domingo, 22 de janeiro de 2017

Alexandre

De repente me lembrei de um amigo de longa data. Isso mesmo, longa data. 1983, mais precisamente. Estava no 1º Colegial. As aulas já tinham começado e mais ou menos em março ele se integra à classe. Foi logo depois do Carnaval. Fazia o tipo bonitão: cabelos castanhos escorridos, pele bronzeada, olhos verdes, voz grossa e ligeiramente rouca. Mas não era daquele tipo de ficar expondo músculos ou acenando pras menininhas na quadra esportiva. Ele era mais introspectivo, mais na dele. Alexandre, chamava-se o gajo. Muito inteligente e passava uma imagem de pessoa sensível. Ah, e fumava também. Lembre-se: começo dos anos 80. Naquela época, fumar era blasé. Como houve uma entrada muito grande de alunos egressos de outras escolas e um remanejamento que até hoje não entendo quais critérios foram utilizados, acabei caindo numa classe em que a maioria era de baderneiros. Alunos péssimos em todas as matérias. Não havia "turma do fundão". A classe inteira era a turma do fundão. E eu tive uma certa dificuldade de adaptação. Por isso, o Alexandre me chamou a atenção logo de cara. Parecia se destacar naquele turbilhão que não queria nada com nada.
Lembro também do momento em que ele foi se enturmando com os colegas e, no recreio, comentou que tinha transado com 9 mulheres naquele Carnaval. Lógico, não acreditei. Isso não era possível de acontecer. Pelo menos não com um moleque. Não numa cidade fora de Salvador. Mas, assim como um professor prova o Teorema de Pitágoras, ele tentou provar por A + B que não estava mentindo. Quase jurou de pé junto. Pelo sim pelo não, adotei ele como meu ídolo. Em uma década eu não consegui comer 9 mulheres diferentes. Pelo menos não naquela década em questão.
Só que tudo nessa vida tem seus dois lados, suas contradições e contrapartidas. Alexandre fazia o tipo perfeito pra se ter como melhor amigo, mas levava uma vida complicada. Os pais tinham acabado de se separar. Anos 80, gente. Filhos de pais separados eram vistos como bestas-feras na escola. Acabara de adotar, ao lado de seu corriqueiro sobrenome português, um sobrenome alemão, complicadíssimo, oriundo do segundo marido de sua mãe. Ele tinha ido morar uns tempos em Santos e acabara de voltar pra São Paulo. Morava perto do colégio, consequentemente, era meu vizinho. Não parava em colégio algum. O quanto ele tinha de inteligência ele tinha de despreocupado. Não estudava pras provas. Mas era meu ídolo. Talvez por tudo isso mesmo. Uma cara legal que me dava lição de vida. Algo que não constava nos alfarrábios escolares.
Um dia, veio estudar em casa. Conversou com minha mãe. Descobriu-se ali que, entre um assunto e outro, minha mãe conhecia o avô dele, que era do bairro. Resumindo, o Alexandre era isso. Próximo e distante. Crânio e vagal. Simples e complicado. Comedor e apaixonado.
Lembro também uma vez em que ele me chamou pra conversar. Questões amorosas, meu assunto preferido. Pleno domingão. Ele estava a fim de uma garota, não sei dizer com exatidão o que tinha acontecido. Queria resolver essa parada com ela e me chamou junto. Pra quem estava acostumado a assistir ao programa do Sílvio Santos e estudar pra prova de Física do dia seguinte, aquela intimação veio a calhar. Senti-me honrado. Na minha paranoia mental, de alguma forma também achava que pudesse ser um ídolo dele.
Chegamos à casa da moça. Na minha paranoia mental, achei que seria uma figura imprescindível na conciliação do casal. Uma espécie de psiquiatra juvenil. Talvez fosse esse o motivo do convite. Mas não. Logo que nos apresentamos, o par em crise me enxotou para o quarto e ficou conversando na sala. Devo ter ligado a TV, não me recordo. Devo ter ligado meus pensamentos. Não sei. Só sei que, em momento algum, eu ouvi gritos, discussões, desaforos, pratos quebrados. Pelo contrário. Quando um casal está aparando suas arestas, resolvendo suas diferenças, é outro tipo de barulho que o amor faz.
Fomos embora. Alexandre me contando em detalhes o que tinha rolado. Eu não queria saber. O segurador de velas que vos escreve não estava nem aí para ouvir relatos do percurso de mãos, dedos e partes do corpo mais pontiagudas. No fundo, eu queria sim. Queria saber o que tinha acontecido enquanto eu assistia pela oitava vez o Didi Mocó imitando a Maria Bethânia. Estava com inveja e ao mesmo tempo com ódio do Alexandre. Aquilo não se faz com um amigo. Mas ele continuava sendo meu ídolo.
Os dias se passaram, Alexandre foi ficando cada vez mais escasso. Faltava às aulas. Faltava às provas. Alegou problemas cardíacos, o que caía como uma luva nessa composição de pessoa complicada. Até que sumiu de vez. Repetiu de ano, é claro. E, nas férias do ano seguinte, veio me fazer uma visita. Tocou a campainha de casa e me pediu emprestado o livro de História, já que teria de estudar tudo de novo. Jurou devolvê-lo. Nunca mais o vi. Nem o livro, muito menos o Alexandre.
Facebook anda muito chato ultimamente. Postagens inexpressivas, discussões inócuas, agressões verbais, entreveros políticos equivocados. Mas a rede social também faz milagres. É capaz de achar pessoas que você não vê há séculos. Apesar de replicar muito mimimi, o Face também funciona como uma espécie de investigador de pessoas desaparecidas. Facebook is the new caixa de leite. E lá fui eu procurar o sumido Alexandre. Digitei o sobrenome comum e encontrei dezenas de perfis. A maioria, molecada postando selfie. Também encontrei diversos perfis-fantasma, aqueles de contorno amorfo branco num fundo azul-calcinha. Digitei o impronunciável sobrenome alemão e não encontrei ninguém. Aí fiquei pensando. Por onde anda Alexandre? Será que ele ficou careca e barrigudinho? Ou será que continua arrancando suspiros por onde passa? Virou escriturário coxinha? Analista de TI? Filósofo? Ou vive comendo as secretárias sobre a máquina de xerox? Não, isso não. Quase não existe mais máquina de xerox nas empresas. Mas fiquei curioso. Aquela irreverência introspectiva ainda permanece na pessoa, ou cedeu lugar a uma série de comportamentos previsíveis e nada fora da caixa? Seria Alexandre um mitômano? Aquele rebuliço em sua vida aconteceu de fato? Ou ele era mais um personagem de ficção? Seria ele um embuste, um engodo? Não sei. E o Facebook não me ajudou em nada pra descobrir.
Fico com a sensação de tê-lo encontrado por acaso, muito tempo depois. Na rua, talvez. Uma segunda chance que o destino divino nos deu de reatar o contato. Mas a memória é fraca e traiçoeira. Não sei se isso é uma vaga lembrança ou um sonho. O fato é que nunca mais soube do Alexandre. E guardo comigo, na idolatria amargurada, o capítulo adolescente das 9 mulheres que ele comeu no Carnaval.


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