sexta-feira, 6 de agosto de 2021

A letra Y

 Ali na rua principal de um pequeno bairro da periferia, na geladeira do mercadinho do Seu Luiz, residia a letra Y da latinha de Coca-Cola. Era uma lata exatamente igual às outras, a não ser por um detalhe: ela não era tão desejada quanto suas metálicas irmãs. Quem passava perto do translúcido refrigerador optava por esticar suas mãos a fim de pegar unidades alfabéticas mais comuns. Letra A, por exemplo. Mesmo disponível em grandes quantidades, esses gêmeos invólucros logo sumiam do congelado andaime. "A" de amor. "A" de alma. "A" de Andréa. Sua agregada mais nova, a letra B, também era relativamente bem disputada. "B" de bondade. "B" de Beatriz. Até mesmo a tortuosa letra S tinha seu fã-clube que a fazia pernoitar por poucas horas no congelante domicílio. "S" de saúde, algo muito mais do que valioso nos dias de hoje. "S" de saudade. "S" de Salvador, nome e adjetivo ao mesmo tempo. Já a nossa protagonista não gozava do mesmo destino. É muito difícil ser Y no Brasil.

Os dias foram se passando. As latas do mais famoso refrigerante mundial foram desaparecendo do estoque, o que deixou o Seu Luiz ainda mais rico e mais contente. Várias correligionárias contribuíram para o constante tilintar de moedas na caixa registradora da mercearia: R, E, T, C, M, D... menos Y. A penúltima espécie da linhagem do abecedário se sentiu tão órfã quanto um pet de feira de exposições, preterido em última instância no momento da adoção.

Essa sensação de abandono foi crescendo no coração de Y. As baixíssimas temperaturas do inóspito frigorífico que se perpetuavam ao longo das datas deixaram a personagem ainda mais gélida e frígida. A cada hora, Y ia perdendo um amigo que se via acolhido por algum sedento consumidor. À medida que novos companheiros de cela chegavam, Y ia sendo colocada ao fundo do reservatório, num ambiente ainda mais congelante. Era praticamente impossível enxergar Y debaixo de uma espessa camada de névoa, atrás de tantos novatos pescoços.

Em certa ocasião, um desastrado movimento de mãos desconhecidas fez com que Y voltasse à primeira fileira de exibição e ganhasse novamente os holofotes Ali restava uma nesga de esperança. Y poderia ser o prólogo de "you". De "young". Ou, ainda, a representação iconográfica de braços levantados ao alto, comemorando a alegria da vitória, num derradeiro e emocionado gesto de superação. Esse repentino contentamento fez com que Y perdesse o equilíbrio e se tombasse na prateleira, permanecendo deitada por alguns instantes. Foi nessa visão horizontal de mundo que a renovada protagonista conheceu K e W, seus mais novos amigos igualmente estrangeiros. Era o que bastava para Y acreditar que a união das minorias faz a força. Achou que, juntos, o inseparável trio poderia despertar mais a atenção dos transeuntes. Enfim, a diversidade. Y ganhou colegas, outrora rejeitados, e passou a crer que a língua é tão universal quanto a vontade de matar a sede.

Dias depois, porém, o trágico aconteceu. Numa tacada só, seus amigos foram simultaneamente acolhidos por mãos quentes e apaixonadas. A poucos centímetros de distância Y viu a liberdade, muito longe dela. Wesley ofereceu a lata K para sua namorada Karen. Em troca, recebeu a lata W de seu eterno amor. 

Ao ouvir o borbulhante chiado do refresco gaseificado após o curto estampido da tampinha que se abriu, Y se deu conta de que o que rege o nosso planeta é a sorte. Por que, meu Deus? A latinha estava lá, o tempo todo, à espera de ser abusada pela Yvone ou pelo Ygor. 

E foi assim que Y permaneceu reclusa em seu canto. Sem vontade de olhar sequer para o estonteante colorido das vizinhas Fantas e Guaranás. Nossa rejeitada Coca-Cola foi envelhecendo. Perdeu o brilho ofuscante nos olhos de alumínio. Perdeu o gás de viver. Estava prestes a perder o prazo de validade. Só queria desaparecer, no meio do novo lote de latas sem letra alguma que acabaram de chegar. Cada abre-e-fecha da emborrachada porta da geladeira provocava nela uma avalanche de lágrimas que escorriam pelo seu corpo vermelho.

Essa foi a história da nossa latinha. Tentou ao máximo seduzir os fregueses do mercadinho do Seu Luiz, exibindo seu corpo estonteante na vitrine transparente, como se estivesse do lado de dentro de uma cabine de peep show. Demonstrou a todo custo sua vontade de ser tragada, de ser lentamente sorvida por ávidos atletas ou até mesmo obesos em estado de diabetes. Não se importou em saber que seu funeral poderia ser num depósito de recicláveis, e que seu cortejo seria realizado por catadores de lixo. Não baixou a guarda quando descobriu que poderia servir de cinzeiro, que sua boca poderia ser obstruída por um chiclete, e que poderia sofrer sérios acidentes em colisões que danificassem sua cintilante lataria. Mesmo assim, nessas condições ainda haveria vida. Nossa coitada Coca, entretanto, nasceu e cresceu cheia, completamente cheia, transbordando até a medula o vazio de sua existência.


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