terça-feira, 29 de maio de 2018

A greve da letra Z


Parecia uma reivindicação besta. A categoria que ocupa o 26º lugar no alfabeto fez uma série de solicitações, em virtude das recentes medidas léxicas que só ampliaram as desigualdades e trouxeram ainda mais injustiças ao cenário gramatical vigente.
A lista, encaminhada ao presidente do Acordo Ortográfico, era imensa. A primeira reivindicação, talvez a mais importante, era trazer mais visibilidade à categoria. A letra Z não queria mais ser a última do alfabeto e, portanto, a menos utilizada. Queria ser a 5ª, logo abaixo do D. Isso traria uma valorização à classe. Além disso, os representantes sindicais do Z pleitearam que a letra tivesse, do ponto de vista fonético, um som próprio e exclusivo, reforçando sua identidade própria. O “s” da palavra “casa”, por exemplo, estaria doravante proibido de ter o som de “z”, cabendo-lhe todas as implicações legais caso o descumprimento da determinação permaneça. Dentro da mesma pauta, outra reivindicação foi a renomeação de diversos termos do nosso vocabulário. “Obeso” passaria a ser “obezo”. “Coisa” seria “coiza”. “Exame”, “ezame”. E por aí vai. Como adendo ao parágrafo, a categoria solicitou que o termo importado “WhatsApp” fosse oficialmente incorporado ao nosso idioma na forma de “Zapzap”, conforme pronunciado nas comunidades de baixo poder aquisitivo. Em nota, um dos membros do Conselho da Letra Z alega que esta é a mais limpinha do teclado, o que gera uma terrível discriminação em relação às sujas, gastas e afundadas “a”, “s” e “#”.
No início, as entidades procuradas ignoraram a solicitação. Protocolaram o requerimento e a coisa ficou por isso mesmo. Já que o nosso vernáculo é tão vasto e rico, na abundância de suas 25 companheiras de escrita, todas essas solicitações, se atendidas, poderiam gerar um desequilíbrio nas contas públicas e colocariam em risco a possibilidade de se gerar um efeito cascata. Além disso, nosso delicado momento econômico não seria propício a tais mudanças, já que isso poderia onerar os fabricantes de componentes linguísticos. Todos os teclados e telas touch screen deveriam ser refabricados. O que, pra falar a verdade, não seria problema algum, no país do kit de primeiros socorros, do extintor de incêndio veicular tipo ABC e da tomada de 3 pontos.
Revoltados, os integrantes da letra Z adotaram medidas mais radicais. Da noite para o dia, organizaram um motim de proporção nacional. No início da semana passada, todas as letras “z” desapareceram dos vocábulos, criando um vácuo existencial. A sociedade não se acostumou ao “a_ul” no lugar de “azul”. “Ami_ade” ao invés de “amizade”. Como se não bastasse, os piqueteiros foram além. Bloquearam o acesso a toda e qualquer consulta, impressa ou virtual, aos verbetes iniciados por Z. De repente, não mais do que de repente, o dicionário terminou no Y.
As consequências imediatas foram terríveis. O zinco sumiu das prateleiras. A música ficou mais pobre sem a zabumba e o zouk. As cenas de zumbi tiveram de ser refeitas. O zoológico foi desativado. Zeladores foram pro olho da rua. Zagueiros foram pro banco de reserva. O estoque de zero ficou praticamente zerado. A Operação Zelotes foi interrompida. Teve racionamento de zimogênio, seja lá o que isso possa significar. Houve briga por zíper. A imprensa sensacionalista colocou em suas manchetes: “Se a paralisação continuar, daqui 1 mês as zebras deixarão de existir”.
Quem foi a favor da greve comemorou. A cidade estava vazia. Ou melhor, va_ia. Por alguns dias, nada de zombaria. De zorra. Zoeira. Ninguém zanzando por aí. Zangados na rua eram cada vez mais raros. E o que é melhor: finalmente o país se viu livre do Zika Vírus. E do zunido do seu inseto transmissor.
Em caráter emergencial, o Ministro da Língua Portuguesa solicitou a importação de 20 milhões de letras para que a pane não se agravasse. Apenas como medida cautelar. Porém, com a alta do dólar, foram obrigados a estreitar relações comerciais com a Al Jazeera, o lugar mais abundante do planeta em estoque de letras pouco convencionais. Isso, claro, quebrou protocolos oficiais e gerou um certo mal-estar no Congresso.
O Governo, débil e incompetente, vivendo a maior crise dos últimos tempos, atendeu a maioria das solicitações apenas na tentativa de se manter no cargo até o fim do mandato. Entre diálogos e carreatas, o que sobrou foi uma série de trapalhadas. A mais grave foi o Corregedor dos Neologismos, flagrado dormindo em sessão na plenária que debatia o assunto. O cartunista Ziraldo não perdeu tempo: tacou um balloon escrito “zzzzzzzzzzzzzzzzz” sobre a imagem do perdulário. Um tremendo desperdício, em época de restrição de consumo.
Apesar de boa parte das reivindicações atendidas, a greve continuou. Filas e mais filas nos cartórios. Quilômetros de aglomerações de Zulmiras, Zózimos, Zuleikas e, principalmente, do tal do Zé. Baderneiros incentivaram o quebra-quebra. O “Z” do luminoso da fachada da danceteria Zais foi furtado. Ninguém sabia mais o que os manifestantes queriam. Um dos líderes do movimento declarou: “existe uma clara infiltração política, orquestrada pela elite imperialista e conservadora norte-americana, que colocou títeres das letras estrangeiras “W”, “X” e “Y” se misturando ao grupo, com o único objetivo de atrapalhar as negociações e causar ainda mais repúdio da população”.
Por ora, a situação está relativamente sob controle. O zabaione voltou ao mercado, ainda que com o reabastecimento incerto. Fabricantes de azulejos retiraram o ágio. O Governo reduziu os impostos do azeite, subsidiando sua produção e gerando um rombo bilionário aos cofres públicos.
Não é um final feliz, com “z” no final. Mas é o que temos. A greve do “H” está programada pra semana que vem. Enquanto isso, vamos empurrando nossas palavras com a barriga. E torcendo por um texto mais justo. Seja o que Zeus quiser.


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