segunda-feira, 5 de abril de 2021

A pureza e a vantagem

 

Para os adeptos da escrita, não deixa de ser trabalhoso o processo de busca pela palavra certa, no lugar certo, na hora certa. Nossa língua, tão rica quanto vasta, felizmente nos oferece um punhado de opções. Eu acesso os sistes de sinônimos mais do que minha conta do Instagram. Estou constantemente à procura de termos e significados que mais se assemelhem ao meu pensamento. Sempre tem uma ou outra palavra que “não cai bem” naquele contexto. Palavras que “soam feio”. Termos que caíram em desuso. Ou não correspondem à fala do público ao qual nos dirigimos. Quando encontramos a palavra considerada ideal, é importante observar também se não foi exaustivamente usada no texto. Enfim, o trabalho da escrita é um exercício, às vezes cansativo, muitas outras glorioso, de pincelar a jóia dentro do vocabulário, assim como faz um escafandrista.

Já que eu falei sobre públicos específicos, voltemos a 1976. E aqui preciso fazer uma explicação para todos aqueles que nasceram depois do suicídio de Kurt Cobain. Não sabem como ligar um toca-discos de vinil. Não fazem ideia do que seja o gesto de Bebeto após marcar um gol, tampouco ouviram falar do grito “É teeetra!” do Galvão Bueno. Voltemos ao futebol. Nesse ano, o meio-campista Gerson, um dos melhores da Seleção tricampeã de 70, foi o garoto-propaganda dos cigarros Vila Rica. Numa suposta entrevista, ele descrevia as características diferenciais do tubete nicotínico e, no final, destacava seu preço inferior aos concorrentes. Nessa época, propaganda de cigarro passava em qualquer horário da programação televisiva e não havia quaisquer restrições ao se vincular o produto a práticas esportivas. Ah, e também os cigarros não tinham preços tabelados. Pois bem. Por ser mais barato, Gerson encerrava dizendo que brasileiro gosta de levar vantagem em tudo. A palavra “vantagem”, em si, em princípio não ofende ninguém. Tem até um significado positivo. Existem programas de vantagens que oferecem milhas em passagens aéreas e ingressos de cinema a cada compra realizada. Tem hoje uma campanha de banco digital que fala sobre a vantagem, fazendo uma analogia ao termo usado no vôlei. Só que, na ocasião da campanha do fumo mais em conta, “levar vantagem” soou pejorativo. Pegou mal. Trouxe à tona o pior do brasileiro: aquele que fura fila, ultrapassa o semáforo vermelho, coisas assim. Pra quem não sabe, a expressão Lei de Gérson veio daí.

Um pouco mais recentemente, coisa de 10 anos atrás, lembro de ter visto numa pizzaria do Shopping Paulista um slogan mais ou menos assim: “É no forno que os amigos se reúnem”. Não lembro com exatidão as palavras. A pizzaria já não existe mais. Fui buscar no Google e não encontrei nada parecido. Mas a frase ia meio que por esse caminho. Talvez, para a extensa maioria, isso não traz nada de mais. A assinatura deixa claro que se trata de um processo artesanal de fabricação da massa redonda – o forno – não deixando dúvidas em relação ao seu preparo. E, é lógico, para um bom apreciador de pizza e vinho, uma reunião de amigos torna o momento ainda mais reconfortante. Só que, dadas as minhas ascendências hebraicas, fiquei meio cismado com a frase. Não sabia se era coisa da minha cabeça, talvez uma encanação excessiva. Quiçá eu tenha “achado pêlo em ovo”, como vários amigos meus gostam de repetir cada vez que discordam de mim nas redes sociais. Por via das dúvidas, resolvi consultar uma amiga, também judia. Na hora, ela fez a mesma associação que eu. Portanto existe sim, e isso constata o fato, a palavra que pode soar perfeita para um e incomodar o outro. Porque vivemos realidades diferentes, temos repertórios de vida diferentes. Tenho plena convicção de que não houve nenhuma maldade no redator que criou essa assinatura. Creio que ele jamais faria parte de um grupo neonazista. Mas talvez, no calor da inspiração, essa referência tenha passado batido.

Pois bem de novo. Dia desses, a jornalista e escritora Cora Rónai publicou na sua página do Facebook um post em que demonstrou se sentir incomodada com o slogan da cerveja Império, que versa sobre a “pureza alemã”. Não vi, por parte dela, nenhuma intenção de revisionismo histórico, ou qualquer tipo de levante para algum tipo de justiça em relação ao combate ao racismo estrutural. Ela expressou que achou a frase mal colocada. E, logicamente, por se tratar de uma figura pública, choveram comentários. Muitos, mas muitos deles, apontando no sentido de que ela estava criando polêmicas desnecessárias. Que deveria apagar a postagem e pedir desculpas (!). Ela mesma reconheceu, por meio de um update, que a expressão denota a qualidade no preparo de uma autêntica cerveja alemã. É como se fosse o ISSO 9000 do fermentado líquido alcoólico. Só que é um pouco complicado debater com admirador cervejeiro. É mais ou menos como tentar encontrar um campo possível aos argumentos com um obtuso fã do Iron Maiden. E se for pra falar sobre a cerveja do Iron, essa tarefa torna-se praticamente impossível. Em boa parte das réplicas, Cora foi rechaçada e, em alguns casos, até desrespeitada. Não faltaram opositores, muitos deles de sobrenomes nórdicos, alegando “choradeira e mimimi”. Isso te lembra alguém?

Nos fins de 2017, foi lançado no Brasil um papel higiênico preto, Personal VIP. O mote da campanha era “Black is beautiful”, uma alusão à frase anti-racista norte-americana. Como não poderia deixar de ser, o material publicitário gerou muitos debates e muita polêmica. Uns achavam que a campanha era racista. Eu, particularmente, não vi problemas. Até porque, entendo, essa frase mais enaltece do que vilipendia a cor negra. Mas não pertenço ao tão difundido “lugar de fala”. Não tenho autoridade e conhecimento de causa suficientes pra lacrar o assunto.

Em relação à cerveja, creio que seria no mínimo plausível os tais participantes ouvirem diversas opiniões, oriundas de várias frentes, para poderem formular melhor sua linha de raciocínio. Ao invés disso, preferiram colar na testa de Cora o selo de qualidade da Império, justificando que essa prática é comum nos demais rótulos de cerveja. Até compreendo. Não vejo qualquer tipo de discriminação quando leio “puro malte”. Ou quando ouço a camionete de bairro gritando “o mais puro creme do milho”. Só que, diante dos vários movimentos ultra-reacionários ascendentes no mundo inteiro, falar de “pureza alemã” pode parecer, no mínimo, algo um tanto esquisito. Já que a Propaganda, essa mesma que vem incorporando a miscigenação de raças, de cores e de credos para mostrar a imagem de suas marcas “plurais”, já que a diversidade étnica e cultural virou o lugar-comum dos comerciais, falar que a casta nobre invadiu nossas terras para disseminar sua eugenia etílica é um risco ao bom senso.

 

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