Hoje vamos falar da Jaqueline. Quando relembrei os tempos áureos
do Alexandre, teve gente que veio com insinuações de cunho homofóbico, fazendo
supor que eu tivesse algum tipo de atração recôndita e enrustida pelo colega.
Então, para não deixar dúvidas a respeito de minhas preferências amorosas, o
foco do dia será a Jaqueline.
Antes de começar, queria tranquilizar o leitor em dois
aspectos. Primeiro, é bom deixar claro que a Jaqueline não comeu 9 mulheres no
Carnaval. Não sei nem por que estou dizendo isso, mas vai que alguém aqui pense
que existe uma certa semelhança entre os protagonistas na questão da idolatria.
Não existe. Pelo menos, não que eu saiba. A única similaridade que veremos a
seguir é que os episódios aconteceram na mesma escola, na mesma década e
afetaram diretamente a mesma pessoa – no caso, eu. Em segundo lugar, aqui não
se trata de uma história na linha de Harry Potter, em que você precisa ler
todos os livros anteriores para compreender o capítulo seguinte. Claro, se você
tiver curiosidade de ler ou reler o texto do Alexandre, vou ficar muito
contente.
Estamos em 1985. Não tinha Facebook. Nem Orkut. Nem celular.
Nem e-mail. Não tinha nem computador. Quer dizer, até tinha. Mas era
propriedade da NASA e ocupava uma sala do tamanho de Itaquera. Tudo isso parece
óbvio. De fato, é. Mas são argumentos imprescindíveis para se contextualizar o
fato e acompanhar as aventuras deste escriba sem maiores estranhezas. Na época,
não tinha essa de “me adiciona no WhatsApp”. A única maneira de se adquirir o
número do telefone (fixo, de 6 dígitos) de alguém era por meio de consultas em listas
telefônicas, chamadas pelos americanos de catálogo. Havia três tipos:
Assinantes, em que você fazia a busca pelo sobrenome; Endereços, o nome já diz
tudo; e Páginas Amarelas, com vários anúncios de empresas, um amontoado de
papel-seda que não servia pra nada (não pense bobagem, seu narcodependente...).
A não ser que você precisasse urgentemente de serviços de descupinização.
A história de hoje não tem nada a ver com cupins, mas versa
sobre um tema igualmente corrosivo: a paixão. Tudo começou na sala da
Diretoria. Calma, vou explicar. Nunca fui baderneiro. Eu acabara de entrar para
o 3º Colegial. Em termos de equivalência, não sei o que corresponde hoje com o
atual currículo, mas essa palavra (Colegial) vem do grego e significa “difícil
pra caralho”. Tudo o que você aprendeu até então cai por terra. Se você era
fera nas equações de segundo grau, teria doravante de enfrentar quase o
alfabeto inteiro dentro de fórmulas matemáticas com potenciações que tendem ao
infinito. Descobre que é possível tirar raiz quadrada de número negativo. Descobre
que algumas partículas gramaticais não têm função sintática alguma e servem
apenas para enfeitar a frase. Descobre que o único lugar do planeta onde você
vai achar o elemento químico tungstênio é na ponta da sua caneta esferográfica.
E, pior de tudo: descobre que aquela menininha da primeira fila que um dia foi
dentuça e estrábica está tão gata que faz o coração da classe inteira bater
mais forte. E isso nada tem a ver com as aulas de Biologia.
Voltemos à Diretoria. Naquela época, para se ter direito ao
uso do Passe Escolar, que concede o benefício de se pagar metade do valor da
passagem dos transportes públicos, era necessário preencher um formulário e
pagar o equivalente a 5 vezes o valor da tarifa vigente. Em dinheiro de hoje,
na cidade de São Paulo, essa quantia significa R$ 19,00. Em todos os anos era
essa a prática adotada pelo colégio. Por algum motivo de força maior, naquele
ano em questão, do início da implementação regular do horário de verão, da
morte de Tancredo Neves e do lançamento do primeiro De Volta para o Futuro,
decidiram fazer diferente. Alegando falta de verbas, custos extras de logística
e a necessidade de um fundo de reserva para emergências, cobraram um ágio de
100%. Um absurdo. Um acinte à ética educacional. Fui reclamar. E lá na sala oficial
do castigo encontrei uma outra indignada, aquela que em poucos dias seria minha
musa amada.
Jaqueline fazia o tipo mulherão. Alta, esbelta, olhos grandes
e escuros, lábios espessos e carnudos, coxas fortes, braços longos. Se o
colégio fosse o Burger King, Jaqueline seria o Whopper Duplo. Diante dela, a
diretora virou uma formiguinha. E acho que foi essa mistura de postura
contestadora e sensualidade dos gestos que me encantou. Imagina aquela cena
típica de filme dos anos 80. À medida que a rebelde vociferava, sua voz ia
caindo para background, até emudecer de vez e ceder lugar a uma música do
Everly Brothers. Tudo o que eu conseguia ver eram lábios se mexendo em câmera
lenta, dançando ao ritmo de um tema que passava bem longe da carteirinha
superfaturada. No fundo, acho que era uma promoção da escola: você paga uma
cobrança indevida de R$ 19,00 e leva de brinde pra casa a arritmia e o
desassossego.
Eu era um garoto tímido. Não, você não tá entendendo. Era
tímido meeesmo. Vermelho-Ferrari era praticamente minha cor default. Jamais
poderia imaginar uma situação em que eu me declarasse de cara limpa à cachopa
venusiana. Tinha de pensar em outros meios. Telefone, por exemplo. Eu ligaria
pra ela na zona de conforto do meu lar, me sentiria mais à vontade para
conversar sem que ela me visse e, entre um colóquio às escuras e outro,
surgiriam afinidades e conexões. Mas eu precisava saber o número dela.
