sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Mil folhas

Um respeitado gerente de marketing de um grande anunciante brasileiro (intimamente chamado pelos publicitários de “cliente”) resolve entrar em uma conhecida boulangerie dos Jardins, em São Paulo. É um estabelecimento pouco caloroso, em que os atendentes não são dispersivos, porém evitam um contato mais amigável com seus frequentadores. Tem aquele ar meio blasé, que te deixa em dúvida se você deve se sentir confortável ou intimado pela antipática ostentação. Claro que, sem sombra de dúvida, dá de goleada em qualquer doceria ou padoca. Para deixar impregnado no ambiente aquele cheiro orgástico e sinestésico de um doce dionísico que acabou de sair do forno, o tal lugar fabrica, de hora em hora, a iguaria que o colocou em todos os guias gastronômicos como o melhor da cidade: o mil folhas.

Pois foi num domingo à tarde que o dito cliente entrou na doceria. Pelo seu olhar atônito e inebriado, todos os funcionários perceberam se tratar de um marinheiro de primeira viagem.
Para bajular a reputação do lugar, o cliente inicia um discurso ufanista à primeira balconista que o atende:
Boa tarde. Ouvi falar que vocês têm o melhor mil folhas de São Paulo. Tô muito curioso pra conhecer. A gente acabou de passar por um longo e exaustivo processo de concorrência. Eu visitei várias lojas, mas nenhuma delas atendeu aos critérios mínimos de preço, qualidade e sabor. Por isso, resolvi passar aqui.
A atendente fica lisonjeada e retribui os elogios.
Pois não, senhor. Obrigada pela escolha. Realmente, esse doce tem muita saída.

Percebendo que poderia ganhar um lucrativo e espontâneo filão de mercado, sem falar na dita cuja fidelização de cliente, a atendente pega o seu talher de alumínio brilhante e prepara-se para colher o melhor, o mais fresquinho, o mais vistoso e o mais perfumado doce da translúcida incubadora de quitutes.
Antes de a balconista manifestar seu gesto, o cliente prefere tirar algumas dúvidas. Assim como uma parcela razoável de clientes deste país, este caso específico fez uma série de cursos e especializações, MBAs, mas conhece pouco do riscado daquele tipo de aprendizado que se adquire na prática. Neste caso, a confeitaria de doces.
Pera, pera... antes de você me dar o doce, eu queria saber umas coisinhas, diz o cliente. Queria saber se aí tem realmente mil folhas.
Como?
Claro que, diante de uma indagação inusitada como essa, a balconista não poderia esboçar outra reação que não fosse de incredulidade.
É, a ética e a transparência fazem parte dos critérios de contratação de fornecedores. Se a gente adquirir um mil folhas sem as mil folhas, isso pode dar um problema danado com o departamento de Compras. Nossa empresa passa constantemente por processos de auditoria e avaliação de patrimônio. Por isso, volto a repetir (em um tom mais enfático): ESSE MIL FOLHAS TEM MIL FOLHAS?
Olha, senhor... veja bem... nosso confeiteiro é o melhor da cidade... ele capricha bastante... mas a gente nunca contou o número de folhas não senhor.
Tá bom, vai... OK então... whatever... se tiver umas 890, tudo bem... a gente justifica pro Financeiro como perda decorrente de margem de erro.

A atendente volta a pegar o doce, quando é novamente interrompida.
Outra coisa... é frente e verso?
??
É. Quero saber se tem recheio na frente e no verso de cada uma das folhas.
Olha, nosso mil folhas é bem recheado.
Ah, tá... legal...

Novamente se inicia o mesmo processo: atendente tenta pegar o doce, cliente faz mais perguntas.
Mais uma coisinha... desculpe... como é o refile dessas folhas?
???
O refile. Como elas são cortadas? Tem faca especial?
A balconista pensou numa resposta bem mal-educada, mas preferiu ser mais polida na tentativa de ganhar o cliente.
Não é um corte especial não. É um corte padrão da massa feito pela máquina importada que temos na cozinha.
Ah, certo... Então me vê um mil folhas.

A atendente esboça um sorriso incontido. Venceu a barreira da dúvida. Agora é só aguardar a cara de prazer do cliente e recolher o dinheiro pra depositar no caixa. Ponto, foi pra conta.
Só que, na relação entre clientes e fornecedores, a coisa nunca sai tão fácil assim. A coisa é mais complicada do que licitação pública. E o cliente, assim como todos os outros clientes, assim como todos nós, são pessoas. E pessoas são indecisas.
Peraí. Última coisinha, juro. Lembrei agora. Quanto custa?
Como a casa não estampa aquela famosa tabela de preços nas suas paredes pra não “sujar” a estética clean do ambiente, a pergunta do cliente fez todo sentido. Claro que a maioria dos frequentadores que lá costumam abarcar não se preocupam muito com esse pormenor. O que não quer dizer que o cliente não tenha razão em perguntar.
R$ 8,00 a unidade, senhor.
O quê??
OITO REAIS.
Mas isso é um absurdo! Totalmente fora do nosso orçamento.
O dinheiro é de fato a ponte entre as amizades. É ele o responsável por deixar homens de negócios cada vez mais próximos e pessoas cada vez mais distantes. Toda relação corre o risco de estremecer quando o assunto é dinheiro. Caem as máscaras. E foi justamente a partir desse momento que a balconista não fez mais questão nenhuma de esconder sua irritação com o consumidor em questão.
O cliente ainda tenta acalmar os ânimos e contornar o clima de mal-estar:
Olha, sei que é um momento estressante, mas somos parceiros. Vamos buscar a melhor solução, OK? Se vocês retirarem essa camada de açúcar do topo, lógico que chegaremos a um acordo tranquilamente.
Isso está fora de cogitação.
Se eu quiser levar um doce de 500 folhas, quanto daria pra fazer?
???
Não, não precisa ser a metade do valor não! Vocês têm o trabalho de preparar o produto, aquecer os fornos, faço questão de pagar mais do que 50% do custo. Sei lá, uns... R$ 5,00, pode ser?
???
Vai ser bom pra você, vai ser bom pra nós dois. Você me vende um 500 folhas, eu prometo voltar aqui mais vezes, indico o estabelecimento pra minha rede de contatos, vocês aumentam o faturamento, todos saem ganhando.
A atendente faz uma cara mostrando que está muito irritada.
Vamos fazer diferente então. Se não dá para cortar na carne, vamos ganhar em volume. Vamos supor que eu tenha que fazer uma festa. E nessa festa vai ter muitos convidados. Teria como você me passar um orçamento para 100, 200, 500, 1.000 e 5.000 unidades?
Mas afinal, de quantos doces o senhor precisa?
Então, não posso dizer agora. Estou apenas fazendo um levantamento de preços para uma eventual necessidade.
O senhor vai fazer uma festa e não sabe quantas pessoas vai convidar?
É só para balizar melhor a planilha de custos, só isso. Vocês querem ou não querem que eu seja o cliente de vocês?
Mantendo o tom de uma relativa animosidade, a balconista responde com ironia polida para esconder sua raiva:
É que, num caso extremo, atípico como esse, se por ventura o senhor precisar de uma quantidade gigantesca, teremos que reestruturar nossa equipe. E precisaríamos de um prazo um pouco maior pra dar conta da demanda, tipo 5 dias úteis.
Como? Não, não tenho esse prazo. Assim que batermos o martelo, vou precisar dos doces com urgência. Um dia de prazo, dois no máximo. Afinal, vocês topam ou não topam? Senão, vou procurar uma doceria que faça.
É IMPOSSÍVEL fazer 5.000 doces de um dia pro outro. Nem que a gente contratasse TODAS as docerias da região pra fazer freelance pra gente.
OK, vamos então deixar essa suposição pra depois. Me vê aquele mil folhas ali.
Pois não, senhor.

...

O recheio é do que mesmo?
Recheio de creme. É o padrão do mil folhas. O recheio é de fabricação caseira. Usamos ingredientes da melhor qualidade.
Ótimo! Ótimo! Excelente!
(Rosto feliz da balconista).
A história parece ter encontrado um desfecho satisfatório. Mil folhas saído da vitrine, agora desfilando seu aroma no balcão, bem abaixo do nariz do cliente.
Olha, é o seguinte. Com certeza, vocês fazem o melhor mil folhas de São Paulo. Talvez o melhor do país. Deve ser uma delícia esse mil folhas... de creme. Só que eu queria ver mais algumas opções.
?????
Isso mesmo! É natural num processo de concorrência o fornecedor mostrar sua criatividade, seu empenho. Sei lá, queria ver algumas sugestões fora da caixa. Mil folhas de doce de leite, de goiabada, de frutas vermelhas, massa de tapioca... tá vendo como eu também sou criativo? Hehe... Se a gente sentar aqui, trocar uma ideia, rabiscar umas propostas no papel, a gente consegue se diferenciar do mercado fácil, fácil. É só ter um pouco de boa vontade que a gente conquista a liderança.
Olha, meu senhor. Meu caríssimo senhor. Eu também gosto de mil folhas. E gosto mais ainda de dinheiro. Seria uma honra muito grande ter o senhor como nosso principal cliente. Mas pra mim já chega. Estou abrindo mão da venda antes mesmo de concretizar essa venda. Não dá certo. O senhor quer uma coisa, eu vendo outra. Nada pessoal. E pro senhor não sair com uma imagem abalada da nossa empresa, que demorou quase 20 anos pra construir a reputação que tem, faço questão de oferecer esse mil folhas ao senhor, sem custo nenhum. Cortesia da casa. Sem negociação, sem nada. Por favor, aceite a oferta e experimente o melhor mil folhas da cidade. De graça.
O cliente ficou meio sem jeito, mas não quis demonstrar.
Imagina! De jeito nenhum! Assim a senhora me ofende! Faço questão de pagar. Tudo bem, nossa negociação não foi das melhores, mas o mercado é assim. A economia obriga a gente a tomar essas atitudes. Nada pessoal também. Mas somos como uma empresa. Com regras, com missão, valores. E não posso aceitar esse doce de graça porque senão isso pode ser caracterizado como suborno. E a gente valoriza a ética e a transparência, conforme já falei. Por favor, não vamos criar esse clima. É nas dificuldades e nos desafios que criamos as oportunidades. Viu? Nossa negociação criou a oportunidade de eu experimentar o seu mil folhas, e você não vai precisar arcar com o prejuízo, pois faço questão e vou pagar seu valor integral! Só que vou precisar da notinha...

A balconista olha pro cliente. O cliente olha pro doce. E o doce não vê a hora de ser devorado e acabar logo com essa angústia.

Pensando bem... acho que vou pegar o mil folhas lá perto de casa, que também é muito bom. Por favor, pode me ver aquela coxinha?

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