de Janeiro me incomodam, pra falar a verdade. Mas
aquela pronúncia acentuada me irrita um pouco. Assim como não gosto de acarajé,
o que em nada significa que deixaria de gostar dos baianos. Uma amiga minha,
carioca, respondeu de maneira fina, elegante e sincera: “foda-se”. Achei a
melhor resposta. Ou seja, meu gosto em nada importa pra ela. E vida que segue.
Por outro lado, uma indivídua que sequer a conheço pessoalmente, e que
provavelmente deixou de me seguir desde então, invadiu minha área com seus
axiomas, suas certezas, suas verdades absolutas, e concluiu por conta própria que
eu sou preconceituoso e racista (talvez regionalista seja a melhor palavra). São
os juízes Dredd de plantão, que te observam nas redes sociais, detectam um
crime e aplicam suas próprias penas. Dependendo do caso, uma execução sumária,
sem direito a julgamento.
Voltemos à Marielle. Se a crítica a seu cabelo é algo
condenável, que suscita e faz apologia ao racismo, devemos então estipular os
mesmos pesos e medidas. Porque, do jeito que está, de acordo com esse tribunal aí
do Facebook, falar que o cabelo do Bolsonaro é horroroso (e de fato é) pode. Falar
que o cabelo da ex-vereadora é horroroso não pode. O que está em jogo,
portanto, não é o cabelo, tampouco o horroroso. É a Marielle. Ícone da
resistência. Vilipendiar sua figura imaculada é algo proibidíssimo. Um pecado
que te conduz direto ao Inferno.
Eu tenho o cabelo crespo. Nasci de cabelo liso, mas aos 11
anos teve uma epidemia de piolho na escola e tive de raspar a cabeça. Dizem que
o cabelo cresce mais crespo e mais duro depois que se raspa, como foi o caso do
Gianecchini. Além disso, o fato ocorreu na minha adolescência, fase de todo um
desarranjo genético. Então, imagine você. Desde os meus 11 anos, há cerca de
quatro décadas, não só venho ouvindo que meu cabelo é horroroso. Já fui chamado
de judeu sarará, pixaim, cabelo frito, cabelo ruim, poodle velho, Valderrama,
bombril, se fizer cafuné dá choque. Minha professora de Educação Artística (que
também tinha cabelo crespo), durante os cinco anos em que me deu aula, sempre
me chamou de Crespinho. Em meia década, ela fazia questão de não decorar meu
nome. Mas eu não sou a Marielle. Sou branco. E homem. Para os milicianos das
redes sociais, sou um dos culpados e responsáveis por toda essa crise de
desigualdades que assola a Humanidade. No entendimento desses ministros do
Supremo Tribunal Facebookiano, composto majoritariamente por brancos, não há como comparar o nível de sofrência
entre a pessoa que é discriminada na fila de supermercado e entra pelo elevador
de serviço e o semita que estudou em colégio particular do Bom Retiro. Ser
chamado de alguns adjetivos, por sinal muito mais peados do que “horroroso”, é
sem dúvida uma dívida social que tenho que pagar, um ônus probante da minha
culpabilidade por esse hediondo estado das coisas. Assim como as flexões que um
soldado tem que pagar a seu general, quando faz algo de errado que ele nem
mesmo sabe o que é. Dias atrás, minha mãe comentou com uma amiga ao telefone um
fato que eu fiz questão de apagar da memória. Ela disse que um dia eu (ou meu
irmão, não entendi ao certo) cheguei da escola mais cedo, chorando, com o
cabelo todo sujo de terra. Eu não disse o que era, mas ela logo suspeitou que
foi coisa de coleguinha de classe. Pois bem. Radialista da Rádio Guaíba que
desagrada seus ouvintes com suas palavras corre o risco de perder o emprego e
faz a emissora se retratar em público. Já este hebreu, esta sobra de Holocausto
que vos escreve, que não foi assassinado pela família do atual Presidente, deve
mais é tocar seu dia a dia. Faz parte da vida. É passado, tá tudo certo. Homem
branco tem mais é que voltar pra casa com o cabelo crespo sujo de terra.
Ano passado fiz um curso de stand up comedy. No exercício de
se criar e testar novas piadas, comecei meu texto falando justamente sobre essa
diferença entre racismo de branco e racismo de negro. Meu professor me
recomendou a não entrar muito nessa celeuma. Disse que a plateia branca não
iria comprar muito minha ideia. Sugeriu que eu amenizasse o tom e deixasse o
texto mais palatável ao grande púbico. Não sei se por ironia, ou talvez para
deixar a contradição ainda mais aparente, ele me orientou a usar a técnica
cumulativa de punchline e enumerar uma série de adjetivos e metáforas
pejorativas que acentuassem ainda mais minha pele alva. Pinscher albino, papel
A4, modelo de museu de cera, filhote de Galak, toma banho com Omo, reflete o
sol da praia. É isso, minha gente. Comparar um negro a um boneco de piche é
algo intolerável em terceira instância em tempos tão racistas como os de hoje.
Dá cadeia pela Lei Afonso Arinos. Já se referir a esta pessoa como um sorvete
de talco não pega nada. “Ah, ele vai entender. É só uma brincadeirinha”. Chamar
um negro de preto é inadmissível. Aí somos obrigados a usar eufemismos quando
não sabemos o nome da pessoa: aquele moreninho... aquela mulatinha... o que
torna a coisa ainda pior. Já usar o genérico “aquele judeu ali” apontando pra
minha direção, isso pode. Da mesma forma, pode chamar aquele japonês ali de “japoronga
do pau pequeno”. Porque, como dizem, não existe japonês mendigo. Os nipônicos ocupam
os primeiros lugares das faculdades, comem peixe todo dia, fundaram a Toyota.
Não têm do que reclamar. Ser xingados de pênis em desvantagem centimétrica é um
mal menor.
Isso tudo me lembra uma das cenas finais de Faça a Coisa
Certa, filme de exatos 30 anos atrás, dirigido pelo (negro) Spike Lee. Planos
fechados em líderes de seus guetos, falando pra câmera. Italiano sendo
preconceituoso com o negro, que é preconceituoso com o chinês, que xinga o
judeu, que é racista com todos os não-judeus, e corta para o muçulmano, para o
ucraniano, para o senegalês, e por aí vai. A conclusão que tiro é que não só
não evoluímos um pingo nessas três décadas, como tenho a sensação de que
estamos andando pra trás. Essa hipocrisia disfarçada de juízo de valores, essa
intolerância disfarçada de piadinha de salão, essa invasividade disfarçada de
jeito latino de ser, pra mim tá tudo muito disfarçado, muito xiita usando sua
máscara em prenúncio a uma inevitável convulsão social. Como eu já disse em uma
postagem/profecia anterior, estamos adubando o campo fértil pra que nossa
sociedade reproduza réplicas e mais réplicas de Arthur Fleck. Estou rodeado de
inimigos que me dão tapinha nas costas.
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