Perguntar, impossível. Mais fácil encontrar um bilhete premiado da Mega Sena dentro
da caixa de sapatos do meu avô.
É aí que entram as listas telefônicas. Meu plano infalível
consistia em descobrir o número e ligar. Se ela por acaso perguntasse como
descobri... sinceramente, nunca pensei nessa possibilidade. Mas não faz mal.
Nessa hora entraria o improviso jazzístico da coisa, pra deixar tudo mais
natural. Ou eu desligaria na cara morrendo de vergonha, o que viesse primeiro.
Bom, primeiramente, é bom salientar que eu não sabia o sobrenome dela.
Estudávamos em classes diferentes. Ela fazia o Magistério, ia às aulas somente
alguns dias por semana. Eu não conhecia ninguém do Magistério a ponto de tomar
a liberdade de perguntar o sobrenome da Jaqueline. E se fosse Silva? Ou Santos?
Com certeza, só conseguiria falar com ela depois que terminasse a faculdade.
Então, tive de incrementar meus planos diabólicos: lista de Endereços. De
alguma forma, teria de descobrir onde ela mora, para que pudesse fazer a
consulta no catálogo de logradouros. Não que eu seja um stalker profissional,
mas só me restava segui-la até sua casa como única alternativa.
Para que nada parecesse criminoso, para que tudo tivesse a
imagem de algo espontâneo, ocasionado pelas coincidências da vida, meu plano
foi rascunhado com a precisão cirúrgica de detalhes. Num primeiro dia, pegaria
o mesmo ônibus que ela. Sim, ela voltava pra casa de ônibus. Não faria sentido
algum ela reivindicar a justiça na cobrança do documento se alguém a conduzisse
de carro ou de moto até sua casa. Minha ideia era descer um pouco depois, para
não parecer perseguição. E, num outro dia, pegaria o mesmo ônibus que ela, só
que entraria nele um ponto antes. Desceria no mesmo ponto e andaria calmamente,
bem atrás dela, sem abordá-la, e daí anotaria seu endereço. Tudo muito lógico e
natural, nada vindo da cabeça de um psicopata.
Primeiro dia. Entramos no coletivo. Imaginei que ela fosse
descer coisa de 6 ou 7 pontos depois. Que nada. Ela morava na puta-que-pariu.
Não é à toa que esbravejava tanto na Diretoria. Andar de ônibus, para minha
Dulcineia juvenil, era tão vital quanto respirar este oxigênio que nos afaga. Mas
o tímido e enamorado discípulo não foge à luta. Esperei ela descer e, conforme
planejado, puxei a cordinha no teto para o ônibus parar no ponto seguinte.
No segundo dia, pedi ajuda a um amigo meu. Um grande amigo,
por sinal. Achei que seria mais estratégico. Contei rapidamente o plano e ele
não só entendeu perfeitamente como também fez questão de ser o coadjuvante
dessa empreitada. A ideia era essa: ver mais ou menos o horário de saída da
moça, ou sair minutos antes, ir até o ponto anterior e pegar o mesmo ônibus.
Esse meu amigo é muito ponta-firme. Leal, companheiro de verdade. Só que recebeu
uma educação familiar muito rígida, regrada. E tinha uma mania um tanto
obsessiva. Sempre que a gente saía, ele ligava pra casa dele umas 5 ou 6 vezes
pra avisar os pais que estava tudo bem. Um excesso de preocupação a meu ver
descabido diante dos riscos que corríamos indo a um fliperama ou ao Jack in the
Box. Mas OK, quem sou eu pra dizer o que é correto e o que foge dos padrões da
normalidade. Só lembrando: anos 80, gente. Nada de celular. Para se comunicar
remotamente, o jeito era usar os telefones públicos. E aí entra em cena a icônica
ficha, moeda inspiradora da expressão “cair a ficha”. Estávamos no ponto, tudo
nos conformes. Até que aparece um orelhão bem na nossa frente. Meu amigo não
teve dúvidas: ligar pra casa avisando que chegaria um pouquinho mais tarde. Foi
o tempo suficiente para que passasse o ônibus que precisávamos pegar. “Calma,
vai dar tudo certo”, disse ele. Olha, não sei você, mas SEMPRE que alguém me
fala isso é um prenúncio de que vai dar bosta.
Não acredito em Deus. Nem em forças superiores. Nem em energia,
nada disso. Mas, naquele momento, alguma coisa fora do nosso alcance
compreensivo aconteceu. Poucos minutos depois, passa um outro ônibus da mesma
linha. Vazio, bem vazio. Por estar mais vazio, obviamente recolheu menos
pessoas. Por pegar menos passageiros, conseguiu ultrapassar o ônibus em que se
encontrava minha Inês de Castro. É sério. Parecia cena de filme policial. Única
diferença é que os criminosos éramos nós.
Chegamos ao destinatário um pouco antes da Jaqueline.
Ficamos de tocaia numa construção abandonada, não lembro ao certo. De repente,
ela passa. Agora, era só anotar o endereço da casa dela pra depois procurar na
lista. Ela caminha, lentamente, e entra. Era um condomínio fechado.
Amigo que é amigo dá provas incontestes de amizade. Meu fiel
companheiro ligou para os apartamentos do condomínio, um por um, perguntando
pela Jaqueline. Não encontrou em nenhum deles. Fim da história.
3 comentários:
Hã? Como assim? Eu preciso de um desenrolar pra essa história! Texto delicioso.
Obrigado :)
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