segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Pontos

No começo ela parecia um ponto. O sinal gráfico mais cortante e repentino do discurso. O encerramento justo e lógico de sua maneira de se expressar ao mundo. Aquele rotundo percevejo cintilava a coerência de seu raciocínio cartesiano e de sua postura comportamental inequívoca. Um ponto obsessivo-compulsivo, virginiano, que organiza a mixórdia cerebral e a faz caber numa frase. Apenas um ponto, seco, escuro, pragmático. Uma dardejante e certeira partícula de infinito fincada no espaço mais milimétrico do papel. Vi nela o mais perfeito microcosmo que divide simetricamente o começo, o meio e o fim.

Mas aí vieram as vírgulas. Rabiscos tortos que oferecem pausas mais ansiosas e apressadas. Curvilíneas nesgas de tinta que abreviam, ofegantes, aquilo que ela desejava expor. Lascas impressas que interrompem continuadamente o prazer de existir. Eram vultos que iam e vinham, efêmeros, lancinantes, ululantes. Entre vírgulas ela estava presa.

Foi na inquietude deste desespero claustrofóbico que descobri nela as reticências. As dúvidas no lugar das certezas. As divagações, elucubrações, devaneios. Pontos equidistantes metralhados que refletiam seu aspecto mais dialético de enxergar a vida. Como um rastro, uma mancha uniforme solta no papel, as reticências mostravam sua fragilidade diante do universo. E isso a tornava mais interessante. Bolotinhas ínfimas, suaves como a brisa, revoavam sobre seu mistério. Ah, o mistério...
Atraído por ela, demonstrei minhas mais sinceras vontades. Parece que ela gostou. Mas, como foices sedentas de sangue, vieram as interrogações. Condição humana inevitável de querer descobrir o futuro, controlar o mundo. O que será de nós? Medo inerente do desconhecido. Quem é ela de verdade? O que ela quer de mim? Como um freio sobre o andar natural da linguagem, o mais retorcido dos elementos gráficos encharcou o livro de nossa história com empecilhos. Estamos fazendo a coisa certa? E se acabar?

Guerra é guerra. Sentimo-nos obrigados a esconder nossas fraquezas e convocamos a mais poderosa e afiada de nossas armas: o ponto de exclamação. Espadas reluzentes que bradam nossas convicções. Juntos erguemos nosso totem hercúleo, o ícone másculo do nosso convívio apaixonado, para afirmar categoricamente o que nos une.

E foi com a força de nossos elos amalgamados que, olhando um para o outro, fixamente, furtivamente, construímos a nossa harmônica composição gráfica: os dois pontos. Símbolo das expectativas do gozo de uma oração. Preparador físico da apoteose frasal. Como numa relação simbiótica, estes pingos estelares limparam toda a sujeira escrita pra deixar somente o melhor pro final. E, como dois olhos negros, esta somatória de caracteres viveu feliz para sempre nas incertezas do texto.


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