quarta-feira, 8 de junho de 2016

Cochichar não vale

Aqui em São Paulo, num chamado "cinema de arte", a vinheta com aquelas informações de segurança orienta os espectadores a não falar durante a sessão, mas depois o locutor faz uma equivocada ressalva: "cochichar vale". Como assim, cochichar vale? Desde quando?

Sobre esse assunto, sou mais extremista que o Estado Islâmico. Ou berra, ou cala a boca. Ou é preto, ou é branco. Nada de ficar inventando tons de cinza para diminuir o impacto da atitude. Tudo bem que falar alto incomoda muita gente. Chutar a cadeira também. Tossir, idem. Barulho de saco de pipoca, papel de bala, holofote de smartphone, a mesma coisa. Mas tenho certeza de que o cochicho é uma invenção de novo-rico. Aquele povinho que vai ao cinema, ao teatro, ao concerto, quer atrapalhar a sessão o mínimo possível mas não aguenta segurar o comentário até o fim do espetáculo. Um comportamento supostamente delicado, mas tão desrespeitoso e anticivilizatório quanto. Cochichar é tão jeca quanto comer frango de talher. É que nem tomar banho morno.

Imagine duas situações possíveis, totalmente enquadradas no seu dia a dia cinematográfico. Situação 1: você está confortavelmente instalado em sua poltrona, o filme está para começar, o público aparentemente tranquilo. Faltando exatos 14 segundos para o início da sessão, surge uma horda de adolescentes gritando, derrubando pipoca no chão, acendendo smartphone, contando piada, rindo alto. Por um acaso do destino, resolvem se sentar na mesma fileira que você, ocupando-a de cabo a rabo. Antes que o filme de ação se transforme num mercado persa, você emite um sonoro SHHHHHH, tipo freada de ônibus de excursão, saca? Se continuarem a balbúrdia, você troca a onomatopeia implícita na desinência por um ululante SILÊÊÊNCIO, só pra ver se a porra da Geração Y se assusta. Provavelmente, vão continuar chutando o pau da barraca. Aí, você discretamente pega o copo de refrigerante do comparsa ao seu lado, derruba "sem querer" o líquido em sua perna e faz um hipócrita pedido de desculpas.

Situação 2: primeira sessão do dia, 13h30, sala ocupada predominantemente por velhinhas. A maioria, num estágio avançado de surdez. O lugar é o Reserva Cultural, mas poderia ser o Itaú Frei Caneca, o Bristol ou o Cinesesc. Aquilo é metalinguagem pura. Desde o momento em que adentram a sala, as senhorinhas descrevem a dificuldade de enxergar no escuro. Depois, reclamam da dificuldade de descer as íngremes escadas. E, por final, quando se sentam em seus lugares, narram to-das-as-ce-nas do filme em questão. Com direito a reprodução de diálogos, comentários e até um ou outro "não entendi". Você, então, faz a mesma coisa da situação 1: SHHHH. Obviamente, elas não vão ouvir. Pede silêncio. Elas vão achar que é personagem extracampo do filme. Aí, não tem jeito. Num caso irremediável desse, você se vê obrigado a despertar a besta-fera que há dentro de você. Olhe fixamente para elas, faz cara de possuído pelo demônio, tente dar um giro de 180º em seu pescoço, deixe a voz rouca e fale "doce de abóbora" de trás pra frente. Não tem erro: elas não vão dormir por uma semana. Se, mesmo assim, por uma razão inexplicável da natureza o falatório continuar, chegue em casa à noite e reze. Vai por mim. Quando se reza, as coisas acontecem.

Nos dois exemplos acima, a situação é chata, mas contornável, ainda que a duras penas e com uma certa dificuldade e dose de paciência. Você detecta o alvo, mira o alvo e solicita um pingo de silêncio e de cidadania ao alvo. Com o cochicho é diferente. Você não sabe direito de onde ele vem. É aquela massa amorfa de ruídos. É um disparo cometido por autor desconhecido. Parece uma nuvem de pernilongos que paira no ar. E o que dá mais raiva é aquele amontoado incompreensível de sílabas repletas de "p" e de "b". Em vez de pipoca e Halls, os cinemas deviam vender raquete elétrica na entrada. Por uma questão de princípios. E pra tentarmos exterminar essa raça de himenópteros que se acham intelectuais.

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