domingo, 4 de outubro de 2009

Tirania semântica

A língua de um povo não é apenas uma forma de manifestar suas ideias e sua cultura, mas é também uma maneira de expor a distinção de classes sociais. Igual a roupa de shopping; calça de griffe é mais bem-vista do que artigo do Largo da Concórdia. O uso incorreto da língua, tal qual o uso incorreto de uma roupa, sofre a mesma discriminação. A norma culta, como o próprio nome diz, é um mecanismo seletivo para determinar quem, do ponto de vista linguístico, irá para o Céu ou para o Inferno. “Nós foi”, expressão dada como modelo do “falar errado” da classe mais baixa, é algo ridicularizado pela elite dita culta. Muito embora o emissor da mensagem consiga se fazer entender. Afinal, lá no enunciado “errado” consta exatamente quem fez a ação, o que fez e quando fez. Verbo concordar com sujeito, de acordo com a regra gramatical castiça, é apenas um capricho da Flor do Lácio. Uma redundância capaz de reprovar alunos, apesar da plena compreensão do seu significado.

Todavia, essa mesma língua que nos faz capaz de se comunicar na sociedade também pode nos ser traiçoeira. Estamos, afinal, diante de um tribunal de Justiça? Parece, porque pelo que vejo existe nos alfarrábios léxicossociais o “pouco errado” e o “muito errado”. A sociedade, cruel ao condenar o verbo singular de um sujeito plural, é a mesma que pode perdoar o uso incorreto de infinitivos, por exemplo. Mais por ignorância do que bom-mocismo, talvez. “A nível de”, um erro considerado “classe média”, não sofre as mesmas represálias. O tão-falado gerundismo, modinha de sarcasmo, virou algo condenável só porque se lançou uma corrente em algum lugar do país condenando o uso deste tempo verbal. Duvido que tenha havido algum tipo de consulta antes de sua reprovação. “Ele vai estar fazendo”, frase generalizadamente atribuída aos operadores de telemarketing, sabe-se que está incorreta do ponto de vista erudito. Mas “ele deve estar chegando” está correta. Alguém me explica?

Frente a essa tolerância classista não posso deixar de citar os comerciais da campanha sobre a fusão Banco Real / Banco Santander, com uma série de testemunhais aprovando a junção dos benefícios. Em um dos depoimentos, uma moça aparentemente de classe média, moderna, descolada, gestual descontraído, me solta: “uma matematicazinha”. Diante do contexto, a frase até que soou apropriada e toda a sua performance, bem-vinda. Mas os puristas linguísticos, aqueles mesmos que colocariam o suposto caipira do exemplo acima na guilhotina, não poderiam aceitar essa agressão vernacular. Matemática é uma ciência, um estudo, um assunto tratado no singular por sua grandeza e por sua incompatibilidade semântica em se enumerar. É o mesmo que dizer “vou à feira trazer umas biologiazinhas”. Se a astronete tivesse dito “umas continhas” ou algum sinônimo, vá lá. Mas a Língua Portuguesa, cada vez mais, está virando passarela verborrágica: lança uma novidade, chama a atenção, exibe-se diante dos curiosos holofotes e depois sai de cena. Nossa língua pátria é móvel, é dinâmica, é corrente, sujeita a alterações sem prévio aviso, tal qual o pensamento do nosso povo. Mas é inaceitável acatar com esse comportamento de segurança de bar: deixar entrar alguns erros VIP, barrar outros.

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