quarta-feira, 20 de março de 2019

Deus, pega leve


Deus, ó meu Deus, sabe que não acredito em você. Nunca acreditei. E tenho plenas convicções de que essa atitude é coerente. Pois, diante das coisas, chego à conclusão de que, se você de fato não existe, tudo isso é obra do acaso. Mas, se existe, está numa fase de querer zoar da minha cara, fazer bullying. Portanto, prefiro ficar com a primeira opção.

Ontem fez 6 anos que meu pai faleceu. Foi descansar eternamente nas terras do Senhor. Ele era sim uma pessoa brava, rígida, severa. Mas não merecia passar o último ano de sua vida à base de uma fileira interminável de remédios. Uma quantidade de doenças que mal cabia no campo descritivo da certidão de óbito. Isso não se faz com um ser humano. Olha só, quão irônico você foi. Justamente no ano em que ele conseguiu sua suada e merecida aposentadoria, época em que poderia viver o melhor da vida, sem as preocupações da rotina, você só faz agravar seu estado de saúde numa escala geometricamente progressiva.

Mas o requinte de crueldade não acabou aí. Moro na mesma casa praticamente minha vida toda. Ela sofreu o desgaste do tempo, já foi pichada na fachada externa, mas nada muito mais grave. Sempre me senti seguro dentro dela. Nunca fomos assaltados. Ela sempre foi uma espécie de fortaleza no meio da bandidagem periclitante das redondezas. E veja só, a que ponto chegou seu sarcasmo. Alguns anos após a morte do meu pai, nosso porto seguro foi arrombado. Coisa que nunca aconteceu em mais de quatro décadas. Os pivetes da favela, nunca encontrados, jamais sequer procurados pela polícia, estilhaçaram a fechadura da porta principal e fizeram a festa. O que levaram? A nossa dignidade. A nossa crença no ser humano. E parou por aí? Tsã, claro que não... dois anos depois, outra invasão. Desta vez, feita por engravatados que nem precisaram arrombar a porta. Uma cagada da família, somada à incompetência de um advogado inerte, fizeram com que a gente ganhasse alguns cabelos brancos tentando resolver essa pendenga na Justiça. Nem vou entrar em detalhes, ó meu todo-poderoso, pois tem mais gente lendo esse desabafo. Mas você, na sua onipresença, onisciência e prepotência, sabe do que estou falando. Você lê pensamentos. Pra falar a verdade, acho que você nem é aquele Deus-profeta de barbas brancas que imaginamos. No máximo você deve ser o Xavier, sentado em sua cadeira de rodas, escondido em algum pilar, adivinhando tudo o que vou escrever. Foi só meu pai morrer pra você decidir amaldiçoar nosso lar amargo lar. Minha mãe, por exemplo, tá fazendo mais exames médicos. Trocou o cinema pelo SUS. Nunca mais fez uma viagem decente. Tudo isso por culpa sabe de quem? Sua.

Sempre aprendi que a gente não pode falar mal de você. Não pode questionar, criticar. Tem que aceitar e pronto. Caso contrário, pode soar como insulto, blasfêmia. “Deus castiga”, é o que sempre ouvi. A gente é obrigado a ter fé, acreditar, orar, aceitar tudo o que você decide de cabeça baixa e olhos fechados. É a sua vontade e ponto final. Você jamais vai ser convidado a participar do programa Roda Viva e responder as perguntas dos jornalistas. Você é autoridade máxima. Devemos temer a Deus. Respeitar a Deus. Subordinar-se a você. Meio autoritário isso, não acha?

Bom, então já que você não existe, posso continuar, certo? Porque, se existisse, talvez daria um “control Z” de arrependimento em alguns comandos recentes. Então, vamos lá. Vamos falar um pouco de mim. Claro, deu pra perceber que esses últimos 6 anos foram definitivamente os piores da vida deste ancião de meio século que vos escreve. Nada, mas nada meeesmo, tem acontecido de relevante que me faça pensar o contrário. Tá bom, OK. Passei a trabalhar numa empresa que tem ar-condicionado e frutinha todo dia, num momento econômico em que quase metade da população ativa está preenchendo fichas de emprego. Mas só isso. O resto tá um desastre. Após a morte do meu pai, fui obrigado a voltar a fazer terapia, e encarei temas pesados. Os dissabores do dia a dia vieram como uma avalanche. É erro atrás de erro. Não venci na profissão. Não encontrei o tal amor verdadeiro que fosse capaz de substituir os 9 anos de relacionamento (encerrados, diga-se de passagem, no dia em que comemoraríamos os tais 9 anos, junto com aquele turbilhão de acontecimentos relacionados à doença do meu pai). Existe toda uma configuração astral que faz com que eu não sinta saudade alguma desta década, e tenho certeza de que os anos 2010 serão lembrados por mim como os piores da minha reles existência.

Deus, fala sério! Não fode! Como se não bastasse tudo isso até agora, o que você me apronta pra 2019? Um mundo que entortou pra extrema direita. Ataques terroristas quase que diários. O chafurdamento de Brumadinho. Um Presidente que só fala merda a toda hora. E esse verão então? Porra! Só chove, caralho! Ainda bem que acabou. Nada contra, a gente precisa de água pra encher os rios e trazer os peixes que Vossa Senhoria criou. Mas você forçou a barra. Esqueceu que aqui não tem arca de Noé? O máximo que a gente tem é um prefeito incompetente, tentando consertar semáforos apagados e nivelar pontes. Alagamentos, árvores caindo, não são da nossa natureza. Esse cenário triste e cinzento em nada contribui para qualquer perspectiva. Vivemos na insegurança econômica e social. Minhas investidas amorosas são uma sucessão de fracassos. Cada nova descoberta, um banho de água gelada. Até levar uma marretada na cabeça pelo Thor iria doer menos.

É isso o que tenho a dizer, meu divino Deus. Você não me dá outra alternativa a não ser blasfemar e reprovar todo seu deboche, sua pilhéria. Ou continuar acreditando que você não existe. Reafirmar categoricamente meu ateísmo. Achar que você é um golpe de marketing, uma criação pra deixar a Igreja mais rica e o Silas Malafaia mais famoso. Assim encerro toda essa maravilha. Passar muito bem.


Nenhum comentário: