terça-feira, 23 de setembro de 2014

Bolo

Dia 1:
- Benzinhooo... amore...
- Oi, gata... fala...
- Queria que você me fizesse um bolo.
- Oi?
- É... acordei com uma vontaaade de comer bolo... ah, faz pra mim, vai... eu sei que você gosta de entrar na cozinha... por favor...
- Tudo bem, gata. Claro que faço. O que você não me pede chorando que eu não faço sorrindo? Que sabor?
- Ah, sei lá... usa sua imaginação. Desde que seja feito com gosto, com vontade, qualquer sabor tá valendo. Só queria que você me fizesse um bolo.
Marcos, o “benzinho” protagonista desta história, não hesita em atender o pedido da sua musa amada. Mesmo batendo uma sensação que mistura orgulho e pressão, pra ele não seria problema algum mostrar a ela seu talento culinário. Fazer o bolo seria uma maneira subliminar de impressioná-la, mesmo por meio de um submisso afazer. Poderia ser qualquer bolo. Mas Marcos entendeu o recado como um pedido especial. Seria o bolo para apagar eventuais desavenças do passado. Seria a concretização do amor que ele sentia por ela. Seria a prova mais do que cabal de que o coração dela só tinha lugar pra ele, mais ninguém. Por isso, tinha que ser um PUTA bolo, inesquecível na sua forma e no seu sabor. E a entrega da chave deste sonho tinha um nome: morango.
Marcos vai até o supermercado mais caro do bairro, escolhe as frutas mais frescas e mais belas. Morangos reluzentes, escarlatinos, mais vermelhos do que qualquer pedaço de carne sendo cortado na seção de açougue ao lado. Muda de fileira, escolhe o melhor creme de leite da gôndola. Daqueles importados, o triplo do preço de um similar nacional. Embalagem parruda, sofisticada, cheia de dizeres em Inglês. E continua suas compras seguindo essa proposta ostensiva.
Chegando em casa, Marcos arregaça as mangas, estala os dedos, coloca todos os ingredientes e recipientes sobre a mesa da cozinha e começa a delinear seu quadro artístico. Momento solitário de jorrar nas telas das formas toda a sua criatividade, com direito a respingos e tudo. Na verdade, essa obra dá um trabalho da porra. Mas imagine você, leitor, num registro comparativo, que o melhor bolo de morango das cercanias está sendo elaborado como num filme, com direito a closes, cortes rápidos e muita luz branca e direta sobre a mão na massa. Marcos se sentia o Robert de Niro, o Lawrence Olivier deste filme. Espalhou seu capricho obsessivo em cada etapa do processo culinário. Com uma precisão suíça, cronometrou cada instante de espera, da massa no forno, do creme na geladeira, quente e frio se produzindo para bailar num contraste mágico. E, esbanjando sua arrogância de autor, Marcos deu um toque magistral no epílogo de sua arte: adicionou sementes moídas de cardamomo e folhinhas picadas de hortelã na massa, só pra dar um aspecto especial à exclusiva iguaria e mostrar que ele é único no mundo.
- O que achou, amore?
Ela experimenta um pedaço da torta, faz aquele gesto palatal com a língua percorrendo todos os cantos internos da boca, procurando a exatidão orgástica do sabor. Não encontrou.
- Benhê... obrigada, mas... sabe o que é? Eu esperava uma coisa mais simples. Achei isso aqui muito, sei lá, muito rococó, cheio de detalhes, de firulas. Sou mais adepta à simplicidade, à praticidade, sacou? Tipo, bolo de fubá, bolo de chuva, bolo que lembra a infância, sabe? Eu vi que você teve o maior trabalhão, caprichou em cada detalhe, muuuuito obrigada, mas... ai, só de olhar esse monte de recheio, esse monte de creme que engorda eu fiquei enjoada. Nada pessoal, eu te adoro. Mas acho que tem momentos na vida que pra agradar basta um pequeno gesto, uma coisa mais... assim... simples... sabe?

Dia 2:
- Benzinhooo... amore...
- Oi...
- Faz uma música pra mim?
- ??
- É, eu sei que você gosta de compor e toca violão bem pra caramba... você bem que podia fazer uma música pra mim...
Simplicidade. Objetividade. Nada de opus 45, adagio, andante, allegro ma non tropo. Ela quer uma música, não uma orquestra. Rock básico, quatro por quatro. Sem virtuoses. Som pra agradar aos delicados tímpanos dela, não para servir de partitura em filarmônicas. Ela pede a crueza minimalista de um Sex Pistols com a sedução romântica de um Brian Ferry. Sem invencionices. Música direto ao ponto, como uma flecha de Cupido direto ao coraçãozinho dela.
- Gata, acabei. Veja o que você acha. Até gravei em CD.
Ela bota os fones de ouvido, dá um play, cheia de expectativas. E se essa brincadeira virar um hit? E se o nome dela circular em todas as rádios? Abre um sorrisão e, no silêncio do ambiente e na melodia acústica e abafada dos fones, esse sorriso vai murchando à medida que a música se desenvolve em seus ouvidos.


Dia 3:
- E aí, Rafa, belê?
- Marcããão! Quanto tempo, manooo! E aí, tudo em riba?
- E aí, tranquilo? Firmeza?
- Sussa, e você?
- Hmmm, mais ou menos, cara...
- O que houve? Contaí.
- A minha mina... ela me pediu uma música, aí eu criei. No começo foi difícil, mas depois não parei mais. Mostrei pra ela e... decepção total.
- Sério? Por quê?
- Ah, sei lá... Ela disse que esperava algo mais. Achou tudo muito batido, muito repetitivo, muito basicão demais. Faltou tempero, faltou inspiração. Nas palavras dela, claro. Ela imaginava uma coisa mais grandiosa, mais criativa. Ela queria uma música com M maiúsculo... nas palavras dela... com uma letra pra fazer pensar, fazer refletir... uma rima pra fazer chorar... e com acordes mais bem trabalhados... enfim, ela não curtiu muito.
- Pô, cara, que mal... fico triste por você... mas será mesmo que essa música que você fez não tá com nada? Pô, te conheço há mó tempão, eu sei do seu talento. Cantaí pra eu ver.
- Ah, não...
- Cantaí, pô...
- Tá, OK. Mas só o refrão, pode ser?
- Belê.
- “She loves you yeah yeah yeah... she loves you yeah yeah yeah...”.

Nenhum comentário: